Cerca de 10 mil pés de moleque vindos da mandioca eram produzidos por semana na comunidade Ebenezer, em Itacoatiara, no Amazonas. Mas em 2024, a produção caiu para 4 mil pés – uma redução de 60% – devido à seca intensa que se abateu sobre o estado. Dependendo da água do rio para irrigar a plantação, os produtores acompanharam a morte das plantas junto com a baixa das águas.
“São dois anos que estamos sofrendo por conta dessa seca. Até então, nunca tínhamos passado por isso, e hoje não conseguimos captar água, já que captamos água das nascentes dos igarapés e lá tem muito pouca”, expôs o agricultor Adriano Teixeira, de 46 anos, que habita a região em torno do lago do Paracuuba, ainda seco por conta da vazante histórica. Outra razão que prejudicou a colheita foi o aumento de temperatura, que gera aquecimento do solo e perda de nutrientes.
Em um ano, o cultivo da mandiocultura na comunidade gera 200 toneladas. No entanto, em 2024 a temporada de seca dificultou a produção.
“O rio secou, então a gente não tem água suficiente para irrigar uma plantação. Por isso, a nossa produção caiu drasticamente. Muitas das vezes o produtor perde a plantação, porque ela morre. Além de que é muita pouca água para irrigar uma plantação de médio e grande porte, imagina uma mais extensa”, desabafou.
A realidade vivida no campo pode ser vista em números: entre os meses de julho e setembro do ano passado, a estiagem apresentou risco muito alto para o cultivo de feijão e milho em 34 municípios das regiões Norte, Nordeste e Sudeste do país. É o que revela os dados do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), que monitora o risco de seca na agricultura familiar, um dos principais grupos afetados pela estiagem e falta de irrigação.
A seca que acometeu a Amazônia e demais regiões se tornou a pior em 70 anos. Números do Cemaden apontam que, desde 1950, não se registrava uma estiagem tão extensa e generalizada como no ano passado. Assim como ocorreu com Adriano e demais famílias da comunidade Ebenezer, a ameaça ao sustento de comunidades que dependem da agricultura para sobreviver está cada vez mais recorrente, levando então a se pensar em novas adaptações para os manejos tradicionais que, na intensificação da mudança do ciclo hidrológico, não funcionam mais.
As mudanças climáticas preocupam produtores rurais, uma vez que o calor extremo e a vazante dos rios seca o solo e mata os plantios. No Amazonas, a severidade da seca para agricultura dificulta o planejamento e a execução da semeadura de arroz e milho, prejudicando as operações agrícolas. A situação é monitorada por meio do boletim da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e analisa os plantios de grãos no geral.
O clima é um fator crucial para o sucesso das culturas agrícolas, impactando o crescimento, desenvolvimento e produtividade das plantas, afirma José Ronaldo de Macedo, pesquisador da Embrapa Solos. Ele explica que o clima afeta as interações entre água, solo, planta e atmosfera, e eventos climáticos extremos como estiagem e ondas de calor podem impactar todo o processo fisiológico das plantas cultivadas.
“A conjunção dos efeitos da seca e da onda de calor afetam de forma negativa a produtividade das culturas em geral, principalmente as culturas menos resilientes à falta de água no solo. Não há como detalhar para cada cultura esse efeito conjugado da seca associada às ondas de calor, mas uma coisa é certa: as plantas cultivadas sofrerão alterações fisiológicas, gastando mais energia para retirar a água do solo pelas raízes e esse gasto de energia se refletirá na perda de produtividade”, detalhou Macedo.
Em São Sebastião do Uatumã, que fica 247 quilômetros a leste de Manaus, a produtora Elizangela Cavalcante também sofre com a perda de produção por causa da estiagem. O solo empobrecido e a falta de chuva retarda a colheita, dificultando o sustento da família. Apesar dos 89 km de distância entre a comunidade Ebenezer e a comunidade Caribi, na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Uatumã, as histórias das comunidades se entrelaçam por um motivo comum: as consequências da seca prolongada e a chuva abaixo do normal.
Ribeirinha e moradora da RDS, Elizangela é gestora do plano de manejo da UC, que na década de 70 foi ocupada pela população, após a instalação da hidrelétrica de Balbina – A RDS foi criada em 2004. É ali que Cavalcante retira o sustento e a alimentação da família por meio de uma movelaria administrada por ela e o marido, Gracilazo Rodrigues Miranda, que usa madeiras extraídas na própria região.

Moradores da RDS Uatumã mostram que manejo agroflorestal aliado à preservação ambiental é possível e pode conciliar produção e conservação, com baixo impacto à natureza. Foto: Idesam.
O manejo agroflorestal adotado pela comunidade do Uatumã trouxe o benefício da diversidade de frutos, além da exploração madeireira sustentável. O emprego da atividade surgiu com recursos do Fundo da Amazônia ao Projeto Cidades Florestais e apoio e assessoria técnica do Idesam (Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia).
Antes de ser uma unidade de conservação, os pais de Elizangela e dos demais moradores da RDS já plantavam. Na época, era possível ver que a terra ainda tinha fertilidade, porém, com o passar do tempo, o solo da região apresentou empobrecimento, o que impulsionou o advento de novas alternativas, como a adoção de Sistema Agroflorestais (SAFs). Com o SAFs, o objetivo é fazer floresta pelas próprias mãos.
No entanto, o manejo florestal não é a única saída comercial para a população local, já que os habitantes da reserva também colhem e plantam. Dessa forma, a seca que perdura e as altas temperaturas também são sentidas.
“Antes do SAFs, o terreno era muito batido. Fazíamos o roçado, colhíamos e depois plantávamos. E nessa replantação, o solo foi empobrecendo e a nossa produção reduzia. Entre 2023 e 2024, perdemos muitas árvores, justamente por conta do calor e da grande seca. A alta temperatura acaba com os nutrientes do solo”, disse.
O plantio de macaxeira ainda é possível realizar no período de seca, mas desde o ano passado a comunidade vem perdendo árvores como as de cupuaçu, café, cacau, coco e andiroba. O calor influencia na perda de umidade das árvores.
“Não temos sistema de irrigação, como bomba d’água ou um poço para nossas plantações. Por isso, ficamos à mercê da natureza”, ressaltou a ribeirinha.
Em entrevista concedida a esta matéria, Daniel Pinto Borges, secretário de estado de Produção Rural do Amazonas, afirmou que o órgão vem trabalhando para promover a sustentabilidade da produção por meio da implementação de sistemas de irrigação de baixo custo.
“Inicialmente, o programa atenderá agricultores de municípios que deverão ser declarados em estado de emergência climática, com incentivo na forma de bônus de adimplência de 70% do valor financiado pelo Governo e o produtor irá pagar 30% do valor disponibilizado“, disse Borges.
Relatos de agricultores feitos ao longo desta reportagem escancaram a ausência de água para irrigar a produção como um dos principais problemas imposto pela estiagem no Amazonas, a qual a agricultura familiar precisa encarar.
Marcus Biazatti, engenheiro florestal e coordenador técnico do projeto desempenhado pelo Idesam na RDS descreve como a falta de chuva e a presença de água no solo comprometem o processo natural de fotossíntese dos SAFs.
“Não tendo chuva, você não mantém a fotossíntese perfeita das árvores. E como elas precisam de água do subsolo para poder se desenvolverem, a seca faz com que a água superficial desapareça e também a água do subsolo comece a ser escoada, ficando com maior escassez no subsolo. Isso afeta diretamente a sobrevivência das plantas, principalmente das árvores que precisam de água, como o açaí”, disse Biazatti.
Em tempos de mudanças climáticas e vazantes históricas, os SAFs sobrevivem menos, o plantio é dificultoso e a saúde das árvores é prejudicada. O fogo se alastra com mais facilidade, incentivando um aumento nas áreas que podem ser incendiadas, já que a floresta perde a umidade e se torna propícia aos focos de calor.
Capacitar para adaptar
Para frear os prejuízos e perdas de produção, é preciso buscar maneiras de adaptação que possam amenizar os impactos nas áreas agrícolas. No Amazonas, dentre os enfrentamentos, estão ações de manejos sustentáveis e que preservam a natureza, como o agroflorestal, no qual é um modelo viável para a diminuição do impacto das mudanças climáticas na produção rural.
A reportagem esteve presente na primeira capacitação do projeto Floresta Viva Amazonas, que ocorreu na fazenda experimental da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e reuniu 30 produtores de quatro unidades de conservação do estado, com o intuito de capacitar os agricultores familiares a recuperar ecologicamente e implantar sistemas agroflorestais multifuncionais.
A técnica consiste em restaurar 200 hectares em áreas degradadas da Amazônia por meio dos sistemas agroflorestais e enriquecimento de capoeiras. O modelo de manejo, que busca fazer o reflorestamento dessas áreas, também reintroduz espécies nativas com outras de valor comercial ou essenciais para a segurança alimentar das comunidades locais.
Durante cinco dias, os produtores aprendem a transformar o campo em uma verdadeira floresta, diversificando a cultura de espécies em canteiros, roçados, hortas e capoeiras. A Amazônia, local de trabalho desses produtores, possui uma cobertura vegetal com cerca de 300 milhões de hectares e é conhecida pela abundância de espécies, tendo 13% das espécies arbóreas do mundo. Logo, para além da modificação no manejo em produções agrícolas, os agricultores podem aumentar ainda mais seu leque de diversidade em plantações.

Orimar Sicsu, agricultor e morador da RDS do Uatumã, foi um dos participantes da capacitação. Com o objetivo de reconhecer diferentes espécies florestais, além de obter conhecimento na coleta de sementes e marcação de matrizes, a atividade promovida pelo Idesam junto com o Instituto de Pesquisas Ecológicas (Ipê) proporciona a troca de saberes tanto tradicionais quanto científicas apresentadas entre botânicos, engenheiros florestais, ribeirinhos e indígenas.
“Ainda que eu tenha aprendido com meu pai, por exemplo, a fazer manejo agroflorestal e madeireiro, é muito importante poder conhecer um pouco mais sobre as técnicas dos SAFs, até porque ele é nossa fonte de renda e é um trabalho sustentável”, disse Sicsu, que também é professor de educação ambiental na comunidade e espera transferir os conhecimentos para seus alunos da região.
Ao praticar a germinação e o enriquecimento de áreas degradadas, Orimar, assim como outros agricultores, poderão traçar um caminho de recuperação de serviços ecossistêmicos, que a partir do manejo irão restaurar a funcionalidade ecológica das áreas, melhorando a qualidade da água, controlando a erosão e contribuindo para a regulação climática, fator crucial para não comprometer a vegetação da floresta já impactada pelos eventos climáticos recorrentes.

Agricultores adentram a floresta para identificar e mapear espécies de árvores e plantas, visando fortalecer práticas agrícolas sustentáveis. Foto: Idesam
O papel da agricultura familiar
O Censo Agropecuário 2017 mostra que a agricultura familiar concentra a maioria das unidades produtivas e gera uma parcela significativa de empregos, dado que no Brasil 76,8% dos estabelecimentos rurais são de agricultura familiar. Além disso, a participação dos pequenos produtores na alimentação é uma das partes essenciais para a segurança alimentar nacional.
“Pessoas que praticam agricultura familiar são os que mais sofrem, porque não necessariamente têm os instrumentos e os financiamentos para lidar com todo o problema da falta de água. Logo isso, de certa forma, ameaça a segurança alimentar do Brasil, não só na grande escala de produção, mas como também na escala local de produção”, disse Marina Hirota, meteorologista e pesquisadora da UFSC.
Hirota participou de um estudo desenvolvido por cientistas brasileiros e holandeses que calcularam a quantidade de água gerada em Terras Indígenas (TIs) amazônicas que influencia na cobertura de áreas agrícolas do Brasil – 80% da área agricultável do Brasil depende das chuvas geradas nas TIs.
No ano passado, o Amazonas enfrentou mais um período de seca extrema, já que a baixa precipitação de chuva na Amazônia ainda é consequência do El Niño, evento que causa o aquecimento do Oceano Pacífico, na linha do Equador. O fenômeno, que inibe a formação de nuvens e reduz o volume de chuvas na região, iniciou em junho de 2023 e terminou em junho de 2024.
O cenário extremo intensificado pelas mudanças climáticas se estende desde 2023, quando a estiagem afetou 80% das áreas agroprodutivas na Amazônia.
Agricultura familiar pede por modificações
A luta contra o colapso climático demanda de novas alternativas para manter a agricultura familiar, o sustento e a segurança alimentar em pé. Além da agrofloresta, é preciso pensar em práticas agrícolas que, ao modificar as formas de produção, ajudam a amenizar o impacto no campo.
Atualmente, com a emergência climática é necessário trabalhar com manejo agroecológicos, no qual dispensa o uso de insumos externos, como veneno e agroquímicos de forma geral. Segundo Fernanda Viana, coordenadora do programa de manejo de agroecossistemas do Instituto Mamirauá, o modelo tende ao máximo fazer com que os agricultores trabalhem com recursos naturais disponíveis no próprio local, evitando que eles criem uma dependência de compra de insumos.
“Às vezes, eles podem ficar impossibilitados de conseguir pela questão do deslocamento, principalmente em épocas de seca, que não conseguem se deslocar para lugares muito distantes. Então, o manejo é feito a partir de orientações de adoção de práticas sustentáveis. A gente nada mais faz além do que fortalecer as capacidades e habilidades que esses agricultores já têm do manejo tradicional que realizam”, explicou Viana.
No caso da adaptação para o manejo agrícola em tempos de estiagem, o uso da variação de sementes e plantas é uma das estratégias adotadas pelos agricultores do município de Tefé, onde o instituto atua. O incentivo à diversificação de espécies faz com que as plantas sustentem melhor a umidade naquele solo e tenham ali uma disponibilidade de nutrientes variados.
“Plantas variadas utilizam nutrientes diferentes. Logo, quando elas caem no solo de volta, como matéria orgânica para decomposição, elas também liberam nutrientes diferentes, além de auxiliar na manutenção da umidade”, disse a pesquisadora que acrescentou que manter o solo coberto também evita a incidência de sol diretamente sobre ele.
Os manejos tradicionais que as comunidades rurais empregam em suas áreas agrícolas atravessam séculos e permanecem como base para o desenvolvimento de plantios e cultivos, porém, com a mudança do ambiente para uma seca cada vez mais frequente e severa, solos sem nutrientes e menos chuvas, é preciso pensar em alternativas que possam minimizar o impacto das mudanças climáticas na agricultura familiar.
Esta reportagem foi produzida através da Bolsa Reportagem Vandré Fonseca de Jornalismo Ambiental, concedida pelo ((o))eco com apoio da Fundação Amazônia Sustentável e Fundação Grupo Boticário.
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