A vida urbana, com seus carros, ruas e linhas de transmissão, impõe um desafio hercúleo para os grupos de sauim-de-coleira que ainda sobrevivem na capital do Amazonas. Sob risco de atropelamento, eletrocussão ou simplesmente da falta de floresta para onde ir, o sauim pode desaparecer do perímetro urbano de Manaus. Um destino ingrato para o macaco que também é conhecido como sauim-de-manaus e é considerado um dos símbolos manauaras.
“Em quase todos os fragmentos [florestais] de Manaus têm sauim”, destaca o professor Marcelo Gordo, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). “A espécie é muito adaptável, consegue sobreviver com grupos pequenos em fragmentos, mas estão na beira da extinção local. Em lugares muito degradados, eles vão sumir. É questão de tempo”, completa.
O professor lidera os esforços do Projeto Sauim-de-Coleira e acompanha o drama do macaco no contexto urbano de Manaus, onde tenta mitigar as ameaças com ações de restauração florestal e conectividade – com plantios e passagens de fauna.
O sauim-de-coleira (Saguinus bicolor) é um pequeno macaco amazônico considerado Criticamente Em Perigo de extinção. Sua distribuição é restrita ao estado do Amazonas, entre os municípios de Manaus, Itacoatiara e Rio Preto da Eva. São cerca de 8 mil quilômetros quadrados, no que corresponde a uma minúscula fração da imensidão amazônica, equivalente ao tamanho da Região Metropolitana de São Paulo.
É uma das menores áreas de distribuição geográfica conhecidas entre os primatas brasileiros. E no meio dela está a maior cidade da Amazônia brasileira, Manaus, onde a urbanização avança, a população humana aumenta e a floresta desaparece.
“É uma área muito pequena para um primata amazônico e é uma área muito vulnerável, porque ela está sobreposta com a maior Metrópole Amazônica e com toda a área agropecuária dessa Metrópole, além de duas grandes estradas”, alerta o analista ambiental do ICMBio, Diogo Lagroteria, do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Biodiversidade Amazônica.
Disputa por espaço na selva de pedra
Na tela do computador, o analista ambiental do ICMBio aponta para uma área onde o verde mal aparece. O local está situado na zona central de Manaus, no bairro Cidade Nova. A partir do banco de imagens históricas, ele volta no tempo para explicar o que estamos vendo. “Tudo isso daqui é APP [Área de Preservação Permanente]. Em 2013, asfaltaram essa avenida. Há 10 anos, estava totalmente preservado. Em 2017 já era, invadiram tudo, sobrou só uma cortininha de floresta aqui”, ele descreve, na medida em que as imagens contam a história por elas mesmas. O cenário se agrava até os dias atuais, onde tudo o que restou foi um punhado de árvores para lembrar que já houve uma floresta ali. Uma situação que se repete em outros pontos da cidade.
Esta área destacada pelo analista – que já deveria ser protegida por ser uma APP nas margens de um igarapé – ganhou status de unidade de conservação municipal em 2018, com a criação da Área de Proteção Ambiental (APA) Sauim-de-Manaus. Ainda assim, as invasões continuaram, conta Diogo.
“É uma APA, é APP, é área verde municipal, ou seja, tem vários mecanismos de proteção para essa área, onde tem sauim. Só que em 10 anos ela foi invadida, tomada e hoje para você recuperar uma área dessas é muito difícil porque ela já está muito ocupada, tem muitas pessoas”, explica o analista do ICMBio.
O crescimento desordenado da capital que, de acordo com o último censo populacional do IBGE, possui uma população de mais de 2 milhões de pessoas – o dobro de 30 anos atrás – é um dos grandes desafios para manutenção das áreas verdes remanescentes, frequentemente alvo de invasões e ocupações irregulares.
Ainda segundo os dados disponíveis no IBGE, a arborização em vias públicas é de apenas 23,9%, o que coloca o município entre os piores do ranking nacional. O critério para o cálculo conta as faces de quadra com presença de árvores no meio urbano.
“A cidade teve um processo de crescimento notadamente por invasão, ocupação não planejada, na zona leste e zona norte, onde não tem nem passeio para pedestre. E passa a rede elétrica, que é baixinha. Você vai plantar árvores onde ali?”, argumenta o secretário de Meio Ambiente, Sustentabilidade e Mudança do Clima de Manaus, Antonio Stroski.
O secretário conta que na última década o problema ganhou outra proporção, com o envolvimento do crime organizado. “Hoje, raramente temos um processo de invasão por uma comunidade que está em comprovada vulnerabilidade de habitação, mas está por trás disso o crime organizado, porque está estabelecendo o território. A questão social não é necessariamente a primeira nesse processo de ocupação. É uma demanda estratégica do crime para se organizar. Estabelecer um território para que ele tenha domínio e possa desenvolver as suas atividades”, explica Stroski.
De acordo com o professor Marcelo Gordo, há dois tipos de invasão. A que é organizada por grupos grandes que invadem uma área pública ou privada e destroem tudo rapidamente para lotear; e aquela feita pelos próprios moradores regularizados, que aos poucos expandem, de forma irregular, a sua propriedade. Além do envolvimento de facções criminosas, também há pressão política por trás de parte das invasões, em especial durante anos de eleição.
“Eu acredito que mais da metade da cidade de Manaus foi feita à base de invasão. É muito difícil você conter e você perde áreas enormes e muito importantes”, resume. Com o tempo, as invasões são consolidadas e viram bairros, num processo praticamente irreversível..
Segundo os dados mais recentes do IBGE, de 2019, a capital possui 277 km² de área urbanizada – a sexta maior extensão de área urbanizada do Brasil, superior a de capitais como Belo Horizonte, Fortaleza e Porto Alegre.
Apesar de terem desacelerado, até pela diminuição de áreas “disponíveis”, as invasões seguem como um dos principais desafios para gestão ambiental e ordenamento territorial do município. Construída às margens do rio Negro, que marca seu limite sul, a metrópole amazônica em expansão só tem um caminho para crescer: o norte.
É nessa direção que os limites urbanos têm alcançado áreas importantes como a Reserva Florestal Adolpho Ducke, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Criada em 1963, para fins de conservação e pesquisa, os limites da reserva, que antes mesclavam-se aos das florestas vizinhas, hoje são duramente marcados pelo confronto com o concreto da cidade.
Se por um lado a reserva, em si, está protegida, por outro ela corre um sério risco de ver seus 10 mil hectares de floresta ilhados pela urbe. Na última revisão do Plano Diretor Urbano e Ambiental do município, em 2014, o zoneamento classifica os limites sul e oeste da Reserva Ducke como área urbana, e os limites leste e norte como zona de expansão urbana.
De olho no crescimento da cidade, as construtoras já adquiriram a maioria dos terrenos disponíveis da cidade, alerta o pesquisador da UFAM. “O que sobrou de vegetação nativa no perímetro urbano, passou a ser domínio das principais construtoras da cidade. Há condomínios em que eles fazem toda a infraestrutura e entregam os lotes intactos para as pessoas. E a cada ano somem alguns pedacinhos de floresta. Cada proprietário é responsável pelo licenciamento do seu desmatamento, então é um problema que vai comendo aos poucos e quando você percebe, já foi. Já está tudo comprometido”, explica Gordo.
O plano diretor de Manaus exige que os condomínios e loteamentos mantenham no mínimo 5% de cobertura de vegetação, sempre que possível de forma contígua, para evitar a fragmentação. A revisão do plano, que data de 2014, está em discussão e o secretário de Meio Ambiente adianta que essa porcentagem, como sempre, vai ser um ponto de disputa. “Sempre vai ter gente querendo que seja menos e gente querendo que seja mais”, afirma.
Os demais fragmentos florestais relevantes que se mantém de pé dentro da cidade são justamente as áreas mantidas por instituições como a Reserva Ducke, pelo INPA; o campus da UFAM; o Centro De Instrução De Guerra Na Selva (CIGS), do Exército; e o próprio aeroporto de Manaus, que mantém cerca de mil hectares de mata em seu entorno.
APAs de papel
Das sete APAs municipais que existem hoje em território manauara, apenas quatro possuem tamanho mais expressivo para conservação do sauim-de-coleira. Todas, entretanto, compartilham a mesma situação inglória: a falta de um conselho gestor ativo, ausência de plano de manejo e, consequentemente, do zoneamento que determina quais são as áreas de uso intensivo e quais exigem maior proteção.
Somadas, as APAs cobrem quase 43 mil hectares em Manaus. Um território em que, se a gestão das unidades de conservação – ainda que sejam de uso sustentável – fosse de fato aplicada, teria outro cenário.
“Essas APAs, na prática, poderiam funcionar como grandes corredores de conexão. Nenhuma delas está com o conselho ativo, começa aí o problema. Nenhuma delas tem plano de manejo, não tem zoneamento, nada. Uma grande parte desses fragmentos poderiam ter sido preservados se tivesse tido um zoneamento em um plano de manejo e se as APAs tivessem criado regras mais rígidas do que só os 5% de Área Verde do Plano Diretor”, destaca o professor da UFAM.
A maior delas, APA Tarumã-Ponta Negra, foi criada em 2008 e abrange mais de 22 mil hectares que vão desde a área urbana até a zona rural, na porção oeste de Manaus – justamente uma das fronteiras da expansão da cidade.
A segunda maior está em outra fronteira de crescimento urbano, a zona norte da cidade. A APA Adolpho Ducke, criada em 2012, cobre cerca de 18 mil hectares, dentre os quais está a reserva do INPA..
Mais recentemente, em 2018, a prefeitura criou também a APA Sauim-de-Manaus, com aproximadamente 1 mil hectares. Sua localização tem o papel estratégico de garantir a conectividade dos fragmentos florestais remanescentes ao longo do rio Mindu, desde a parte mais central da cidade até a Reserva Ducke, ao norte.
Já no centro-sul da capital, a APA Floresta Manaós, criada em 2019 conta com 760 hectares, que incluem o campus da UFAM.
Há ainda outras três APAs menores: Parque Linear do Gigante, com 155 hectares na zona oeste de Manaus; Parque Ponta Negra, com 34 hectares também na porção oeste; e Parque Linear do Bindá, com apenas 5,8 hectares no centro-sul da cidade. Todas as três foram criadas em 2012 e seguem apenas no papel.
Quando questionado pela reportagem de ((o))eco sobre a efetiva implementação das APAs em Manaus, o secretário de Meio Ambiente admite o problema. “É outra questão que precisamos superar, ter os planos de manejo e os conselhos efetivamente funcionando. Queremos corrigir”, promete Antonio Stroski. O gargalo, de acordo com ele, é a falta de recursos. Para uma delas, a APA Tarumã, Stroski adianta que o recurso para implementação está garantido, através de uma medida compensatória da Secretaria de Estado de Infraestrutura do Amazonas.
“Não há mais tempo para perder. Essas são áreas de expansão, de consolidação de crescimento da construção civil, então precisamos muito disso [do zoneamento e gestão das APAs]”, completa o secretário.
O pequeno e vulnerável habitat do sauim-de-coleira
Ao mesmo tempo em que cresce a cidade, aumenta a demanda para alimentar seus moradores. O que por sua vez impulsiona as fronteiras da agropecuária em Manaus e nos municípios do entorno. Os pesquisadores estimam que o sauim-de-coleira tem sofrido uma perda de habitat de quase 250 km² por ano.
Desde 1987, os três municípios presentes no território do sauim-de-coleira – Manaus, Itacoatiara e Rio Preto da Eva – acumulam quase 1.120 km² de desmatamento, segundo dados do MapBiomas.
Atualmente, as principais UCs que resguardam o habitat do sauim são de uso sustentável, como a Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Puranga Conquista e a Área de Proteção Ambiental (APA) da Margem Esquerda do Rio Negro – Setor Tarumã-Açu, todas da esfera estadual e situadas no limite oeste da distribuição do sauim. Além disso, no extremo leste da distribuição do sauim, em Itacoatiara, está a Terra Indígena Rio Urubu, com 27 mil hectares, habitada pela etnia Mura.
Para garantir a proteção e manutenção da conectividade entre os principais blocos florestais do habitat do sauim, os pesquisadores pedem com urgência a criação de uma unidade de conservação de proteção integral. Está em debate a proposta do Refúgio de Vida Silvestre do Sauim-de-Coleira, com cerca de 15 mil hectares no limite leste da distribuição da espécie, considerada a porção mais desprotegida do habitat do pequeno primata. Uma primeira consulta pública para criação do refúgio está prevista para o início de maio.
Restaurar e conectar
Na queda de braço contra a perda de florestas e fragmentação do habitat, o professor Marcelo Gordo lidera um esforço de restauração, através do Projeto Sauim-de-Coleira. O pesquisador, que está a frente do viveiro da UFAM desde 1995, produz anualmente de 5 a 6 mil mudas nativas de 200 espécies diferentes. E todo ano, de 1 a 5 mil delas seguem para o plantio em diferentes pontos da cidade. O principal foco dos esforços de restauração são as áreas públicas, como APPs, APAs e as Áreas Verdes municipais.
No final de janeiro, acompanhei o projeto em um desses plantios, no bairro Cidade Nova, na periferia em expansão de Manaus. Enquanto um fluxo ininterrupto de veículos passava ao lado, na movimentada Avenida Governador José Lindoso, a equipe desbravava o que havia de mata, em meio a um capinzal.
O cenário da ação era bem ilustrativo do drama diário da espécie no meio da cidade: uma floresta degradada, separada por uma avenida, cercada por uma favela, com torres de transmissão em ambos os lados. Para piorar, uma pilha de lixo e entulho se acumulava entre a pista e as árvores. “São muitos obstáculos”, pensei.
Quando me questionava se o sauim poderia mesmo sobreviver em um ambiente daqueles, Neto, um dos colaboradores do projeto, chegou com o anúncio de que tinha acabado de ver um grupo dos macacos do outro lado da avenida. “Contei seis indivíduos”, afirmou, enquanto apontava para o local do avistamento: uma mancha verde do outro lado da avenida que não devia ter mais do que 2 hectares. Fiquei incrédula.
O professor da UFAM confirmou. “O sauim só fica ali no barranco que é onde ainda tem floresta, então estamos reflorestando essa baixada”, explicou.
No lado oposto ao que estávamos, onde Neto avistou os sauins, o projeto já havia feito o plantio de mudas há cerca de um mês. Sinalizadas com bambus, algumas já estavam ocultas pelo capim – um invasor que precisa ser roçado regularmente até que as árvores cresçam o suficiente para sombrear o solo.
“Se metade dessas mudas vingar, já vamos mudar a situação aqui, porque quando crescerem, elas vão matar o capim e permitir que outras plantas sejam dispersadas naturalmente e cresçam aqui”, explica Gordo.
A recuperação e o enriquecimento do habitat do sauim-de-coleira, assim como a manutenção e ampliação da conectividade são objetivos centrais do Plano de Ação Nacional (PAN) para Conservação do Sauim-de-coleira, atualmente em seu 2° ciclo (2018-2023).
“Essa restauração tem duas finalidades. Uma é ampliar e melhorar as áreas onde o sauim já ocorre. Às vezes tem uma área verde e metade dela tem vegetação e a outra metade está degradada, com solo tão exposto e compactado, que tem no máximo capim. Então é inútil para espécie. Portanto, a primeira coisa é restaurar e enriquecer áreas onde eles já existem. E a segunda é fortalecer os possíveis corredores naturais”, detalha Marcelo Gordo.
Os principais corredores são os rios e igarapés, onde a legislação garante, na teoria, o status de Área de Preservação Permanente (APP) à mata ciliar. Na prática, porém, as margens desses cursos d’água na capital estão em sua maioria extremamente degradadas, senão completamente desmatadas.
“Nós temos que restaurar as APPs ao longo dos igarapés. Essa é a maneira mais efetiva e talvez as áreas mais factíveis para criarmos corredores. E a legislação nos ajuda nesse aspecto”, pontua o professor da UFAM.
Obstáculos urbanos
“Às vezes um fragmento está separado de outro por duas, três quadras de residências. Aí a estratégia é outra. Vamos ter que trabalhar com stepping stones, um caminho com interrupções”, explica Gordo.
Nesse percurso, o sauim não tem a proteção de uma cobertura florestal contínua, mas se expõe em distâncias curtas, onde vai de uma árvore para outra gradualmente até alcançar a floresta. Uma das estratégias para isso é trabalhar nos quintais das casas, com o estímulo aos proprietários para que tenham árvores, em especial frutíferas, e o investimento na arborização nas ruas.
“Porque eles [sauins-de-coleira] tentam atravessar o tempo todo e às vezes atravessam trechos grandes da cidade por telhados e fiação, mas o risco é muito alto. Dele ser atropelado, de um cachorro pegar, de levar um choque, se perder”, enumera o professor.
Outra frente de trabalho são as passagens de fauna. Ao todo, o projeto já instalou 11 passagens pela cidade. E no mínimo outras oito já estão previstas para este ano. Os postes são instalados com apoio da concessionária de energia elétrica, Amazonas Energia.
Para escolher os pontos prioritários de travessia é preciso responder algumas perguntas: o que esse local conecta? Há registros de atropelamento? Qual a garantia de que essa conectividade vai se manter no futuro? E qual o grau de dificuldade de implementação dessa passarela?
A última pergunta, de ordem pragmática, envolve um calcanhar de Aquiles da maioria dos projetos de conservação: recursos. “Às vezes tem uma fiação totalmente desencapada ao lado e eu não tenho dinheiro para mudar essa fiação, ou o terreno é muito inclinado e exige um poste maior e mais caro”, detalha o professor.
Uma passagem de fauna pode custar de 8 a 40 mil reais, de acordo com essas variáveis.
Além das estruturas artificiais, com efeito imediato, Gordo faz uma aposta de longo prazo simultânea com passagens naturais. Para isso, planta árvores com copas largas nos dois lados da pista que, no futuro, permitam a travessia do sauim pelos galhos, de um lado ao outro.
Um símbolo desconhecido pelos manauaras
Apesar de ser um símbolo de Manaus e ainda estar presente em inúmeros fragmentos florestais pela cidade, muitos manauaras não reconhecem o animal.
O professor Marcelo Gordo conta que, em 2005, foi feita uma série de entrevistas com moradores de diferentes classes sociais em Manaus. Na época, a conclusão foi de que mais da metade da população não conhecia o sauim-de-coleira. “Isso há quase 20 anos. Melhorou muito com as campanhas da prefeitura e as ações de educação ambiental”, afirma.
Uma delas é a campanha Salve o Sauim, lançada em 2015, com o intuito de envolver a sociedade na proteção do sauim e pressionar pela criação de unidades de conservação para a espécie. Coordenada pelo biólogo Maurício Noronha, atual diretor do Instituto Sauim-de-Coleira, a mobilização contou com abaixos-assinados, eventos, livros e exposições fotográficas. Em 2021, foi lançado um livro infantil voltado para crianças e educadores, para sensibilizá-las sobre a conservação da espécie.
Outra ferramenta poderosa de sensibilização é o contato direto com o animal através das populações que resistem no meio urbano. “Tem um outro valor desses fragmentos dentro da cidade que têm sauim, porque quando as pessoas começam a ter contato com a espécie, elas começam a se afeiçoar e se preocupar com a espécie, isso é um ponto importante”, explica Gordo.
A manauara Raiclicia, de 30 anos, é uma das conquistadas pelo macaco. “Só conheci o sauim quando comecei a faculdade de biologia”, lembra. “E a maioria dos meus amigos também não conheciam a espécie. Alguns já viram o sauim, nos quintais, mas não sabem o que é, pra eles é apenas um macaco. Não sabem que é ameaçado de extinção e que só tem aqui”, conta a bióloga e voluntária do Projeto Sauim-de-Coleira.
De frente com o sauim
“Fica aqui atrás da pilastra, senão eles fogem”, orienta Gordo, enquanto nos aproximávamos da lateral do prédio onde fica o Projeto Sauim-de-Coleira, dentro do campus da UFAM. No local, os pesquisadores mantêm uma das sete plataformas, onde fazem a ceva dos sauins, para conseguir estudá-los e monitorá-los de perto no campus da faculdade.
É o melhor local para ter uma chance de observar estes macacos ariscos e desconfiados. Mesmo com a fartura de frutos na plataforma, eles se aproximavam devagar, cautelosos sobre minha presença. A cada movimento que faziam adiante, levantavam a cabeça careca e me fuzilavam com seus olhos pretos para se certificar de que eu não havia saído do lugar – calculadamente atrás da tal pilastra, conforme as orientações do professor.
Durante cerca de vinte minutos, observei o grupo de sauins-de-coleira ir e vir da plataforma, sempre atentos a mim. Parcialmente escondida atrás da pilastra e praticamente sem me mover, aos poucos eles pareceram relaxar um pouco. Apenas um pouco, mas o suficiente para eu vê-los comer próximos à plataforma, sem correr de volta para a camuflagem das folhas na parte mais alta do dossel. O grupo era composto por oito adultos e dois filhotes, uma densidade ligeiramente acima da média da espécie, de seis por bando.
Eles são macacos ágeis e miúdos, medem aproximadamente 30 centímetros, acrescidos de uma cauda fina de uns 40 centímetros. Sua cabeça toda preta chama atenção não apenas pela ausência de pelos, mas por seu par de orelhas pontudas e protuberantes, que parecem desajeitadas, maiores do que deveriam para um macaco tão pequeno. O resto do corpo também é singular, pintado meio a meio. A metade superior branca e a inferior castanha. Essa coloração é a grande identidade do sauim e está expressa tanto no seu nome científico “bicolor” quanto no popular, já que a “coleira”, seria uma referência a essa faixa branca. Com toda sua aparência única, achei o sauim um charme.
“Eu não me canso de olhar para eles. Toda vez que eles aparecem eu paro para ver”, conta Gordo. De forma estratégica, seu escritório está no canto do prédio, ao lado da floresta, e conta com um janelão de vista privilegiada.
A UFAM está inserida em um dos maiores blocos florestais remanescentes na área urbana da capital, um fragmento de 770 hectares na região leste da cidade. Desses, cerca de 630 fazem parte do terreno da universidade. Os outros são áreas verdes urbanas e quintais, que se somam ao maciço florestal universitário. Um desses quintais pertence à casa de Marcelo Gordo. E foi com observações cotidianas do sauim na sua floresta caseira que o professor decidiu aprofundar os estudos sobre a espécie.
“Os bichos começaram a aparecer no quintal da minha casa, não tinha ninguém trabalhando com a espécie. E eu comecei a conhecer melhor a cidade, vendo as invasões acontecendo, a floresta indo embora. Foi assim: já que ninguém quer trabalhar, eu vou”, lembra o primatólogo, que começou o trabalho de pesquisa e conservação do sauim no final da década de 90, já sabendo que seria uma briga difícil de vencer. “É uma luta inglória, mas eu gosto disso”, confessa.
Há futuro para o sauim em Manaus?
O futuro do sauim-de-coleira na área urbana de Manaus está intimamente ligado à manutenção do que ainda existe de floresta. A verdade, entretanto, é que nem mesmo isso daria garantias suficientes.
De acordo com as estimativas dos cientistas, a espécie precisa de no mínimo 10 mil hectares para assegurar a perpetuação de uma população saudável. Dentro da cidade, apenas a Reserva Ducke, situada no limite da expansão urbana, cumpre os requisitos.
“Teria que ter um governo que tivesse coragem e disposição de gastar alguns milhões para manter esses fragmentos e trabalhar a conexão de verdade”, aponta o professor da UFAM.
Gordo calcula que o número de sauins nos fragmentos de Manaus seja inferior a 2 mil indivíduos. O equivalente a menos de 10% da estimativa populacional total da espécie. O futuro da espécie, portanto, está na zona rural – onde a luta agora é para criação de um refúgio de proteção integral para o sauim.
“Se a gente for pensar a espécie como um todo, as áreas rurais são as mais importantes”, explica Gordo. “Mas tem uma questão ética. É justo sacrificar esses grupos de sauim na cidade? Você dormiria tranquilo sabendo que sacrificou esses bichos? Eu não”, reforça o pesquisador.
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