Reportagens

Justiça determina bloqueio de matrículas de fazendas em territórios tradicionais no oeste da Bahia

Entre os réus está Luiz Carlos Bergamashi, liderança do agronegócio. Ação foi aberta pelo governo a pedido das comunidades, que denunciam ação de pistoleiros a serviço da “grilagem verde”

Fernanda Couzemenco ·
15 de maio de 2023

A Justiça da Bahia determinou o bloqueio de 19 matrículas de imóveis localizados em Correntina, no oeste da Bahia, no âmbito de uma ação discriminatória impetrada pelo governo do estado, atendendo ao pleito da comunidade de Fecho e Fundo de Pasto Capão do Modesto, que denuncia a invasão de suas terras por empresários do agronegócio de algodão, milho e soja. Segundo a Justiça, os empresários averbaram suas Reservas Legais dentro do território tradicional da comunidade, manobra conhecida como “grilagem verde”. Juntas, as 19 fazendas perfazem um total de 11,2 mil hectares.

A sentença foi publicada na última quinta-feira (4) pelo juiz Matheus Agenor Alves Santos, em que ele acolhe o pedido de bloqueio de todas as matrículas listadas pela Procuradoria Geral do Estado (PGE), “bem como aquelas que porventura possam fazer parte da gleba sujeita a este procedimento discriminatório”.

A decisão determina também que o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) sejam oficiados, “acerca da proibição de derrubada da cobertura vegetal” nos imóveis – tocando em um ponto que também vem sendo denunciado há tempos pelas comunidades e por entidades ambientalistas da Bahia, que é a emissão, pelo órgão ambiental estadual, de Autorizações de Supressão de Vegetação (ASV) de forma irregular. Essa dinâmica tem permitido um crescimento intenso do desmatamento do Cerrado no oeste baiano, conforme mostrou o estudo “Desmatamentos irregulares no cerrado baiano: uma política de Estado” e a emissão de outorgas de uso da água de forma indiscriminada – ambos estudos realizados pelo Instituto Mãos da Terra (Imaterra), em parceria com a Universidade Federal da Bahia (UFBA) e apoio do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) e do WWF-Brasil.

Um estudo da Associação dos Advogados dos Trabalhadores Rurais (AATR) publicado no site Matopiba Grilagem e incluído na ação discriminatória, também mostra essa dupla agressão ambiental nos territórios das comunidades, bem como o processo de grilagem verde. Matopiba, bom lembrar, é um acrônimo formado pelas iniciais dos estados Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, região de forte expansão agrícola caracterizada, segundo denúncia da AATR e outras entidades, pela dobradinha de devastação socioambiental e grilagem de terras.

Até o momento, constam como réus da decisão 17 pessoas físicas e jurídicas, entre elas, a transnacional Agrícola Xingú S.A, com sede brasileira em Brasília/DF; o empresário Luiz Carlos Bergamaschi, residente na Fazenda Xanxere, em Correntina, e presidente da Associação Baiana de Produtores de Algodão (Abapa) em segundo mandato consecutivo; o empresário Dino Faccione, ex-diretor da Abapa e residente na Fazenda GBC, em  Correntina; e os irmãos Walter Yukio Horita, Wilson Hideki Horita e Ricardo Lhossuke Horita, domiciliados em Barreiras/BA e responsáveis pela expansão, para a Bahia, dos negócios do Grupo Horita, originário de São Paulo.

Atentados e depredações

Nas quase 800 páginas que compõem a inicial da ação impetrada pela PGE em dezembro passado, há robustas evidências de apropriação indevida dos imóveis e denúncias de ações violentas praticadas por jagunços contra os moradores das comunidades tradicionais.

Na síntese que que abre a petição, o procurador do estado, José Paulo Sisterolli Batista, afirma que, ao longo do processo administrativo que antecedeu a judicialização – aberto pela Coordenação de Desenvolvimento Agrário (CDA) em abril de 2021 – foi possível verificar a legitimidade do pedido de discriminatória feito pela Associação Comunitária de Preservação Ambiental dos Pequenos Criadores do Fecho de Capão do Modesto, devido à “sobreposição quase total da área a ser discriminada do Fecho de Pasto Capão do Modesto, conforme análise das matrículas informadas pelo cartório de Registro de Imóveis da Comarca de Correntina/BA”.

Em outro momento, com base em denúncia protocolada pela Associação dos Advogados dos Trabalhadores Rurais (AATR), o procurador relata que membros da direção da Associação “vêm sendo ameaçados de morte e, desde 2014, diversos Boletins de Ocorrência foram lavrados sobre esses fatos na Delegacia do município, sem que providências fossem tomadas pelas autoridades locais”.

A denúncia destaca atuação da Agropecuária Talismã Ltda e família Faccione, que “vêm se utilizando dos serviços de milícias privadas, sob fachada de empresas de segurança, para expulsar as famílias que fazem uso da área para o pastoreio de animais – atualmente, ‘Estrela Guia’”.

A Talismã, prossegue o procurador, vem, desde essa data, “intensificando suas ações para consolidar em campo a grilagem cartorial que registrou ilegalmente como suas as terras de fecho de pasto destas comunidades”.

Entre os atos violentos praticadas, estão ameaças, cárcere privado, fechamento de estradas tradicionais, da circulação ostensiva e permanente pela área portando armas de grosso calibre, além de afirmarem que vão construir guaritas para controle de acesso das pessoas que passam pela estrada a caminho das comunidades”.

Em resposta à reportagem, a empresa informou que “o Sr. Dino Faccione não representa a Sementes Talismã e não faz parte do quadro societário”. Segundo a AATR, a Talismã passou por um processo de falência e, de fato, a empresa não consta no polo passivo da ação discriminatória, apenas Dino Faccione.

Emboscada em mutirão

O caso mais recente, que ainda não se sabe relacionado a que empresa, ocorreu no dia 11 de abril, conforme relata Marcos Rogério Beltrão dos Santos, documentarista e integrante do Movimento Ambientalista Grande Sertão Veredas. O atentado aconteceu após um mutirão para reconstruir uma ponte e um rancho que haviam sido destruídos por pistoleiros, e foi denunciado em Boletim de Ocorrência.

A destruição das benfeitorias, conta, foi denunciada em boletim de ocorrência, mas nada foi feito pelas autoridades policiais, que tampouco atenderam ao pedido de segurança durante o mutirão, feito pelo vereador Ebraim Dentista (PSD), presidente da Comissão de Meio Ambiente da Câmara Municipal de Correntina.

“A polícia não foi e os pistoleiros armaram emboscada. Pessoal estava indo embora e eles abriram fogo. Dos trinta que estavam lá, acertaram três, um foi ferido na barriga, mas graças a Deus todos se recuperaram”, conta Marcos. Somente depois do atentado, prossegue, a Polícia Militar foi ao local, no mesmo dia, e a Polícia Civil, no dia seguinte. “Recolheram material para fazer perícia, encontraram cápsulas de balas de 12 e outros cartuchos”.

A advogada Eliene Santos da Guarda, que defende a Associação Comunitária de Preservação Ambiental dos Pequenos Criadores do Fecho de Pasto de Cupim, Sumidor e Cabresto (ACPAC), conta que os três já receberam alta e estão se recuperando. Porém, nenhum deles teve as balas retiradas de seus corpos.

“Um foi alvejado na clavícula, é um senhor de 67 anos, não fez cirurgia, reclama de dores. Outro possui 44 anos, foi alvejado na parte superior do braço direito, a bala se encontra alojada no braço, também não fez cirurgia. Ele sente dores, cansaço no braço, sente os dedos dormentes, como se tivesse perdido parcialmente a sensibilidade de dois dedos. Sente ainda dores. O terceiro tem a idade de 57 anos. É o caso mais grave, a bala perfurou o intestino e se alojou próximo à coluna, fez cirurgia de emergência diante do quadro grave, mas não foi possível retirar a bala, diante do risco”.

Ela chama atenção para o fato de que, no dia seguinte, quando a Polícia Civil retornou na área acompanhada de um trabalhador, percebeu que os vândalos haviam retornado ao local e destruído a ponte e o rancho recém reconstruídos. “É a certeza da impunidade. Por que eles se sentem tão impunes, tão seguros, ao ponto de retornarem e terminar o serviço de destruição? É um caso a investigar”.

Os relatos de Eliene e Marcos coincidem em acentuar o aumento da violência contra as comunidades a partir de setembro passado. Durante as eleições presidenciais, os moradores das comunidades chegaram a receber com frequência, em suas redes sociais, fotos de arsenal pesado, com balas fazendo o desenho do número 22, da legenda do então candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL). “A gente entendeu como que um recado deles dizendo: ‘olha, se vocês resistirem, nós temos bala pra trocar’”, interpreta o líder comunitário.

Corrupção

Correntina é um dos epicentros da violência perpetuada contra comunidades tradicionais do oeste da Bahia desde o final dos anos 1970 por milícias armadas. Marcos Rogério conta que, naquele primeiro momento, os jagunços atuavam a serviço de empresas que derrubaram a vegetação nativa para plantio de monocultivos de eucalipto e outras commodities, com fartos incentivos do governo militar.

Área desmata à esquerda já é área do conflito entre a comunidade e os grileiros. Foto: Divulgação.

Após a falência do negócio, muitas terras foram quase abandonadas, mas voltaram a despertar interesse do agronegócio a partir da década de 2010, para a prática da chamada grilagem verde, em que empresas do agronegócio de soja, milho e algodão compraram as terras griladas inicialmente para o “reflorestamento”. “O professor Areovaldo Abelino chama essas fazendas de ‘propriedades beliche’, que você tem vários documentos na mesma área”, metaforiza Marcos.

O processo de grilagem, explica, se inicia a partir de documentos antigos. “Os grileiros geralmente pegam um documento antigo, feito em 1941, por exemplo. Nessa época não tinha costume de medir. Colocava só o valor que pagou nela e falava os limites da propriedade: banhada na margem do Rio Correntina, com divisa ao norte com fulano de tal, ao sul com fulano de tal… Os grileiros pegavam esses documentos, que muitas vezes não tinha nem o nome da comunidade, então ia no cartório, e, mediante corrupção, pegava essa matrícula e com apoio de juiz, promotor, órgãos estaduais e federais, faziam uma retificação de área. É como fazer uma nova matrícula, uma nova escritura, com o tamanho dela, maior que o verdadeiro”.

O ambientalista ressalta que a instauração dos processos de discriminatórias no Capão do Modesto é uma vitória das comunidades sobre a conivência histórica do governo do estado. Além da que já recebeu sentença judicial, há outras duas abertas, sendo que uma delas também já foi judicializada pela PGE – referente a uma área de 28,11 mil hectares na comunidade de Fecho de Pasto Vereda da Felicidade (processo 8000165-77.2023.8.05.0069) – e outra ainda está na fase administrativa, na CDA.

“Há uma certa cumplicidade do estado da Bahia com o agronegócio. Quando os técnicos do CDA estavam em campo fazendo os estudos da discriminatória, o governador se reuniu com o pessoal do agronegócio, inclusive com o presidente da Abapa, o Bergamashi, que é um dos réus nessa ação. Um dos assuntos discutidos foi as ações discriminatórias, a própria Abapa disse isso no site dela. Depois dessa reunião, os técnicos foram chamados para sair de campo. A desculpa foi a pandemia, mas a pandemia diminuiu e eles não voltaram. E depois dessa reunião também os conflitos só acirraram, os pistoleiros voltaram pra cima das comunidades com mais violência, acho que na tentativa de expulsar mesmo as comunidades, já que as discriminatórias tinha começado”.

Pressão popular

Marcos avalia que a decisão de sair da inércia foi motivada pelo aumento das denúncias sobre a violência praticada pelos jagunços. E somente essa pressão popular, da sociedade civil e da imprensa pode fazer com que outros processos sejam iniciados. “Uma das dificuldades do estado não querer fazer as discriminatórias é porque praticamente o oeste todo da Bahia foi feito nesse processo de grilagem, ninguém tem documento legal dessas terras, não existia uma única fazenda aqui antes de 1970. Todas as fazendas começaram a existir no final de 1970 pra 1980”.

Avaliação semelhante é da advogada Aryelle Almeida, integrante da AATR. A decisão judicial no Capão do Modesto, afirma, “representa vitória das comunidades, da luta popular, da luta política dos povos de fundo e fecho de pasto. Nos últimos meses tem crescido bastante a violência contra as comunidades, o que resultou em diversas denúncias e muita mobilização, moveu muitos órgãos”.

A estratégia das comunidades, pontua, é que, ao denunciar os crimes de violência, atrelam a eles a questão territorial, que é a motivação real. “Essas questões criminais sempre têm como pano de fundo a questão territorial. Não basta resolver a parte criminal sem resolver a questão territorial. As comunidades, conscientes disso, além de buscar responsabilização dos crimes, danos, buscam também a regularização de seus territórios”.

Dois eventos cruciais para fortalecer a luta, destaca, foram as audiências públicas realizadas pela Ouvidoria da Defensoria Pública da Bahia, em outubro passado, quando órgão da Justiça e a Polícia se somaram na proteção das comunidades. “Diante dessas pressões, a CDA encaminhou para a PGE as discriminatórias, para fazer a judicialização”, observa Aryelle.

Os empresários Luiz Carlos Bergamashi, presidente da Abapa; e Walter, Wilson e Ricardo Horita, do Grupo Horita; bem como a empresa Agrícola Xingu, foram procurados pela reportagem para se manifestarem sobre a decisão judicial, mas não responderam até o fechamento desta edição. O Sr. Dino Faccione não foi localizado.

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Comentários 2

  1. ANTONIO MAGNO BEZERRA FONSECA diz:

    Aqui no Pará, precisa-se de uma autoridade competente para encarar a grilagem imperiosa que manda matar quem se opõe contra os mesmos, sendo que aqui nos incras regionais, quem manda são os coronéis imperiosos do gado e da grilagem imperiosa. Infelizmente ninguém toma nenhuma providência.


  2. Parabéns, Michael! Excelente reportagem. Por favor, sabe me dizer se tem gente estudando os efeitos do clima na Bacia do Rio Grande/Paraná? Grato