“Os estudantes estão sem o transporte fluvial há mais ou menos três anos”, conta Edson Monteiro, diretor da Escola Estadual Raimundo Nonato Vieira da Silva, localizada na comunidade de Cujubim Grande, a 36 quilômetros de Porto Velho, capital de Rondônia. A paralisação ocorreu em 2018, quando uma investigação da Polícia Federal encontrou indícios de irregularidades nos contratos da empresa prestadora do serviço. Desde então, famílias vêm enfrentando esse sério problema. Embora a retomada já tenha sido determinada por decisão judicial, a resolução total do problema ainda parece longe do fim, como apresentado nesta reportagem.
Mais de 550 estudantes das escolas estaduais e municipais dependem diretamente do transporte escolar fluvial em Porto Velho.
Rondônia é o terceiro maior estado entre os sete que compõem a região norte do país. A sua capital é banhada pelo Rio Madeira. Com extensão de aproximadamente 3.315 quilômetros, o 17º maior rio do mundo abriga inúmeras comunidades ribeirinhas em sua volta, nas regiões conhecidas como Baixo, Médio e Alto Madeira. Essas famílias, de baixa renda, em geral, não podem arcar com os custos de deslocamento e vêm cobrando solução da gestão pública, após disputas judiciais travadas desde a paralisação do serviço de transporte fluvial, situação que tem prejudicado o andamento escolar dos seus filhos.
Cujubim Grande está localizada na zona rural de Porto Velho, no Baixo Madeira. Essa comunidade possui duas escolas, Deigmar Moraes de Souza, de ensino fundamental; e Raimundo Nonato Vieira da Silva, que oferta o ensino médio. Ambas atendem aos estudantes da região ribeirinha mais próxima.
Soluções paliativas para o enfrentamento do problema têm sido buscadas, mas são inúmeras as limitações existentes. O diretor Edson Monteiro explica que a escola Raimundo Nonato Vieira da Silva atende a mais de 30 alunos ribeirinhos e que mesmo sem a garantia do transporte, os pais têm realizado a matrícula dos filhos. Para atender aos alunos que moram do outro lado do rio, o estabelecimento fornece atividades impressas, para serem feitas em casa. Mas ele sabe que o rendimento está aquém do esperado devido à realidade local.
“Eu acho que o aproveitamento [no ensino remoto] é em torno de 30% ou menos, não tem como. Se no dia a dia já é difícil com a carga horária que temos hoje, imagine o estudante recebendo a atividade pra fazer sozinho, já que os pais muitas vezes mal têm a quinta série”.
A travessia dos estudantes que moram nas regiões do Médio e Baixo Madeira é feita por meio das “voadeiras”, que são barcos a motor. Mas com a paralisação desse serviço, eles não conseguem mais fazer o trajeto de casa até a escola. Algumas famílias fazem o possível para os filhos não perderem as aulas. Em muitos casos, os pais os enviam para morar com parentes na capital. Porém, essa é uma realidade que não abrange todos os lares, pois são poucos que conseguem arcar com os custos de vida na cidade.
“Nessa escola que é ensino médio, o aluno já vem com 14 ou 15 anos, então no ano de 2022 os pais mandavam os filhos no transporte deles mesmos. Alguns mandaram os filhos para morar com os parentes que vivem mais próximos da escola, outros foram obrigados a ir para a cidade. No ano passado, uma boa parte dos meninos já vinha no transporte da família, já que os pais mandavam, mas não todos os dias. Eram rapazes. Nós fomos até a comunidade, conversamos e eles passaram a vir. Agora tiveram alguns que não vieram, porque os pais não têm condições de mandá-los”, continua o diretor.
Um histórico de prejuízos para as escolas e as comunidades
Em 2018, a Polícia Federal paralisou o serviço de transporte escolar fluvial e terrestre, após uma investigação ter encontrado irregularidades nos contratos firmados pelas empresas com a Secretaria Municipal de Educação de Porto Velho. Segundo apurado pela PF, foram desviados mais de R$ 20 milhões do Programa Nacional de Apoio ao Transporte Escolar (Pnate), por uma suposta organização criminosa formada por servidores da prefeiturae empresários, responsáveis pelo transporte fluvial.
Durante os anos de 2018 e 2019, foram realizadas audiências públicas com os responsáveis pelo transporte escolar, buscando solucionar o problema da falta de locomoção e garantir o retorno urgente dos alunos às aulas. Nesse período, no entanto, os estudantes não conseguiram finalizar as suas séries letivas, devido às incertezas na prestação desse serviço essencial na região e pela falta de solução por parte da prefeitura e do governo estadual.
Já em 2020, devido à pandemia, as escolas públicas e privadas foram fechadas como forma de prevenção à disseminação da Covid-19. Mas, em agosto daquele ano, todos os envolvidos judicialmente nos trâmites sobre o transporte escolar dessa região participaram de uma audiência virtual. Como resultado desse diálogo, foi homologado o Termo de Ajustamento de Conduta, que estabeleceu que a gestão pública deveria oferecer transporte, alimentação, materiais didáticos e assegurar o acesso à educação a todas as crianças das zonas rurais e ribeirinhas do município. O termo definiu que o município de Porto Velho ficaria responsável pelo transporte escolar terrestre e, por meio de um convênio, o Estado de Rondônia deveria garantir o transporte escolar fluvial. Porém, quase cinco anos após a primeira paralisação, o transporte fluvial não retornou.
Quem precisa de transporte escolar
Segundo informado pela Secretaria de Educação do Estado (Seduc), as regiões que utilizam o transporte são Cujubim Grande, São Carlos, Nazaré, Calama, Lago Cuniã, Baixo Madeira sentido Humaitá, Caldeirita e Demarcação. Nesse contexto regional, apenas quatro estabelecimentos ofertam o ensino médio: a Escola Professor Juracy Lima Tavares, localizada no distrito de São Carlos; a Professor Francisco Desmoret Passos, em Nazaré; a Escola General Osório, em Calama; e a Escola Raimundo Nonato Vieira da Silva, em Cujubim Grande. Dessa forma, para garantir o acesso à educação, é necessário o deslocamento dos estudantes para distritos ou comunidades vizinhas.
Uma realidade marcada pelas desigualdades sociais
A Secretaria Municipal de Educação (Semed) comprou uma frota própria de ônibus escolares. Quando as aulas presenciais retornaram, a comunidade de Cujubim Grande passou a ser atendida por três desses veículos que também ajudam aqueles estudantes que vão para as aulas com o barco próprio da família. Os alunos param próximos ao local por onde passa o ônibus. Assim, diminuem o consumo de combustível gasto na viagem de ida e volta, além de também conseguirem encurtar o percurso que fariam caminhando até a escola.
Edson Monteiro também é graduado em matemática e antes de se tornar diretor, ministrava aulas na escola. Há 19 anos na educação, ele vê com preocupação a falta do transporte fluvial e sabe que as poucas visitas que a equipe escolar consegue fazer para os estudantes não é suficiente para transmitir adequadamente o conteúdo escolar. Há um grande receio envolvendo a desistência dos estudos. Isso porque 560 estudantes das escolas estaduais e municipais dependem diretamente do transporte escolar fluvial.
“Até completar 18 anos os alunos não desistem muito não [dos estudos], até porque nós vamos atrás na casa deles e eles ficam recebendo as atividades. Então se eles estão recebendo as atividades, não caracteriza desistência. Mas quando eles completam 18 anos, geralmente a grande decisão deles, que antes era fazer faculdade, agora é ‘não vou mais estudar, vou pro garimpo, vou pro trabalho’, porque não veem muita perspectiva”, finaliza o diretor Edson.
“A grande decisão deles que antes era ir para a faculdade, agora é ir para o garimpo”, diz Edson Monteiro
Diferentemente das escolas, o garimpo está próximo dos estudantes e disposto a receber quem nele queira se aventurar. O garimpo do ouro no Rio Madeira remonta a década de 1980, quando sofreu o seu ápice. Em 2021, o governador reeleito Marcos Rocha (União Brasil) regulamentou o garimpo em rios do estado. Ele revogou o decreto n° 5.197, que proibia extração de minério no Rio Madeira. Assim, além de ignorar os problemas socioambientais causados por essa atividade insustentável, o governo legitimou a sua prática. Para quem não tem estímulo algum para estudar e ainda enfrenta poucas perspectivas de um futuro profissional melhor, essa opção, mesmo marcada por inúmeros riscos, se torna atraente.
Uma moradora da região, que prefere não se identificar, comenta: “O que tá pegando é o transporte escolar fluvial. É uma enrolada dessas empresas que não pagam os funcionários, uma empresa sai e outra entra e ninguém faz nada. Eu só sei de uma coisa, quem se prejudica são as crianças. Tem muita criança carente do outro lado, muitas vezes vem pra escola não só com a intenção de estudar, mas também de se alimentar. Não é fácil para aqueles alunos. Eles estão perdendo aula.”
Moradores denunciam a falta de aulas
Carine Lopes dos Santos é agricultora e mãe de dois filhos. Ela mora na comunidade rural de Gleba do Rio Preto, na região do Baixo Madeira, em Rondônia. O acesso à comunidade onde vive é por uma estrada de terra que, durante o período das chuvas, tem o tráfego prejudicado por buracos e atoleiros. Outra opção fica por conta das voadeiras que fazem o trajeto até a comunidade pelo rio Madeira.
Na comunidade, apenas uma escola atende aos estudantes até a quinta série. Eles dependem de voadeira para fazer o percurso até o distrito de Calama, onde estudam em estabelecimento que oferece as demais séries letivas na região. Mas a agricultora Carine denuncia que a localidade não é atendida nem pelos ônibus escolares e nem pelas voadeiras.
“Moro aqui há três anos e desde então nunca houve um dia de aula. Tem uma escola, mas os alunos não podem estudar porque não tem transporte. Minha filha que está no ensino médio teria que ir para Calama, mas não tem como porque não tem o transporte fluvial. Meu filho está no ensino fundamental e conseguiria ser atendido pela escola que tem aqui. Mas a escola é longe e os pais não têm condições de mandar seus filhos. Então de toda forma os estudantes daqui não estudam”, diz Carine, preocupada com o futuro educacional de seus filhos.
“Moro aqui há três anos e nunca houve um dia de aula”, diz Carine Lopes dos Santos
Gleba do Rio Preto é uma comunidade que escapa dos olhares governamentais e sofre com isso. A Escola Municipal José de Anchieta, única unidade de ensino local, começou a ser construída com recursos dos próprios moradores. Após o começo da obra, a Secretaria Municipal de Educação (Semed) começou a destinar recursos para auxiliar no término da construção. Mas a escola não possui infraestrutura para atender aos estudantes e a única sala de aula existente só tem mesas e cadeiras para oito alunos, de um total de 30 matriculados, segundo uma moradora que, por medida de segurança, não será identificada. Quando questionada, a Semed não respondeu a respeito dessa questão que preocupa os moradores.
Dentre tantos desafios enfrentados, incluindo o significativo aumento de moradores na comunidade e a distância para o deslocamento escolar, a população depende do uso do ônibus tanto dentro da localidade como das voadeiras para fazer a travessia dos alunos que precisam estudar no distrito de Calama. A única professora do estabelecimento entrega as atividades a cada 15 dias para os pais, mas a agricultora Carine ressalta que nem todos são alfabetizados para conseguir ajudar os estudantes com as tarefas.
“Os pais que querem que o filho continue estudando precisa mandar ele pra morar com parentes na cidade, ou continuam na região mas sem estudar. Aqui em casa eu sempre tento tirar um tempo do dia para sentar com meu filho, faço ele ler um livro, mas não é a mesma coisa. A criança precisa ter a rotina de ir para a escola, conviver com outras crianças e com o professor”, relata a moradora.
Francielle França é outra moradora da Gleba do Rio Preto. Ela é mãe de um menino de 12 anos e de uma menina de 8 anos. Para ela, é triste ver os filhos longe da escola, sem ter condições de fazer algo para mudar a situação e espera que o poder público resolva o problema.
A dor de Francielle é ainda maior quando ela ouve o filho perguntando sobre a escola. Ele deseja se formar em Medicina Veterinária e sente falta da sala de aula e dos aprendizados cotidianos. A mãe, que mora há dois anos na região, menciona que nunca ouviu falar do transporte escolar.
“Nós não temos estrada, então no dia que as crianças vão para a aula elas precisam andar a pé para ir e voltar, no meio da lama [quando chove]. Chegam na escola muito sujas, às vezes não têm condições nem de ir”, lamenta.
Nas regiões do Médio e Baixo Madeira, os estudantes que desistem de estudar diante de tantas dificuldades enfrentadas, acabam iniciando desde cedo no trabalho. As principais atividades econômicas da região são a agricultura, a pesca e o garimpo.
Força-tarefa estabelece prazo de retorno do transporte fluvial
Em dezembro de 2022, o Ministério Público de Rondônia (MP-RO) criou uma força tarefa para garantir a oferta de transporte escolar fluvial para os estudantes permanecerem na escola. Essa mobilização operacional foi estabelecida após a Promotoria de Justiça de Porto Velho constatar a ausência desse serviço para atender aos alunos residentes nas comunidades do Baixo Madeira, ocasionando deficiência de aprendizagem, quebra de frequência e evasão escolar.
Ainda em dezembro, foi firmado um compromisso para regularizar a situação em uma reunião envolvendo representantes do setor de transporte, Estado e Município, com a participação de instituições atuantes em Rondônia, como o Ministério Público do Estado (MP-RO), o Tribunal de Contas (TCE-RO), a Defensoria Pública (DPE-RO) e o Tribunal de Justiça (TJ-RO). O acordo estabeleceu um prazo de 60 dias para o Estado providenciar o acesso ao transporte escolar para todas as crianças que vivem na região ribeirinha.
Durante uma reunião realizada em janeiro, a Secretaria Estadual de Educação (Seduc) informou que comprou 83 embarcações que pertenciam à antiga empresa prestadora do serviço, apreendidas pelo Tribunal Regional do Trabalho. Mas o órgão ainda aguarda a liberação da documentação desses veículos. Além disso, a Secretaria abriu chamada para a contratação emergencial de duas empresas, uma para gerenciar o serviço, o que inclui a contratação de pilotos habilitados, e outra para garantir a manutenção dos motores das embarcações. Mas, durante a reunião, adiantou que os alunos da região ribeirinha não voltariam a estudar até 6 de fevereiro, data prevista para o retorno às aulas de todos os estudantes da rede estadual de ensino do estado.
No dia 18 de fevereiro, 36 embarcações foram entregues às comunidades ribeirinhas, mas esse número de voadeiras ainda é baixo para atender a demanda. Durante uma reunião com o MP-RO, os diretores das escolas apresentaram falhas no transporte, como a superlotação das embarcações, que não são suficientes para atender o número de estudantes.
Além disso, pais denunciam que estudantes da Gleba do Rio Preto continuam sem frequentar a escola, por conta das péssimas condições da estrada e os longos caminhos percorridos a pé até a margem do rio, já que a comunidade não tem pavimentação e não é atendida por ônibus escolares.
Uma moradora que prefere não ser identificada explica: “Eu moro a 7 km da beira do rio, onde passa a voadeira. Tenho um filho que vai a cavalo, pois as estradas são intransitáveis nesta época das chuvas. Ele só consegue ir 2 vezes na semana, sai de casa 10h da manhã e só retorna às 19:30h da noite. Ele estuda no distrito de Calama. Eu tenho uma vizinha que tem dois filhos que estudam de manhã, o que se torna pior, pois as crianças precisam sair de casa às 4h da madrugada para chegar na beira do rio às 06h.”
Recomposição da aprendizagem
A Seduc informou à reportagem que uma parceria entre o Núcleo de Apoio à Coordenadoria Regional de Educação de Porto Velho (Nac/BM) e a rede municipal de ensino elaborou o projeto Remanso – Recomposição da Aprendizagem. Essa iniciativa tem como objetivo recompor o processo de aprendizagem dos estudantes ribeirinhos da rede estadual de ensino que não frequentaram a escola, em formato presencial, no período de 8 de agosto de 2021 a 8 de fevereiro de 2023. Ainda em fase de aprovação, a Seduc não atendeu ao pedido de detalhamento sobre como funcionará esse projeto.
Esse conteúdo é resultado da bolsa-reportagem concedida aos alunos do Minicurso de Jornalismo Ambiental, realizado por ((o))eco, Imazon e Fundação Amazônia Sustentável
Leia também
Podcast: Imperatriz do Maranhão, passivo socioambiental como legado do desenvolvimento
No coração da Amazônia maranhense, o principal polo econômico do estado é marcado pela exploração insustentável da natureza →
Podcast: Como a expansão econômica e populacional ampliou a devastação ambiental em Imperatriz
No século XX, a cidade presenciou uma explosão populacional como consequência do avanço de um modelo econômico equivocado →
Podcast: Como a falta de planejamento afeta a natureza e a qualidade de vida em Imperatriz
A população e o ambiente da cidade sofrem com os efeitos da urbanização desordenada →
Muito boa essa reportagem, sou usar na minha dissertação.
Apresentar as soluções (existem várias) e mãos à obra. Mimimi só não resolve. Deixemos a politica de lado, deixemos que a polícia e justiça façam suas partes (honestamente e patrioticamente) . Bandidos na cadeia, alunos nas escolas e familias honestas no seu bem estar social.