Todos os anos, nos meses de seca na Amazônia, Nelci Aparecida de Queiroz, põe fogo em sua pequena propriedade para poder plantar. Essa rotina já dura quase uma década, desde que se mudou com a família para o assentamento Iracema, no município de Juína, noroeste do estado do Mato Grosso. Nelci sabe que o uso do fogo não torna a terra mais fértil, mas esta é a única maneira que encontra para converter a floresta em pasto e limpar a área para o plantio de milho e café. Pouco sobrou da mata original. “Se a gente não fizer isso, não consegue ter uma lavoura melhor”, diz.
A algumas centenas de quilômetros da propriedade de Nelci vive o fazendeiro Luiz Augusto Do Valle, um grande criador de gado de Rio Branco, no estado do Acre. Em sua propriedade, de 3.550 hectares, todo processo de transformação da floresta em pastagem foi feito usando o fogo. Isso foi há cerca de 30 anos, quando Valle chegou ao norte do país, vindo de Minas Gerais. Hoje, o fazendeiro, que tem 3.700 cabeças de gado, garante que não há mais queimadas em suas terras, mas admite que o fogo ainda é usado por ser a maneira mais barata para eliminação de pragas e abertura de áreas para pasto e agricultura. “Eu acho que existe forma de abrir floresta sem usar o fogo, mas fica muito caro”, diz.
Nelci Queiroz e Augusto Do Valle são apenas alguns dos proprietários de terras na Amazônia que contribuem para que o Brasil seja um dos maiores emissores de dióxido de carbono (CO2) do planeta. Anualmente, as queimadas na Amazônia são responsáveis por jogar no ar cerca de 200 milhões de toneladas deste poluente. A tranformação do uso da terra e florestas, no país, respondem por 75% das emissões de gases que elevam a temperatura da Terra e provocam o efeito estufa. Desse total, 59% são provenientes da Amazônia, segundo Inventário Nacional de Emissões, feito pelo Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT). Os dados oficiais, no entanto, não são atuais. Eles se referem ao período que vai de 1988 a 1994. Por esse e outros motivos, muitos pesquisadores contestam o documento e propõem novos números. O que se sabe, de concreto, é que grande parte das emissões brasileiras vêm das chamas que consomem a floresta tropical.
“O fogo não se justifica”
No Brasil, o uso do fogo para manejo do solo é declaradamente um hábito não só de proprietários rurais na Amazônia. Em maior ou menor escala, ele é usado em todo país para queimar desde folhas secas e lixo até muitos hectares de terra. No entanto, quem entende de solo se arrepia quando ouve que o fogo é a única alternativa. “O fogo não se justifica”, diz Carlos Maurício de Andrade, engenheiro agrônomo da Embrapa Pasto, no Acre. O problema é que brigar com traços culturais seculares não é algo que se consegue em uma geração.
Substituir o fogo, segundo técnicos e alguns fazendeiros, não é um ato de benevolência com o meio ambiente, mas de inteligência no uso eficiente dos recursos naturais e financeiros numa propriedade, seja ela grande ou pequena. Mas, se o objetivo é abrir novas áreas, nem mesmo grandes proprietários, com mais dinheiro, dizem poder evitar o fogo. “É um sonho achar que você vai trocar um método tradicional de cultivo da terra [com uso do fogo] por um método mecânico. Economicamente não é possível, não teria como pagar uma máquina pra fazer isso”, declara Aderval Bento, um dos maiores fazendeiros de Juína (MT), município listado entre os 36 que mais devastam a Amazônia, segundo o governo federal.
Fronteira agrícola
Para os pequenos agricultores, a situação é ainda pior. No assentamento Iracema, por exemplo, uma hora de trator custa cerca de R$ 140, valor muito alto para famílias que sobrevivem com ganhos anuais de R$ 1.500. “O método pra você trabalhar sem o fogo é caro ou demanda tempo, quando faz com motosserra, enleirando [enfileirando os galhos e paus no terreno]. Ou exige uma esteira, e nós não temos condições”, diz Ari Pichi, outro pequeno agricultor do assentamento Iracema.
Nestas horas, a presença dos governos municipal, estadual ou federal é imprescindível, tanto para o fornecimento de tecnologia, quanto para disponibilização de recursos financeiros, visando uma mudança do paradigma em relação ao fogo. Mas o que é facilmente comprovado na Amazônia é que a população rural, majoritariamente os pequenos agricultores, não recebe assistência técnica, muito menos ambiental. Quem está à frente da expansão da fronteira agrícola, por sua vez, pouco se interessa por técnicas menos agressivas quando o objetivo é ocupar e abrir novas áreas. Muito mais do que fruto da vilania de alguns, isso é um claro indicador de que o uso do fogo, apesar dos apelos de ambientalistas e dos próprios governos, é uma conseqüência do modelo econômico que o Brasil escolheu para si.
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