Reportagens

Defendida por Jair Bolsonaro, pesca de arrasto pode voltar à costa do Rio Grande do Sul

O estado guarda um importante berçário marinho. A disputa pela proteção da região, entre governo federal e entidades gaúchas, pode ser definida com as eleições

Raissa Genro ·
27 de outubro de 2022 · 1 anos atrás

Além da Amazônia, a vida marinha do Sul do país também pode perder parte de sua proteção em caso de uma vitória de Jair Bolsonaro, do Partido Liberal (PL), à reeleição.  Uma legislação do Rio Grande do Sul, que proibiu a pesca de arrasto, vem sendo questionada pela gestão do atual presidente e candidato. 

Bolsonaro chegou a defender a atividade abertamente durante o primeiro turno da campanha, em entrevista ao podcast Flow, em agosto. “Tinha uma lei estadual no Rio Grande do Sul que não permitia pesca de arrasto ali na costa do Rio Grande do Sul e por tabela pegava Santa Catarina e São Paulo. E estava parado no supremo. (..) Kássio tornou inconstitucional a lei lá. Que tem que ser. Quem legisla sou eu. Né? Eu e o Congresso Nacional e não a Assembleia Legislativa e o governador do Rio Grande do Sul. E agora o pessoal pode pescar de arrasto camarão na costa do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. O que o camarão fazia quando não era permitido pescar? Ele migrava lá pra Argentina, o pessoal pescava lá e vendia aqui. Então essa questão de visão é dada a liberdade que eu dei pros ministros e a liberdade que o que os ministros deram pros seus secretários, pra correr atrás, buscar alternativa.”,  relatou Bolsonaro, descrevendo como foi o processo que tentou liberar o arrasto na região.

 Em sua fala sobre a atividade, além de se equivocar sobre a liberação da pesca, Bolsonaro ignorou o fato de que em junho, o setor pesqueiro do Rio Grande do Sul entregou uma carta, assinada por 25 entidades,  a todos os candidatos do primeiro turno da eleição presidencial, destacando justamente os impactos da volta da liberação da pesca de arrasto no estado e defendem uma nova legislação estadual restritiva à prática.

“A  lei  nº  15.223/2018  nasceu  das  discussões  e  articulações  realizadas  pelo  Setor Pesqueiro  Gaúcho  como  forma  de  superação  dos  históricos  impactos  socioambientais provocados pela pesca de arrasto industrial ao longo da costa gaúcha. Trata-se de uma lei construída de baixo para cima, em um processo no qual o principal protagonista foi o Setor, que   superou  todas   as   suas   barreiras   internas,   construindo   uma  unidade   inédita   e fundamental para uma vitória que inicialmente parecia inalcançável. Esta Lei hoje é alvo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no STF (Supremo Tribunal Federal) movida pelo Partido Liberal com apoio do Governo Federal, onde se busca o retorno da pesca de arrasto  na  costa  gaúcha, uma  arte  de pesca  mundialmente  conhecida  como  danosa  aos ecossistemas e à sustentabilidade socioeconômica das comunidades pesqueiras.”, diz trecho do documento.

Hoje, estão registrados no país, cerca de 5.225 barcos de arrasto. Destes, sete em cada dez (ou seja, 3.700) atuam no Sul e Sudeste.

A atividade do arrasto consiste em uma grande e pesada rede ligada por duas hastes, que chega ao fundo do mar e é puxada por uma embarcação. O processo mexe com os sedimentos do fundo do mar deixando a água mais escura, ficando imprópria para muitas espécies e destruindo o habitat de pequenos organismos. 

Pesquisadores compararam essa modalidade de pesca ao corte de uma floresta tropical. “Essa forma de pesca pode ser comparada ao correntão”, compara Ana Spinelli, extensionista rural da Emater Rio Grande do Sul, responsável pela extensão pesqueira estadual e coordenadora da Câmara técnica de pesca do Conselho Gaúcho de Aquicultura e Pesca Sustentáveis (Congapes), citando a técnica usada em florestas, na qual correntes são ligadas por dois tratores, que percorrem uma área em paralelo retirando toda a vegetação e não apenas o que é de interesse comercial.

 Além de causar um grande impacto na fauna e flora do fundo do mar, esse tipo de pesca recolhe uma grande quantidade de indivíduos que são jogados fora, desperdiçados, por ainda não terem tamanho para comercialização ou por não serem de interesse comercial. 

A riqueza natural do cobiçado Litoral Sul 

Ao sul do Brasil, as águas frias do litoral gaúcho são ricas em biodiversidade de recursos pesqueiros, área de alimentação, crescimento, berçário marítimo e fonte de pesca para o sul e sudeste do país. 

A região, porém, vinha sendo ameaçada pelos arrastões, e  desde setembro de 2018 ganhou a proteção da Política Estadual de Desenvolvimento Sustentável da Pesca, que foi aprovada por unanimidade na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. É essa lei que segue em debate no STF. 

Essa legislação ficou conhecida como “Lei das 12 milhas”, por, entre outras questões, proibir a “utilização de toda e qualquer rede de arrasto tracionada por embarcações motorizadas, em todo território do Rio Grande do Sul, incluindo as 12 milhas náuticas da faixa marítima da zona costeira do Estado”. 

“É como uma grande fazenda embaixo da água”, frisa Martin Dias, oceanógrafo, diretor científico da Oceana, organização internacional focada exclusivamente nos oceanos. “O local pode e deve ser fonte de pesca, mas a questão é como ela é feita”, destaca Martin.

“O fundão arenoso é a base do ecossistema, maior parte do ambiente marinho gaúcho. Quando se destrói grandes extensões (como é o caso da pesca de arrasto), há desequilíbrio”, explica José Truda Paluzzo, diretor do Instituto Brasileiro de Conservação da Natureza (Ibracom). 

Em todo o Atlântico Sul Ocidental, o Rio Grande do Sul tem a maior concentração de espécies de baleias e golfinhos, desde a linha do Equador até a Antártica, com cerca de 80% das espécies que ocorrem na costa brasileira.

Entre as espécies que dependem da integridade do litoral sul gaúcho estão as tartarugas-verdes, ameaçadas de extinção. Esses animais permanecem no litoral do Sul para se alimentar de algas e peixes no período de transição para a vida adulta.

O litoral gaúcho é um dos ecossistemas mais diversos do continente, marcado por visitas de animais de climas tropicais e temperados, que utilizam as correntes marinhas do sul do país em suas rotas migratórias.

Leões-marinho em Torres, no Rio Grande do Sul. Foto: Reprodução/RBS

Visitam a região três espécies de lobos-marinhos, o leão-marinho-do-sul, várias espécies de cetáceos, como a toninha, o boto-da-barra e a maior das baleias dentadas, a cachalote.

Pescadores tradicionais ameaçados

Essa modalidade também afeta a economia local e os pescadores tradicionais. O setor pesqueiro do Rio Grande do Sul tem sido reduzido desde a década de 1980, afetando tanto pescadores artesanais, como industriais, tendo forte ligação com o arrasto de fundo. 

Um Relatório feito pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG) identificou que sete espécies já sofreram redução de estoques por serem alvo desse tipo de pesca: a corvina (Micropogonias furnieri), a castanha (Umbrina canosai), a pescada (Cynoscion guatucupa), a pescadinha (Macrodon atricauda), o linguado (Paralichtys patagonicus), a abrótea (Urophycis brasisiensis) e a cabrinha (Prionotus punctatus). 

Todas tiveram redução de 50% no período analisado – 15 de novembro de 2017 a 30 de março de 2018 -, ou seja, logo antes da Lei estadual mais restritiva. Somam-se a estas espécies, os camarões, conforme o tipo de frota utilizada. 

As embarcações utilizadas no arrasto na região, são, conforme Ana Spinelli, das décadas de 1960-70, tendo passado por pouca ou nenhuma modernização, estando muitas vezes sucateadas. 

No geral, essas embarcações vêm do litoral catarinense, “concentrando renda na mão de poucos armadores”, afirma José Truda, tendo em vista que o arrasto industrial não é uma tradição gaúcha, mas sim outros formatos de pesca, com menor impacto. 

Foram justamente os pescadores industriais e artesanais do Rio Grande do Sul que começaram a mobilização para que a Lei chegasse a ser aprovada no legislativo estadual. 

Bolsonaro e a batalha jurídica

O temor dos pescadores tradicionais, pesquisadores e ambientalistas é que, caso reeleito, Jair Bolsonaro use do seu poder político para derrubar a “Lei das 12 milhas”. Algo que já vinha sendo feito desde 2019, quando o PL entrou no STF com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, a AID 6.218, com o objetivo de questionar a legitimidade jurídico-constitucional do Rio Grande em legislar na sua zona costeira, tendo sido negada em 10 de dezembro de 2019. 

Em 2020, o ministro Kassio Nunes (STF), indicado por Bolsonaro e que entrou após a aposentadoria do ministro Celso Mello, alegou que a chamada Lei das 12 milhas iria contra a soberania da União e concedeu uma liminar. 

Bolsonaro chegou a usar suas redes sociais para comemorar a decisão, posando com o ministro e o secretário Nacional de Aquicultura e Pesca, Jorge Seif Júnior, que resumiu a decisão. “É um grande dia para a pesca brasileira. O ministro Kássio Marques, em respeito à Constituição, restaurou a atividade no litoral do Rio Grande do Sul”, declarou Seif Júnior ao lado de Bolsonaro.

Jair Bolsonaro e o secretário Nacional de Aquicultura e Pesca, Jorge Seif Júnior. Foto: reprodução/Redes Sociais

Porém, estados como Amapá, Rio de Janeiro, Alagoas, Rio Grande do Norte, Maranhão, Ceará, Pará, São Paulo e Pernambuco já têm legislações de restrição aos arrastões. Por isso, em 2021 a Secretaria de Pesca e Aquicultura suspendeu novamente o arrasto motorizado nas 12 milhas náuticas da faixa marítima da zona costeira, dando como prazo a implementação do “Plano para a Retomada Sustentável da Atividade de Pesca de Arrasto na Costa do Rio Grande do Sul”. 

No mesmo mês, pesquisadores, em artigo publicado na revista Science Letters, avaliaram que a ação de Kassio Nunespode ser um enorme retrocesso na restauração ecológica e pesqueira”. Porém, independente do alerta científico, o plano de retomada foi aprovado em abril de 2021. 

Em 2022, mais disputas jurídicas ocorreram, desta vez entre os estados do Sul. Em Santa Catarina uma portaria de março liberou a pesca de arrasto durante o ano todo, alegando que ela é feita por pescadores profissionais artesanais tradicionais. 

Em virtude disso, a Assembleia Legislativa gaúcha envolveu o Ministério Público e suspendeu, em abril de 2022, a portaria que trata do Plano de retomada, e, também a que descreve regras para o arrasto motorizado de camarão na zona costeira adjacente ao Estado do Rio Grande do Sul.

Agora, o futuro dos berçários marinhos do Sul do país dependerá de quem ocupar o Palácio do Planalto a partir de 2023. 

  • Raissa Genro

    Jornalista que há mais dez anos atua na comunicação ambiental

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