Reportagens

Estudo amplia de 39 para 74 os modos de reprodução conhecidos dos anfíbios e cria nova classificação

Estudo propõe um novo sistema de classificação dos modos reprodutivos para toda essa classe de animais composta por anfíbios anuros (sapos, rãs e pererecas), salamandras e cecílias (cobras-cegas)

André Julião ·
14 de outubro de 2021 · 2 anos atrás

Estudo brasileiro publicado na revista Salamandra evidencia como os anfíbios são animais versáteis no que diz respeito a modos reprodutivos: seus ovos e larvas podem se desenvolver de pelo menos 74 formas diferentes.

Assinado por cientistas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade Estadual Paulista (Unesp), o artigo compila dados disponíveis na literatura especializada e coletados pelos autores ao longo de décadas de estudo. Além disso, propõe um novo sistema de classificação dos modos reprodutivos para toda essa classe de animais composta por anfíbios anuros (sapos, rãs e pererecas), salamandras e cecílias (cobras-cegas).

“O sistema de classificação anterior, que dava conta só de anfíbios anuros, indicava a existência de 39 variações. Esse número já é impressionante e muito superior ao de outros vertebrados, como répteis, mamíferos e aves, mas ainda não mostrava a real diversidade reprodutiva dos anfíbios como um todo”, explica Luís Felipe Toledo, professor do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp e coordenador do estudo, que tem como primeiro autor o doutorando Carlos Henrique Luz Nunes-de-Almeida.

No total, foram analisadas estratégias de 2.171 espécies de anfíbios, incluindo 80% das famílias desses animais existentes no mundo. O subgrupo dos anuros, composto de sapos, rãs e pererecas e com 7.315 espécies conhecidas, é o mais diverso e teve 2.012 espécies representadas no estudo. Não à toa, contabiliza 71 modos de reprodução, 56 deles exclusivos.

Além da diversidade, o fato de transitarem entre ambientes terrestres e aquáticos fez com que os anuros desenvolvessem as mais variadas estratégias reprodutivas. Em várias espécies de sapos-pipa (gênero Pipa), por exemplo, as fêmeas carregam os ovos nas costas no meio aquático e os filhotes saem prontos para a vida na água, sem que haja uma fase de girino.

O sapinho Microhyla borneensis, da ilha de Bornéu, desenvolveu ovos que não podem ser digeridos pela planta carnívora Nepenthes ampullaria, que ele usa como ninho. Foto: Bjørn Olesen

No caso das pererecas-marsupiais (gênero Fritziana), as fêmeas, que são arborícolas, também carregam os ovos nas costas, mas na hora do nascimento de suas larvas procuram água acumulada em bromélias ou ocos de bambu, onde depositam os girinos, que concluem o desenvolvimento nesses ambientes aquáticos.

Endêmica da Serra do Japi, no Estado de São Paulo, a rãzinha-da-correnteza (Hylodes japi) deposita os ovos numa câmara subaquática construída no leito de pequenos riachos, comportamento antes registrado apenas em peixes.

Algumas espécies podem usar como ninho a água acumulada em bromélias, plantas carnívoras ou em ouriços da castanha-do-pará caídos no chão da floresta amazônica, como a perereca-de-alcatrazes (Scinax alcatraz), o sapinho Microhyla borneensis, de Bornéu, e o sapinho-da-castanha (Rhinella castaneotica), respectivamente.

“O estudo tem impacto em várias áreas. Não só para a história natural e o comportamento animal, mas também na compreensão da evolução dos anfíbios. Ele contribui ainda com futuros trabalhos de conservação e ecologia, pois mostra como espécies de anfíbios podem ser dependentes de certos hábitats e mesmo de outras espécies, como plantas. Uma lagoa que seca ou a extinção de uma bromélia, por exemplo, podem representar o fim de algumas espécies de sapos”, exemplifica Célio Fernando Baptista Haddad, professor do Instituto de Biociências da Unesp, em Rio Claro, coautor do estudo e responsável pela classificação anterior, publicada em 2005.

Algumas espécies têm mais facilidade para se adaptar, pois desenvolveram mais de uma estratégia para a reprodução. Esse é o caso do sapo Physalaemus spiniger, endêmico do Brasil, que pode se reproduzir de três formas distintas. A depender das condições locais, o casal pode fazer um ninho de espuma numa lagoa, no chão úmido da floresta ou dentro de uma bromélia.

Essa plasticidade pode ser uma vantagem em cenários de mudanças climáticas, por exemplo. Se as lagoas usadas secam ou as bromélias são extintas, em tese a espécie poderia sobreviver trocando de um modo para outro. Porém, a maioria das espécies, que contam com apenas um dos 74 modos reprodutivos, é considerada ameaçada por alterações no ambiente e no clima.

Diversidade

As fêmeas da Scinax rizibilis pulam dentro d’água para formar ninhos de bolhas, onde depositam os ovos. Foto: Diego Santana.

O novo sistema de classificação leva em conta 11 características. Considera, por exemplo, se ocorre postura de ovos ou diretamente das larvas ou filhotes; se os ovos são postos diretamente no local, em ninhos de espuma ou de bolhas produzidos pelo próprio anfíbio.

Os ovos podem ser carregados no corpo do animal, postos em ambiente aquático (rios, riachos, poças, lagoas, água acumulada em plantas) ou na terra (em pedras, encostas e mesmo em cupinzeiros). O sistema considera ainda se ocorre algum cuidado parental, como alimentação dos filhotes pelo pai ou pela mãe. As cecílias progenitoras das espécies Boulengerula taitanus e Siphonops annulatus, por exemplo, alimentam seus filhotes com a própria pele.

“A diversidade de modos de reprodução surgiu por pressões seletivas, como competição e predação. Uma lagoa, por exemplo, é um ambiente muito perigoso, cheio de predadores, como peixes, larvas de libélula e outros girinos carnívoros. Quando uma espécie consegue desovar fora da lagoa, numa folha pendurada acima dela, os ovos podem escapar de todos aqueles predadores aquáticos e o girino cai na água quando estiver pronto”, exemplifica Toledo.

Algumas espécies simplesmente pularam a fase larval e nem sequer saem da terra durante todo o ciclo de vida. A superfamília Brachycephaloidea, com mais de 1.100 espécies, entre elas o sapinho-pingo-de-ouro (Brachycephalus rotenbergae), se reproduz pelo chamado desenvolvimento direto. O filhote nasce do ovo como uma miniatura do adulto, pronto para a vida no chão da floresta, sendo suprimida a fase de girino.

Por conta de tamanha diversidade e das constantes descobertas, os pesquisadores ressaltam que o trabalho não é definitivo. Pelo contrário, a publicação abre caminho para que novos modos reprodutivos sejam descritos não só para os anfíbios, como para os outros vertebrados. A ideia é que o sistema possa incluir peixes, répteis, mamíferos e aves – e até mesmo ser adaptado para acrescentar novos grupos e modos de reprodução.

O trabalho é resultado de diferentes projetos de pesquisa ao longo dos anos, muitos deles apoiados pela FAPESP (08/50325-511/51694-714/23388-719/18335-513/50741-714/50342-8).

O artigo A revised classification of the amphibian reproductive modes, de Carlos Henrique Luz Nunes-de-Almeida, Célio Fernando Baptista Haddad e Luís Felipe Toledo, pode ser lido em: www.salamandra-journal.com/index.php/home/contents/2021-vol-57/2054-nunes-de-almeida-c-h-l-c-f-b-haddad-l-f-toledo-1/.

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