Direto de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, e desde fevereiro monitorando o avanço do fogo, a bióloga e presidente do Instituto Arara-Azul, Neiva Guedes, conversou com ((o))eco sobre o impacto desta que é uma das maiores tragédias ambientais do bioma em décadas e com proporções e consequências ainda incalculáveis.
As araras-azuis são emblemáticas do Pantanal e fazem parte do grupo de espécies consideradas carismáticas. Elas simbolizam a conservação e recuperação de uma espécie, fruto de um trabalho de mais de três décadas da bióloga, retratada no projeto de reportagem e documentação Mulheres na Conservação.
Conversamos com a Neiva Guedes na segunda-feira, dia 17 de agosto de 2020, quando o fogo já cercava a área de dormitório da Fazendo São Francisco do Perigara, a 150 km de Cuiabá. Esta é uma região única para a espécie, representando 15% da população total destes animais livres na natureza. Os impactos ainda estão acontecendo. Mas as perspectivas de futuro para a espécie não são boas.
((o))eco: Qual é importância da Fazenda São Francisco do Perigara para a espécie?
Neiva Guedes: A situação do fogo no Pantanal está ocorrendo desde fevereiro. Venho acompanhando, mas a distância. Começou na região de Corumbá, Serra do Amolar e um pedacinho da Bolívia e Paraguai, mas não tinha saído dessa região. No final de julho, recebi uma mensagem de que o fogo estava indo para a região da Fazenda. Ela faz divisa com um território indígena, da etnia Bororo e com a RPPN Sesc Pantanal, a maior RPPN do centro-oeste, com 110 mil hectares. Na beira do rio São Lourenço tem esta propriedade privada, com 25 mil hectares. A importância dela para a conservação das araras é que ela possui um ponto tradicional há mais de 60 anos usado como dormitório pelas aves. Isto só foi possível porque o proprietário original, o falecido Francisco Barreto (hoje a fazenda está a cargo das irmãs Ana Maria Barreto e Maria Ignez Barreto), quando adquiriu a propriedade nos anos 1960 observou que havia na área um aglomerado das araras perto da sede. Centenas de araras iam para essa região todas as noites.
Quando comecei o Projeto Arara-Azul, o Sr. Barreto me mandou e-mail relatando isso. Demorei um pouco para ir ao local e constatar que realmente era uma coisa única. Nunca tinha visto tamanha concentração. Em 2001 começamos a monitorar a área, com o Pedro Scherer fazendo o censo. E em 2019, publicamos um estudo sobre a flutuação dessa população entre os períodos de seca e cheia. E constamos que é uma população única. Não existe em outro lugar do planeta outra concentração assim. São araras não reprodutivas na sua maioria (jovens e adultos não reprodutivos) que congregam todos os finais de tarde para dormirem juntas. Esta população representa 20% de todas as araras livres na natureza do Pantanal e da população total de araras-azuis representa 15%.
A Fazenda São Francisco do Perigara é uma propriedade que tem o estilo tradicional de manejo extensivo. Com pouca gente, cuidam do gado a cavalo. O gado vai rodando de piquete ao longo do ano pela propriedade e ele vai trazendo os frutos de acuri e bocaiuva. O boi come a polpa e regurgita montículos pelo campo onde as araras aproveitam para se alimentar. Portanto, além do dormitório, temos essa concentração das araras durante o dia seguindo o gado. Por isso, esta região é extremamente importante não só para o Instituto, mas para a conservação das araras.
E qual é o impacto para esta população única com esta realidade do fogo cercando a área de dormitório?
Neiva: Têm araras não reprodutivas, mas a área da Fazenda também têm araras reprodutivas. Temos 30 ninhos naturais cadastrados e mais 20 ninhos artificiais instalados, porque não havia mutas cavidades quando a gente começou a monitorar a região.
Essa propriedade também tem uma parte de vegetação tipo uma floresta, chamada Cerradão e uma outra de Pantanal com capões, cordilheiras, onde ficam mais o gado e as araras. Fomos alertados no final de julho de que o fogo estava chegando na área, vindo da reserva indígena, onde queimou quase tudo. E partir daí começamos a ligar para todos nossos contatos que pudessem contribuir de diferentes formas, porque sabemos do impacto deste fogo para a araras.
O primeiro impacto sabido é que vai faltar comida. Isso é certo, porque já queimaram quase todas as palmeiras de acuri e bocaiuva, somado ao fato de que já estava faltando água. Já estava muito seco, os tanques e poços tinham secado, as folhas estavam extremamente secas. Se não tivesse o fogo, já seria muito duro para as araras suportarem. Além da área de alimentação, devem ter ninhos que foram queimados, mas que só vamos saber quando conseguirmos fazer uma avaliação do impacto, só sendo possível quando acabar totalmente o fogo. Sabemos que os efeitos das queimadas naquela área são muito grandes.
A primeira medida que tomamos como Instituto, junto a parceiros e voluntários, foi tentar proteger pelo menos o dormitório. Porque é um espaço pequeno, basicamente um capão em frente a sede. Até este dia [da entrevista, 17/08/2020] ainda está conservado, porque tem se feito de todos os esforços para protegê-lo. A arara é um bicho que tem rota, horário, tem costume.
Outro agravante: é nesta região que, desde 2015, estamos vendo as araras sofrerem outro impacto, do herpes vírus.
Nós devemos ir à região assim que chover, quando tivermos certeza de que o fogo acabou, para poder fazer uma avaliação do impacto. Espero que até setembro. Uma bióloga associada ao Instituto, Luciana Ferreira, esteve no sábado [15/08] no dormitório e contou só 30 araras, onde já chegamos a contar 700 a mil indivíduos dormindo. Não quer dizer que morreram, mas que as araras se espalharam. E desta forma terão dificuldades para encontrar alimento, ninho e abrigo.
Ano passado o Pantanal também já tinha sofrido muito com as queimadas. E este ano, na época de cheias, há relatos que em regiões nem teve cheia. Em três décadas de trabalho na região, você já tinha visto algo semelhante?
Neiva: Quando olhamos estudos da Embrapa e do INPE de longo de prazo feitos nesta região você observa os períodos de seca e cheia no Pantanal são cíclicos. E o nível de água também varia. Tem anos de cheia e anos de seca. Mas isso vai flutuando. Porém o que vem ocorrendo agora é muito mais duro do que qualquer ocorrência do passado. Nesta região, a última grande seca e queimada ocorreu na década de 1990. A gente está falando de uma região que não pegava fogo em 30 anos, na extensão que pegou agora.
É uma situação mais diferenciada e pelos estudos que venho acompanhando, vem sendo agravada pelos desmatamentos na Amazônia, que vem crescendo desde o ano passado. Isso faz com que diminuíam as chuvas na região. A gente vive aqui dos rios voadores, com a influência da Amazônia, dos ventos e do oceano.
Qual é o impacto de longo prazo na espécie com esta alteração, tanto dos dormitórios quanto de alimento. Quanto prejudica a reprodução?
Prejudica não só a reprodução, mas a vida. Sentimos na pele, eu e minha equipe, estas chamas. Porque sabemos, estudando as araras, o que isso impacta, não só no momento, com este sofrimento, mas a longo prazo para uma espécie que tem pré-requisitos tão frágeis e únicos.
A exemplo do Refugio Ecológico Caiman, que teve aquele fogo no passado, já falávamos que ia faltar comida, aumentar a disputa nos ninhos, aumentar a predação. Não deu outra. Este ano começou a reprodução e nunca em trinta anos tinha visto araras-azuis adultas sendo predadas dentro dos ninhos.
A escassez de comida não é só para as araras. Para outros animais também e a disputa fica muito grande. Outra coisa que não tínhamos visto até agora, briga de arara por cavidades. Por mais que criemos formas de conservação, como colocar as cintas nas árvores para proteger os ninhos da predação de jaguatiricas e iraras, tem momentos que não conseguimos evitar, porque algumas árvores têm outras conexões.
Nós falamos muito de araras porque são as espécies com um foco maior no nosso estudo, mas estamos também falando de mais de vinte espécies na época de reprodução que ocupam as mesmas cavidades. Todos os animais estão sofrendo e perdendo as relações. Nosso lamento é porque sabemos o que vai acontecer.
A espécie já tinha saído da Lista Vermelha brasileira de extinção e estava no estado vulnerável da lista da IUCN. Vai mudar depois destas queimadas?
Neiva: Vai ter um impacto sim. Participo de um grupo e forneço informações que temos coletado. São avaliados uma série de critérios e caraterísticas, mas é muito provável que ela volte para a lista. Os resultados do nosso trabalho têm ajudado a melhorar, mas não tem sido em escala suficiente. Há 15 dias vimos a venda de cocar aqui na região com penas de arara azul e outras araras, o que é proibido. Apreensões de Canindé, na Austrália seis filhotes de arara azuis aprendidos… Só estão se somando os fatores.
Vamos reavaliar os critérios da lista brasileira. Mas que acaba influenciando na lista internacional, pois a maior parte da população está no Brasil.
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Façam uma reportagem resumida.