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Tragédia no RS “não será a pior”, alerta coordenador de frente de prefeitos

Participantes do último dia de seminários organizados pelo Instituto Democracia e Sustentabilidade, realizado na última sexta (10), falaram sobre financiamento à adaptação

Gabriel Tussini ·
13 de maio de 2024

Chegaram ao fim, na última sexta (10), os “Seminários Bússola para a Construção de Cidades Resilientes”, evento organizado pelo Instituto Democracia e Sustentabilidade. Na última mesa, com o tema “Economia Verde”, os palestrantes falaram de assuntos como o financiamento de medidas de adaptação, a preparação dos municípios para o contexto de mudanças climáticas e a construção de soluções baseadas nos contextos locais.

As inundações que ocorrem no Rio Grande do Sul foram tema bastante presente nas falas. “Temos que ter consciência de que essa é a pior tragédia, mas ela não será a pior tragédia. A gente já acompanha há um bom tempo o agravamento das emergências climáticas. Não somente em relação à frequência com que acontecem, a intensidade desses fenômenos climáticos extremos, mas inauguramos agora uma nova faceta, que é uma dimensão de destruição nunca antes vista no país”, alertou Jeconias Rosendo da Silva Júnior, coordenador de articulação política da Frente Nacional de Prefeitas e Prefeitos (FNP).

Andréa Vulcanis, secretária de Meio Ambiente de Goiás, destacou o desafio do entendimento da gravidade das mudanças climáticas por muitos prefeitos. “A gente vê o desastre acontecendo lá em Porto Alegre, e uma frase que sempre ecoa muito é ‘isso não vai chegar pra mim, isso não é uma realidade para mim’. Entretanto, eu ouço todos os dias lá na minha mesa pessoas ainda discutindo se isso é uma realidade ou não”, afirmou.

Além deles, também falaram Marina Marçal, chefe da Diplomacia e Advocacy para Cidades do Grupo C40 de Grandes Cidades para Liderança do Clima, e Carmynie Xavier, gestora ambiental e especialista de Regulação em Política Climática do Instituto Clima e Sociedade (ICS).

Os seminários, realizados de segunda a sexta-feira da semana passada, servirão para a construção da versão 2024 da Bússola do IDS – produzida também em 2022. A publicação é um guia com objetivo de apontar caminhos para o debate de enfrentamento à emergência climática nas próximas eleições. Os temas em discussão foram Água e Alimentos; Biodiversidade e Biomas; Clima, Cidades e Comunidades; Democracia, Diversidade e Dados; e Economia Verde.

Financiamento para a adaptação climática dos municípios

Para Jeconias Rosendo da Silva Júnior, advogado e coordenador de articulação política da Frente Nacional de Prefeitas e Prefeitos (FNP), as tragédias causadas pelas mudanças climáticas, como as grandes inundações no Rio Grande do Sul, ainda tendem a piorar, permanecendo o ritmo atual.

Para ele, é preciso ter “a ousadia e a coragem para construir alternativas que de fato coloquem o tema das mudanças climáticas e a agenda climática no centro da agenda governamental”. “Não adianta mais a gente ficar apontando caminhos que não nos levem a nenhum lugar. A gente tem que ter medidas efetivas, e os municípios, como um ente que está no cotidiano da população, são aqueles que precisam ser compreendidos e apoiados da melhor maneira possível para que os impactos desses eventos climáticos não sejam tão devastadores quanto esse que estamos acompanhando no Rio Grande do Sul”, defendeu.

Segundo o advogado, “para se promover uma transição completa para a economia verde, a gente necessitaria de algo em torno de US$ 1,3 trilhão, o que corresponde a 2% do PIB do mundo”, o que demonstra a dificuldade de se “enquadrar isso na nossa realidade financeira e orçamentária”. “Por outro lado, temos a emergência climática batendo na porta e dizendo ‘você não tem outro caminho’. É necessário reconstruir o modelo que se tem hoje e priorizar investimentos para que as vidas não sejam mais perdidas”, afirmou.

O palestrante destacou medidas positivas praticadas por municípios, como isenções tributárias e incentivos fiscais para projetos com “boas práticas ambientais”, IPTU Verde e priorização de produtos e serviços sustentáveis nas compras públicas. “A gente sente na pele que realmente os municípios estão num processo de engajamento cada vez maior para essa pauta”, resumiu, destacando a importância de que as cidades promovam “processos de educação e formação sobre clima e economia verde, de modo que cada cidadão e cidadã compreenda seu papel nessa agenda”.

Jeconias defendeu ainda que seja fixado um percentual do uso de emendas parlamentares para investimentos na adaptação às mudanças climáticas, resiliência e infraestrutura urbana – assim como na área da saúde, por exemplo, que recebe obrigatoriamente metade das emendas de cada parlamentar. Outra medida destacada pelo palestrante é o uso de receitas geradas por créditos de carbono no financiamento de projetos de adaptação de estados e municípios, defendida pela FNP nas discussões do PL 182/24 (já aprovado na Câmara e em tramitação no Senado), que cria o mercado brasileiro de créditos de carbono.

“A gente sabe que existe um gap de financiamento da agenda de adaptação. É uma luta do Sul Global para que isso seja equacionado, inclusive com perspectivas agora, na COP de Baku. E os municípios brasileiros, pelo menos aqueles que a FNP representa, estão dispostos a trazer o debate para o centro da arena e fazer com que o local, o nosso território, possa ter uma nova configuração em termos de financiamento da agenda climática”, frisou.

Incentivos à preparação dos municípios para as mudanças climáticas

Andréa Vulcanis, secretária de Meio Ambiente de Goiás, retomou a fala de Jeconias sobre o “engajamento dos municípios” na agenda climática. Segundo ela, há muitos “Brasis dentro do Brasil”, e que em seu estado há muitos municípios em que não há “preparo nenhum, ou maturidade dos municípios para enxergar esses desafios como uma situação possível, pelo menos”, criticou. Segundo ela, muitos prefeitos goianos ainda resistem a ao menos reconhecer que estamos passando por mudanças climáticas.

“A gente vê o desastre acontecendo lá em Porto Alegre, e uma frase que sempre ecoa muito é ‘isso não vai chegar pra mim, isso não é uma realidade para mim’. Entretanto, eu ouço todos os dias lá na minha mesa pessoas ainda discutindo se isso é uma realidade ou não, se isso só não é um ciclo, afinal, ‘se lá no Rio Grande do Sul isso aconteceu em 1941, se repete um ciclo’. E as pessoas ainda resistem a acreditar que nós estamos nesse processo climático que o planeta está vivendo. Esse é o primeiro desafio”, avaliou.

O segundo desafio, segundo a secretária, é a falta de capacidade administrativa em pequenos municípios. “Boa parte dos pequenos municípios brasileiros não tem só pouco recurso, mas não tem capacidade institucional para o básico”, disse. “Muitos não têm servidores, os servidores são comissionados, troca-se todo dia de equipe. Então um desafio hoje no estado de Goiás é que a gente capacita as equipes, passa um mês, vai fazer uma nova capacitação e mudou todo mundo. É uma realidade muito presente, de que até o próprio desafio de capacitar não é simples”, lamentou.

“E o terceiro desafio é o financeiro, é como financiar toda a estruturação para que os municípios se preparem e, ainda que tenham recursos, eles precisam saber e conseguir gastar. Onde e como otimizar esse recurso. Tudo isso é um corpo de desafios que nós temos que superar no Brasil. Não é tão simples assim ultrapassar essa janela de imaturidade institucional que boa parte dos nossos municípios. Em Goiás, 95% dos municípios estão nessa condição”, afirmou a secretária.

Apesar dos desafios, Vulcanis citou o ICMS Ecológico goiano como uma medida importante para a consolidação de programas ambientais por parte dos municípios. Segundo ela, 5% do repasse do ICMS aos municípios é atrelado ao alcance de metas ambientais. “Como ele é um tributo de repasse, não podemos vincular o gasto”, fazendo com que o estado não possa obrigar os municípios a usar os recursos em políticas públicas voltadas ao meio ambiente, explica. “Então nós invertemos essa lógica, e estabelecemos os requisitos para que o bolo do ICMS Ecológico seja dividido”.

Segundo a secretária, o governo estadual fomenta, atualmente, programas de combate à perda de biodiversidade e de cobertura do Cerrado, coleta seletiva de lixo e composição de pessoal das secretarias municipais de Meio Ambiente, com servidores concursados. “Agora o desafio das mudanças do clima também nos impõe essa oportunidade, que a gente estabeleça os critérios. A começar talvez pelos planos de adaptação, de mitigação, como o município vai se preparando. E aí o estado vai modelando e regulando a política pública estadual à medida que as demandas precisam ser construídas”, explicou.

Financiamento climático

Marina Marçal, chefe da Diplomacia e Advocacy para Cidades do Grupo C40 de Grandes Cidades para Liderança do Clima, destacou o papel dos municípios na resposta aos desastres climáticos, lembrando o fato de centenas de cidades gaúchas terem sido afetadas por inundações. “O primeiro ator, o primeiro setor público, que a população procura quando acontece uma grande tragédia, é o prefeito, é a prefeita”, frisou. “É por isso que a gente acha tão importante ter financiamento climático diretamente para as cidades”, especialmente para programas de prevenção.

Marina lembrou as discussões sobre o Fundo para Perdas e Danos, discutido há anos nas Conferências do Clima. “Alguns países de fora achavam que só quem tinha que ter recursos para perdas e danos eram as ilhas, que estão aquecendo muito rápido, aumentando o nível do mar, perdendo recifes. E o Brasil falava ‘não’. Tem gente que olha pro Brasil e acha que a gente é um país rico, mas a gente vai sofrer muito evento extremo que a gente não está preparado. A gente também precisa receber recurso de perdas e danos”, afirmou.

Segundo ela, as discussões sobre tragédias climáticas no Brasil de 10 anos atrás, com destaque para secas e falta de recursos hídricos, estão desatualizadas. “Ao mesmo tempo que tem onda de calor agora, no Rio, São Paulo e Espírito Santo, tem a possibilidade de aumento das chuvas no Rio Grande do Sul na próxima semana, com a chegada de um ciclone extratropical”, disse. “Talvez o ordenamento de plano diretor, ordenamentos para as cidades que a gente pensou anos atrás, já não faça mais sentido numa década de emergência climática, como a gente tem agora”, analisou.

“A parcela de recursos para a adaptação climática ainda é muito pequena no mundo”, criticou a palestrante. “A gente precisa cobrar dos bancos multilaterais um acesso mais democrático ao Sul Global a projetos de ação climática, sobretudo de adaptação”, disse. “A gente precisa falar de projetos que sejam a nível local, para que as pessoas entendam que os projetos para o clima não são só para o clima, mas é a qualidade de vida delas no centro desse debate”, reforçou.

Soluções construídas de acordo com os contextos locais

Fechando os seminários, Carmynie Xavier, porto-alegrense, gestora ambiental e especialista de Regulação em Política Climática do Instituto Clima e Sociedade (ICS), lembrou que 87% dos municípios gaúchos foram atingidos direta ou indiretamente pelas enchentes. Ela frisou a importância da participação da população na elaboração de políticas públicas que sejam “realmente focadas no que é necessário para aquele espaço”.

A palestrante deu ênfase à necessidade de soluções de política climática baseadas nos contextos locais. Segundo ela, é dessa forma que as medidas poderão ser adotadas de forma mais concreta, resolvendo os problemas vividos pelas populações, como no caso das cidades gaúchas. “É crucial a gente pensar no estabelecimento e articulação de entidades públicas, privadas, organizações não-governamentais, no intuito de compreender até mesmo a maturidade e compreensão dessas questões climáticas que estão inseridas nessas instituições”, afirmou.

“É essencial que a gente tenha uma coordenação e cooperação de diferentes atores envolvidos nessa governança climática, que vai garantir que esses recursos, que esses esforços, sejam direcionados pensando na questão de eficiência e eficácia, para que a gente possa perceber no local”, destacou a especialista.

“É fundamental a participação de todos os níveis. Tem que entender os protagonismos locais, o comportamento de diferentes grupos sociais – aí estou falando de grupos como indígenas, quilombolas –, entender as vulnerabilidades, os processos que garantem que essas pessoas sejam marginalizadas em termos de processos de melhorias, que os alcances para as melhorias, subsistência e vida para essas pessoas também sejam garantidos”, frisou.

“Quando a água baixar, toda essa pauta de adaptação, e até mesmo de fundos climáticos, precisa estar relacionada com os contextos [locais]. Cabe a gente compreender a governança, essa questão de planejamento, de territorialidade, para que a gente possa pensar nesses mecanismos da própria justiça social, que vai garantir a reorganização urbano-rural, sem perder esse fator do pertencer, de identidade”, concluiu.

  • Gabriel Tussini

    Estudante de jornalismo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), redator em ((o))eco e interessado em meio ambiente, política e no que não está nos holofotes ao redor do mundo.

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