Reportagens

Tarcísio bate martelo para concessão do Rodoanel Norte, marcada por controvérsias ambientais

Maior obra de Infraestrutura do estado de São Paulo avança sobre Mata Atlântica com licenciamento baseado em informações desatualizadas e sem ampla escuta às comunidades afetadas

Débora Pinto ·
21 de março de 2023 · 1 anos atrás

A cena de Tarcísio de Freitas batendo com força o martelo em um leilão na B3, a Bolsa de Valores de São Paulo, chamou a atenção na quarta-feira (15). A ação fez parte  da concessão do Rodoanel Norte, trecho ainda inacabado do Rodoanel Mário Covas, rodovia que circunda a região metropolitana de São Paulo. Iniciada em 2012 e paralisada em 2018, a obra é marcada por irregularidades e entraves ambientais desde o seu início, o que levou a uma série de atrasos e paralisações. O traçado da via tem proximidade com a Serra da Cantareira, importante remanescente da Mata Atlântica na região metropolitana de São Paulo, uma das maiores florestas urbanas do mundo e parte da Reserva da Biosfera do Cinturão Verde da Cidade de São Paulo (RBCVSP).

Dar continuidade à construção do Rodoanel Norte foi uma promessa de campanha e ação considerada prioritária desde que o governador foi eleito, em outubro de 2022. Com 44 quilômetros de extensão no eixo principal, 3 ou 4 faixas por sentido e sete túneis duplos, o trecho passará pelos municípios de São Paulo, Arujá e Guarulhos. Trata-se da maior obra de infraestrutura do estado.

“Essa é uma obra que sempre contou com muitas lacunas no licenciamento, feito de uma forma muito precária. É uma rodovia sendo construída sobre uma reserva da Biosfera da Mata Atlântica, um absurdo que certamente não ocorreria em outras realidades – sobretudo em um contexto de mudanças climáticas como o que vivemos”, explica Carlos Bocuhy, presidente do Proam (Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental).

O leilão ocorreu no dia seguinte à queda de liminar que solicitava a realização de uma audiência pública para a escuta da sociedade civil e das comunidades diretamente afetadas pelo trecho da rodovia. “Não é surpreendente que a liminar tenha sido derrubada, já que a ampla participação popular em decisões ligadas ao meio ambiente não é, certamente, um mecanismo caro a este governo”, completa Bocuhy.

O licenciamento ambiental para o trecho ocorreu já nos primeiros dias do novo governo, em 11 de janeiro. De acordo com a descrição oficial dos passivos ambientais para a concessão,  as obras de implantação tiveram seus Estudos de Impacto Ambiental e o Relatório de Impacto ambiental (EIA/RIMA) analisados pela Cetesb no Processo SMA nº 208/2010, a partir da emissão de licenças apresentadas entre os anos de 2011 e 2013.

Porém, de acordo com estudo baseado em dados de geoprocessamento realizado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, o  EIA apresentado pela Dersa, responsável pelo empreendimento, foi elaborado com base em um traçado com características diferentes do efetivamente verificado no território. O levantamento apontou ainda que as intervenções para a realização das obras têm pelo menos 14,7% de áreas de vegetação nativa e 30,9% de áreas antropizadas com vegetação associada, que se localizam em Áreas de Preservação Permanente (APPs), em seu percurso.

((o))eco entrou em contato com a assessoria de imprensa da Cetesb para esclarecer a atualidade das informações utilizadas no processo de licitação. Após a publicação da matéria, o órgão enviou nota afirmando que os dados do processo não estão desatualizados. Disse também que colheu informações adicionais “por meio de relatórios, vistorias, consultuas a especialistas e à população” e que mantém uma base de dados georeferenciada sobre a obra, disponível para validação dos dados apresentados pelo empreendedor. Leia resposta completa da CETESB aqui.

Obras da Rodoanel Norte serão retomadas com nova concessionária. Foto: Governo de São Paulo/Divulgação

Superfaturamento e abandono

A construção do Rodoanel Mário Covas teve início em 2001 e faz parte de um esforço para desafogar o já sobrecarregado tráfego de veículos na cidade de São Paulo, com a criação de uma rota alternativa para que veículos de carga não precisem adentrar às vias da capital paulista, além de ampliar a conexão com outras rodovias, como a via Dutra e a Fernão Dias. Hoje, a rodovia conta com aproximadamente 140 quilômetros e cruza 16 municípios.

As obras do trecho Norte tinham previsão de início para 2010, mas atrasos nos Estudos de Impacto Ambiental e questionamentos acerca de irregularidades orçamentárias fizeram com que o edital para a concorrência fosse lançado apenas em 2012.  Em janeiro do ano seguinte, a obra foi dividida em cinco trechos, o processo de concorrência foi executado e, em março, as obras tiveram início – com prazo inicial de execução de 36 meses.

Em dezembro de 2014, o desabamento de um túnel durante a construção, sob responsabilidade da OAS, demonstrou a fragilidade do planejamento técnico, que precisou ser reformulado, levando a novas desapropriações e elevando o custo estimados de R$ 494,7 milhões para R$2,5 bilhões. As irregularidades prosseguiram. De acordo com auditoria do Tribunal de Contas da União, a construção do trecho Norte do Rodoanel soma um superfaturamento estimado em aproximadamente R$7 bilhões até a paralisação completa das obras, após constantes pedidos de adiamento para a sua conclusão, em 2018.

Já em 2017, envolvidas em escândalos de corrupção e investigadas pela Operação Lava Jato, as empresas OAS e Mendes Júnior entraram em recuperação judicial e tiveram o contrato rescindido pelo governo de São Paulo. Sem qualquer fiscalização ou intervenção do Estado, começaram a proliferar ocupações habitacionais nos arredores da via inacabada e alguns trechos da estrada abandonada foram tomados pelo acúmulo de lixo e de entulho, principalmente na região próxima ao município de Guarulhos. 

“Esse trecho próximo a Guarulhos induz ao aumento do desmatamento,sobretudo nas proximidades da rodovia Fernão Dias. Essa é uma área importante por conta de todo o sistema Cantareira e de cabeceiras do rio Tietê. Por isso é necessário que as informações de EIA/RIMA sejam atualizadas e as determinações para o processo de mitigação sejam devidamente cumpridas, inclusive levando em conta legislações que têm a função de proteção aos territórios diante de mega obras”, explica Malu Ribeiro, diretora de políticas Públicas da SOS Mata Atlântica. Para ela, um dos principais desafios é evitar a consolidação de alças de acesso que favoreçam o desmatamento e as ocupações, principalmente nas áreas de manancial.

Ribeiro lembra que, embora Tarcísio de Freitas tenha uma forte relação com a Infraestrutura a partir das chamadas “soluções cinzas”, as Soluções Baseadas na Natureza (SBN) também precisam começar a ser enxergadas na estruturação de projetos, com a integração com as infraestruturas verdes e azuis. Tanto para o desenvolvimento do estado, quanto para cumprir com as expectativas da sociedade em relação às políticas ambientais voltadas para questões caras ao território, como a crise hídrica e a mitigação das mudanças climáticas.

Retomada do Rodoanel Norte irá pressionar florestas que protegem o Sistema Cantareira. Foto: Governo de São Paulo

Mitigação

Questionada por ((o)) eco sobre o processo de mitigação ambiental na retomada da construção do Rodoanel Norte, a Agência de Transporte do Estado de São Paulo informa em nota que serão realizados 1.000 hectares de plantio compensatório. Haverá, ainda, a implantação de travessias de fauna conforme programa de monitoramento – há, por exemplo, obrigatoriedade de implantação de 14 passagens aéreas para primatas, em locais a serem definidos por órgãos ambientais. A concessionária deverá implantar o Programa Carbono Zero, zerando as emissões de carbono geradas no âmbito de suas atividades.

 A Agência indica ainda que o leilão permitirá a retomada da obra, que vem se degradando desde  2018. A conclusão desafogará o trânsito da capital e diminuirá os congestionamentos nas Marginais Pinheiros e Tietê, conectará rodovias federais como Fernão Dias e Dutra e ampliará as rotas para o escoamento de cargas para o Porto de Santos, com redução do custos.

Com a nova concessão, o grupo Via Appia assume o compromisso de finalizar as obras da rodovia e poderá operar o trecho por 31 anos. Estão previstos R$ 3,4 bilhões em investimentos, incluindo os custos de operação. O trecho Norte do Rodoanel tem previsão de término para 2026. Estima-se que a obra já teve um custo aproximado de R$10 bilhões.

Gosto pelo martelo

A criação da Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística (SEMIL), criticada por ambientalistas ao desconsiderar a complexidade específica das políticas ambientais e relegar ao meio ambiente um espaço desfavorecido na estrutura governamental paulista já indicava uma tendência cinza, além de um apreço aos leilões por parte do novo governador.

 Ao anunciar o nome da engenheira Natália Resende para estar à frente da SEMIL, o governador de São Paulo destacou que a especialista em parcerias público-privadas havia feito com ele uma centena de leilões quando trabalharam juntos, principalmente durante a gestão de Freitas como Ministro da Infraestrutura do ex-presidente Jair Bolsonaro. 

A intensidade das batidas do martelo na B3 demonstra o entusiasmo – e as prioridades – do governador por essa agenda. Em 2021, Freitas também bateu o martelo para a concessão da BR-163, rodovia que tem impactos diretos sobre as Terras Indígenas Baú e Mekragnoti, entre os estados de Mato Grosso e Pará, uma das áreas mais afetadas pelo garimpo ilegal no país. 

Uma liminar do Ministério Público Federal de Altamira (PA) havia suspendido a concessão do trecho mais estratégico da rodovia, entre as cidades de Sinop (MT) e Itaituba (PA) por irregularidades no pagamento do Componente Indígena do Plano Básico Ambiental (PBA-CI) para as manutenção dos territórios indígenas, considerando que os impactos apontados pelas informações de EIA/RIMA eram de longo prazo. 

A liminar foi derrubada pelo TRF-1 a pedido da União e, poucos dias depois, Tarcísio de Freitas, então Ministro da Infraestrutura, batia o martelo para fechar o negócio. Assim como ocorrido no Rodoanel Norte, as populações afetadas não foram devidamente escutadas.

*Reportagem atualizada às 13h50 do dia 23/03/23 para inserir resposta da CETESB.

  • Débora Pinto

    Jornalista pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero, atua há vinte anos na produção e pesquisa de conteúdo colaborando e coordenando projetos digitais, em mídias impressas e na pesquisa audiovisual

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Comentários 2

  1. Laudeci diz:

    Agora que a obra está quase pronta não é hora de ouvir a população. No início da obra houve muita desapropriacao. A obra não está pronta devido a roubalheira. Farão novas desapropriações porque muitas áreas já foram invadidas. A obra custará no mínimo três vezes mais que o previsto. Dinheiro público é assim. Vai todo pro ralo.


  2. ADELINO AUGUSTO DUARTE diz:

    Como é dificil conciliar desenvolvimento com sustentabilidade !
    Teremos todos que ter muito bom senso. Sem amor excessivo à causa. Com amor pelo Brasil.
    Precisamos de novas vias de acesso, e é urgente. Não tem como parar. Claro, tem que haver fiscalização do que é feito e olho firme para evitar o superfaturamento e a corrupção. Sou a favor do progresso e, tambem, da sustentabilidade. Creio que essa obra é importante – não tem como dizer não a ela.