Reportagens

Comunidade de onças pescadoras é descoberta em área remota do Pantanal

A fartura de animais aquáticos e semiaquáticos na Estação Ecológica de Taiamã (MT) transformou a dieta das onças-pintadas da região; quase metade do que consomem são peixes

Dimas Marques ·
13 de dezembro de 2021 · 3 anos atrás

Estação Ecológica de Taiamã, pequena unidade de conservação que protege um trecho praticamente intocado do Pantanal do estado do Mato Grosso, abriga uma peculiar preciosidade: onças-pintadas (Panthera onca) pescadoras. Pesquisadores de diversas instituições descobriram que a base da dieta da população da espécie que vive na área protegida é composta majoritariamente por peixes e jacarés. A comprovação é inédita para esses felinos que, em geral, se alimentam de mamíferos terrestres.

E essa não é a única descoberta divulgada em um artigo publicado pela revista Ecology. A fartura de peixes e jacarés na estação ecológica é tamanha que está sustentando a maior densidade de onças-pintadas conhecida. A estimativa é de 12,4 animais por 100 quilômetros quadrados. E, diferentemente do que se afirma sobre o comportamento desses felinos, tidos como solitários e territorialistas, em Taiamã eles socializam, pescam e caçam juntos e até brincam uns com os outros.

“O resultado que tivemos foi surpreendente”, afirma um dos autores do artigo, Ronaldo Morato, coordenador do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (Cenap) do ICMBio. Veterinário e pesquisador da espécie, ele relatou à Mongabay que a população de onças-pintadas da Estação Ecológica de Taiamã começou a ser pesquisada em 2011.

Imagem de onça-pintada pescando uma cachara captada por armadilha fotográfica.

As novas informações surgiram quando Charlotte Eriksson, doutoranda do Departamento de Ciências da Pesca, Vida Selvagem e Conservação da Universidade do Estado do Oregon (EUA), propôs ao Cenap o desenvolvimento de estudos para verificar a hipótese de que a população desses felinos de Taiamã estava se alimentando basicamente de animais aquáticos e semiaquáticos e para saber o quanto essa característica estaria auxiliando na alta densidade da espécie na região.

Administrada pelo ICMBio, a Estação Ecológica de Taiamã foi criada em 1981 em uma área do Pantanal onde se inicia a planície fluvial não confinada, com as águas de inundação se espraiando para fora dos canais dos rios. A reserva possui 11.555 hectares e está localizada na porção norte do bioma, no município de Cáceres. Ela é basicamente uma ilha fluvial de campos inundáveis, delimitada ao sul pelo Rio Paraguai e ao norte por um canal chamado Bracinho. Para se chegar até ela, só de barco a partir de fazendas da região.

O isolamento da Taiamã tem como aliada a existência de outra unidade de conservação, a Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Jurban. Essa área protegida, bem maior que sua vizinha do ICMBio (são 35.531 hectares), é contígua a toda face norte da estação ecológica, sendo elas separadas pelo Bracinho. “As características do terreno ajudaram a impedir a ocupação da área e a garantir seu isolamento”, destaca Morato.

De acordo com o chefe da unidade e um dos autores do artigo, Daniel Luis Zanella Kantek, a variação do nível da água em Taiamã permite que as onças-pintadas habitem a estação ecológica durante períodos úmidos e secos. “Imagino que essa característica, juntamente com a grande quantidade de presas, permita que a densidade da espécie seja alta. Outras regiões do Pantanal com maior variação no nível da água não permitem o uso das áreas ao longo do ano”, explica Kantek.

Vista aérea da Estação Ecológica de Taiamã. Foto: Daniel Kantek.

Maior densidade de onças do planeta

Apesar de estudos anteriores já contarem com algumas imagens das onças-pintadas em Taiamã, foi a partir da instalação de 59 armadilhas fotográficas que houve um grande incremento na base de dados, principalmente para a quantificação dos felinos. Durante o período em que as armadilhas foram instaladas, entre 2014 e 2018, os pesquisadores conseguiram registros de 69 indivíduos. Havia onças-pintadas em 95% das imagens captadas pelas câmeras.

Para estudar o comportamento dos animais, os pesquisadores também reuniram informações sobre o deslocamento de sete onças-pintadas machos e seis fêmeas que foram capturadas e receberam rádio-colares (GPS) entre dezembro de 2011 e abril de 2016, como parte de outros estudos em desenvolvimento, e com as análises da composição de fezes para identificação da dieta. Ao verificar o deslocamento dessas onças, os pesquisadores descobriram que em 96% do tempo elas permaneceram dentro dos limites da estação ecológica.

O número de onças e os dados sobre seu deslocamento reforçam a suspeita de que Taiamã talvez seja o local com a maior densidade de onças-pintadas do planeta: 12,4 indivíduos por 100 km². No Brasil, as maiores médias de densidade ocorrem no próprio Pantanal (10,3) e na Amazonia (10). O resultado também superou regiões consideradas de alta concentração da espécie por outras pesquisas, como a Amazônia peruana, os Llanos venezuelanos (savanas bastante similares ao Pantanal) e o Pantanal Sul brasileiro.

Apesar da grande quantidade de onças-pintadas na pequena Taiamã, a convivência entre felinos não é marcada por agressividade e disputas por território e alimento. Dados e imagens permitiram aos pesquisadores trabalhar com 80 registros de interações sociais entre animais adultos, incluindo indivíduos do mesmo sexo – o que indica não ser um comportamento voltado para reprodução ou para cuidado de filhotes.

Duas onças brincando juntas registradas por armadilha fotográfica na Estação Ecológica de Taiamã.

Foi o caso do macho identificado como M2, que por dois dias deslocou-se com outro macho, o M1, e oito meses depois ambos foram fotografados por uma mesma câmera com um intervalo de apenas cinco minutos entre cada um. Dois outros machos, M29 e M27, ​​passaram 30 minutos em frente a uma câmera brincando, com ações como rolarem juntos, jogos de lutas e trocas de mordidas suaves.

Chamou muito a atenção, também, os registros de onças-pintadas pescando juntas. Imagens revelaram dois machos adultos e uma fêmea e seu filhote mais velho capturando peixes em um comportamento que ainda não foi explicado se ocorreu por cooperação ou simplesmente por tolerância de proximidade.

“Isso não quer dizer que não haja uma hierarquia social que determine a prioridade de acesso a recursos entre as onças, assim como ocorre com outros carnívoros, principalmente durante o período de maior escassez”, ressalta o biólogo e professor de Ecologia da Conservação na Universidade de East Anglia (Inglaterra), Carlos Peres, que participou da pesquisa.

Onças-pintadas na Estação Ecológica de Taiamã. Foto: Daniel Kantek.

Alto consumo de peixes é raro entre onças

A teoria dos pesquisadores é de que a fartura de peixes e jacarés como fonte de alimento permitiu que um grande número de onças-pintadas se estabelecesse na região da Estação Ecológica de Taiamã. Mesmo tendo “áreas de vida”, expressão utilizada pelos especialistas para definir o território de cada animal, menores que os felinos da espécie de outros biomas e com sobreposição entre elas, os animais não precisam disputar por comida e acabam convivendo e apresentando comportamentos pouco habituais para a espécie.

“É surpreendente por causa da altíssima proporção de vertebrados aquáticos e semiaquáticos consumidos ao longo do ano, o que possibilitou, inclusive, claras alterações na socioecologia das onças-pintadas na área de estudo. Da mesma forma, ursos-pardos [Ursus arctos] no Alasca e na Columbia Britânica [Canadá], que consomem grandes quantidades de peixes durante a migração de salmões, também podem se congregar em pequenas áreas e disputar o acesso àquele recurso”, explica Peres.

As 138 amostras de fezes coletadas indicaram que a composição da dieta das onças-pintadas de Taiamã era de répteis (55%), peixes (46%) e mamíferos (11%), a maioria dos quais eram capivaras. Os répteis são, basicamente, jacarés-do-Pantanal (Caiman yacare), enquanto os restos de peixes encontrados nos excrementos não permitiram a identificação por espécie. Entretanto, as imagens das armadilhafotográficas revelaram felinos capturando cascudo (família Doradidae), pacu (Piaractus mesopotamicus), piranha-vermelha (Pygocentrus nattereri) e cachara (Pseudoplatystoma fasciatum).

“Embora onças em Taiamã consumam mais répteis aquáticos do que jamais foi observado, é o consumo de peixes que torna sua população verdadeiramente única. Pelo que sabemos, esta é a dieta mais piscívora de qualquer grande felino e entre qualquer hipercarnívoro [animal com mais de 70% de carne em sua alimentação] terrestre”, salienta o artigo.

Segundo o professor e pesquisador da área de Ecologia e Conservação da Universidade do Estado do Mato Grosso (Unemat), Manoel dos Santos Filho, que colaborou no estudo, as onças-pintadas são muito habilidosas em ambientes aquáticos e comumente se alimentam de presas desse meio, como peixes e répteis. “No entanto, a frequência do uso desse tipo de presa é alto na Estação Ecológica de Taiamã. Por se tratar de um ambiente praticamente inundado, com poucas áreas de terra firme, esses animais, principalmente no período chuvoso, caçam praticamente dentro da água”, explica.

Registro de onças pescando juntas na Estação Ecológica de Taiamã.

Estado de conservação

As onças-pintadas estão classificadas como “quase ameaçadas” na Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês). Na Lista Nacional Oficial de Espécies da Fauna Ameaçadas de Extinção, ela está como “vulnerável”. A população mundial é estimada em 173 mil animais. Para o Brasil, esse número é de cerca de 86 mil – no Pantanal, seriam 4 mil animais.

A perda e a fragmentação de habitat resultantes da expansão agrícola e pecuária, da mineração, da implantação de usinas hidrelétricas e da ampliação da malha viária são as principais ameaças à conservação das onças-pintadas. Não é raro também a caça por retaliação, quando proprietários de animais de criação matam os felinos para evitar perdas pela predação.

As onças-pintadas pantaneiras são conhecidas como canguçus, nome de origem tupi que significa “onça de cabeça grande”. Elas são maiores e mais fortes que as encontradas em outros biomas, podendo os machos chegar a 140 quilos e as fêmeas a 90 quilos.

  • Dimas Marques

    Editor-chefe do site Fauna News. Repórter, especialista em tráfico de animais silvestres

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