Os sinais de degradação ambiental saltam aos olhos de quem visita a vila de pescadores de Saracuruna, em Duque de Caxias. Cercados de plantas que proliferam em águas poluídas, barcos ancorados voltam cada vez mais vazios das pescarias. Peixes e caranguejos estão se tornando mais escassos nessa região da Baía de Guanabara, cortada por rios de águas escuras como o Sarapuí, invisível para a maior parte da população que não habita no seu entorno. O resultado desse panorama é o agravamento das condições de pobreza das famílias que dependem diretamente dos recursos pesqueiros para viver. Nesse cenário de muitas incertezas, pescadores se reuniram com ambientalistas e pesquisadores de universidades do Rio de Janeiro, a quem pediram ajuda para vencer a invisibilidade, reconhecida como uma barreira para a solução de seus dilemas socioambientais.
Como sair da condição de invisibilidade? Essa foi uma pergunta de vários pescadores à pedagoga Cleonice Puggian, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade do Grande Rio (Unigranrio). “O primeiro passo exige união. É preciso definir estratégias coletivas e colocá-las em prática como grupo. Nós sabemos que vocês existem e pescam aqui, mas grande parte da sociedade não acredita que tem pescador remando diariamente e buscando nessas águas as suas fontes de manutenção econômica e sociocultural”, afirma.
Para ela, somente a organização poderá contribuir para mudar o atual cenário de falta de perspectivas dessa categoria. “É preciso lutar por água limpa para pescar, livre de despejo de esgoto e de lixo, o que exige uma mobilização por políticas públicas de saneamento, entre outras”, afirma a pedagoga.
Cleonice ressalta que a sobrevivência em meio à degradação ambiental é apenas uma das nuances da violência sofrida pelos pescadores artesanais da Baía de Guanabara. A situação é apresentada em profundidade na tese de doutorado que orientou ‒ Pescadores artesanais e violência na Baía de Guanabara ‒, defendida em 2019, pelo biólogo César Bernardo Ferreira, na Unigranrio. As pesquisas anteriores com cavalos marinhos abriram caminho para que ele percebesse a gravidade dos problemas relacionados à pesca artesanal. O trabalho envolveu uma imersão em 20 relatos sobre agressões físicas, pressões e outros tipos de ameaças enfrentadas no cotidiano da profissão. “Tem pescador que já levou tiro”, denuncia a professora.
Em uma das conclusões apresentadas, a tese orientada por Cleonice indica que, apesar da violência, os pescadores “continuam sendo vistos entre embarcações offshore, estaleiros, polos petroquímicos e manchas de poluentes que flutuam sobre o espelho d’água da Guanabara”. Ainda segundo o trabalho acadêmico, eles “perseveram pela garantia do direito ao trabalho e à vida.” Na sua conversa com os pescadores de Duque de Caxias, quando mencionou esse trabalho realizado, a professora acrescentou: “vocês são como a natureza e também estão lutando para sobreviver”.
Algumas soluções apresentadas
Como forma de contribuição à comunidade de pescadores, foi sugerida pelos pesquisadores presentes à reunião a realização de análises laboratoriais independentes sobre a qualidade das águas na área de atuação dos pescadores em Duque de Caxias, por universidades e instituições de pesquisa do Rio de Janeiro.
Mas a química Bianca Dieile, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), alerta que provar que uma área foi contaminada por algum empreendimento é um processo demorado e que envolve inúmeros recursos judiciais. Enquanto espera por um desfecho, a população afetada por esse tipo de problema vai perdendo a saúde. “É possível trabalhar com análises da água e de outros indicadores das condições ambientais. Mas enquanto isso, nós também podemos pensar em desenvolver outras ações alternativas para melhorar a qualidade de vida dos moradores”, sugere a especialista, que se dispõe a apoiar a comunidade local.
Segundo a pesquisadora, aproveitar algum espaço disponível para fazer uma horta, construir um sistema de saneamento ecológico, desenvolver ações de educação ambiental com enfoque em alimentos e plantas que contribuem para aumentar a proteção do organismo contra contaminantes são algumas soluções que podem ser executadas de forma colaborativa. Bianca relata que na Amazônia já se recomenda comer duas castanhas por dia para evitar riscos de contaminação por mercúrio (cada vez mais presente nos rios da região por atividades de garimpos ilegais). Ela também apresenta a moringa e confirma que uso dessa planta é simples e garante resultados positivos no tratamento da água.
Já a pedagoga Cleonice destaca que está desenvolvendo uma pesquisa para identificar se há contaminação por resíduos petrolíferos em poços artesianos de Campos Elyseos, em Duque de Caxias, e que poderia tentar apoiar a comunidade de pescadores de Saracuruna com alguma iniciativa semelhante.
Na tentativa de estabelecer uma agenda de ações futuras, os pescadores também demonstraram o interesse na produção de vídeos com depoimentos gravados por telefone celular no cotidiano da pesca. Eles têm percebido que essa alternativa utilizada por Gilciney Lopes, presidente da Colônia de Pesca de Duque de Caxias, tem alcançado resultados positivos. O pescador tem gravado e compartilhado pelas redes sociais imagens que têm chamado a atenção da mídia e das autoridades sobre os problemas enfrentados nos rios e manguezais da sua área de atuação.
Foi sugerido que os registros cotidianos sejam reunidos e transformados em um pequeno documentário, futuramente produzido com recursos de financiamento coletivo ou elaboração de projeto para concorrer a editais. Estudantes de jornalismo e cinema da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), além de fotógrafos e comunicadores participantes do encontro, se prontificaram a colaborar voluntariamente para essa ação.
Pesca já não garante condições de sobrevivência
“O povo está revoltado porque não está entrando o pão de cada dia na mesa. Não se consegue mais viver da pesca aqui nessa região”, afirma Gilciney. Com 59 anos, dos quais 35 anos dedicados à pesca, ele conta que não tem mais renda dessa atividade para sustentar a família porque os peixes e caranguejos estão desaparecendo da área da Baía de Guanabara, onde atua. Vivendo de pequenos serviços, incluindo a coleta de materiais recicláveis, o pescador afirma que também tem tido que pedir ajuda aos amigos pelas redes sociais quando enfrenta situações mais emergenciais, como aconteceu recentemente devido a alguns problemas de saúde de um de seus quatro filhos.
Jonas Pedro dos Santos, 67 anos, relata que há cerca de três anos voltava de cada pescaria com cerca de 30 quilos de peixe para vender e alimentar a família. Atualmente, mal consegue algo para complementar as refeições em casa. “A situação é triste”, afirma. Para o pescador, além das suspeitas de vazamento de chorume nas áreas de manguezais, eles ainda enfrentam as péssimas condições de navegabilidade devido ao assoreamento e ao excesso de gigogas (plantas que proliferam em águas poluídas) nos rios da região.
Conforme publicado em outra reportagem de ((o))eco, sobre o tema, os pescadores da região consideram que o vazamento de chorume estaria sendo causado pelo antigo aterro de Gramacho, administrado pela empresa Gás Verde que nega as acusações e afirma estar atuando conforme as melhores práticas de gestão ambiental. A empresa, no entanto, teve o licenciamento ambiental suspenso pelo Instituto Estadual do Ambiente do Rio e Janeiro (Inea) por não cumprimento dos compromissos acordados para melhoria das condições ambientais.
A reportagem revelou, ainda, que a concessionária teve um contrato de fornecimento de biogás rescindido pela Petrobras no ano passado, questão que preocupa os ambientalistas, tendo em vista que possíveis problemas financeiros decorrentes da perda desse cliente de peso possam inviabilizar esse acordo e, consequentemente, a recuperação do passivo ambiental da área para onde foram destinados os resíduos sólidos da cidade do Rio de Janeiro por 34 anos.
Secretaria de Meio Ambiente promete melhorias
Tendo em vista a mobilização dos pescadores e ambientalistas, o subsecretário municipal de Meio Ambiente de Duque de Caxias, Vitor Hugo Kaczmarkiewicz, informou que serão realizadas intervenções no rio Sarapuí para melhorar as condições ambientais e de navegação.
Segundo afirmado, embora esse tipo de obra seja de competência do governo do Estado, o serviço será realizado com recursos humanos e financeiros do próprio município, em função do agravamento do assoreamento que afeta esse e outros rios da região. Todas as ações serão executadas com a anuência do órgão ambiental estadual, conforme assegurou. Ele acrescentou que estão sendo realizados estudos hidrológicos para orientar as intervenções.
“Atualmente tem uma grande quantidade de sedimentos acumulada que dificulta a pesca”, admite o subsecretário. Segundo ressalta, as obras previstas vão contribuir para aumentar a oxigenação das águas e com isso os peixes retornarão. Na semana passada ele realizou vistoria nos rios da região, acompanhado por pescadores.
Sobre as denúncias de vazamento de chorume pelo antigo aterro de Gramacho, o subsecretario ressaltou que não foram realizadas análises pelo município para comprovar esse problema, uma vez que tanto a fiscalização como qualquer tipo de autuação decorrente de impactos ambientais causados pela Gás Verde competem ao Estado, por intermédio do Inea. Mas, para ele, suspender a licença da empresa não é a melhor solução, já que a gestão do passivo precisa ser mantida e para isso a concessionária tem que estar em operação.
Ainda conforme informado, após uma série de denúncias dos pescadores, em 2015, como houve a comprovação de vazamento de chorume do antigo aterro, com impactos causados na localidade, a Gás Verde foi multada pelo município, em R$ 3 milhões. O valor original era de R$ 10 milhões, mas a empresa recorreu e foi possível estabelecer uma negociação que permitiu também o parcelamento da multa. Mas após a assinatura do TAC, segundo o subsecretário, o Inea responde por todas as questões referentes ao antigo aterro de Gramacho.
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