O lixo está na moda. Esta frase foi ouvida diversas vezes no encontro “Gestão de Resíduos Sólidos e Inclusão Social”, realizado em Olinda, Pernambuco, nos dias 28 e 29 de outubro. Mas os principais participantes do evento não querem mais ver seus nomes associados à palavra lixo. Chamam-se agora catadores de materiais recicláveis. E, para eles, o lixo estar na moda significa ao mesmo tempo uma oportunidade e um risco.
O lixo está na moda porque os órgãos públicos, ONGs e entidades financiadoras descobriram na reciclagem um campo promissor para projetos de inclusão social. Retirar os catadores dos lixões significa combater, de uma só vez, várias de nossas piores mazelas: pobreza extrema, trabalho infantil (e crianças fora da escola), insalubridade física e psíquica, violência, uso de drogas, exploração do trabalho por atravessadores e degradação ambiental.
Alguns dados citados com otimismo fazem crer que organizar os catadores em cooperativas é uma tarefa viável economicamente. A reciclagem é um mercado em expansão, que pode gerar postos de trabalho formal e aumento da renda. Os Indicadores de Desenvolvimento Sustentável (IDS) 2004, divulgados pelo IBGE, mostram que, em dez anos, a reciclagem de alumínio cresceu de 50% (1993) para 89% (2003), tornando o país campeão na modalidade. O papel reciclado subiu de 38,8% (1993) para 43,9% (2002). Isso considerando que apenas 8,2% dos municípios têm serviços de coleta seletiva, que alcançam apenas 2% do lixo produzido no país.
Esta é a oportunidade. E os catadores não estão desperdiçando. Nos últimos anos, multiplicam-se em todo o país cooperativas de coleta seletiva de materiais recicláveis. Eles participam de fóruns, comitês e movimentos regionais e nacionais. Chegam a se cansar de tantos compromissos. “A gente não tem que ficar em debate, indo de um canto pra outro. Queremos algo concreto”, diz Roberto Laureano da Rocha, catador de São Paulo e membro do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCMR). Algo concreto poderia ser “apresentar um projeto de lei obrigando as empresas a doar todo esse material”. O objetivo dos catadores e seus apoiadores é criar um modelo de gestão compartilhada dos resíduos sólidos. Em outras palavras, influenciar novas políticas públicas para a gestão do lixo. Reservando a eles, claro, o espaço que é seu por direito histórico.
O outro lado da moeda (e da moda) é que o lixo está valorizado como nunca. Plástico, alumínio, vidro e papel descartados às toneladas durante décadas são hoje tratados como matéria-prima. E a demanda desse mercado é maior do que a oferta. Utilizar os materiais reciclados em novos produtos representa para as empresas um atestado de responsabilidade social e ambiental. Ainda mais para aquelas que colocam nas ruas produtos altamente poluentes, como os feitos de PET (que levam até 450 anos para se decompor) e alumínio (200 a 500 anos). A noção de “responsabilidade pós-consumo” significa isso – a empresa é responsável pelo seu produto mesmo depois de descartado – e vem crescendo junto à opinião pública. Com ela, cresce o interesse e a necessidade da indústria de investir em reciclagem.
Para os catadores, este é o risco. Quando lixo vira dinheiro e as leis de mercado se impõem, aumenta a concorrência da iniciativa privada e até mesmo das prefeituras pela coleta, seleção e processamento dos materiais. As cooperativas precisam adquirir eficiência gerencial e fechar acordos com o poder público para serem incorporadas ao serviço público de coleta de lixo.
Organizado pela Escola Livre de Desenvolvimento Solidário da FGV de São Paulo e pela Fundação Avina, o encontro “Gestão de resíduos sólidos e inclusão social” foi um evento fechado, para 80 convidados, representando os principais interessados na questão: catadores de vários estados, prefeituras, Ministério Público, empresas de reciclagem, financiadores, ONGs e universidades.
Quem mais falou foram os próprios catadores. Como Maria Trindade Araújo, da Cooperativa de Trabalho dos Profissionais do Aurá (Cootpa), no Pará. Em 1993, aos 16 anos e grávida do segundo filho, ela fundou um grupo com 25 mães solteiras que viviam de catar no aterro local. Foram coletar nas ruas, junto a pontos do comércio e shoppings centers. Logo ficaram conhecidas como “Catadoras do Aurá” e conseguiram apoio da Prefeitura. A cooperativa cresceu, a parceria com o poder público foi oficializada e chegou um novo financiamento, via Caixa Econômica Federal. Hoje a Cootpa tem 459 associados e recolhe de 5 a 6 toneladas por dia de materiais recicláveis para a Prefeitura. A renda média dos cooperativados no Aurá é de 450 reais mensais. Para os 900 catadores que ainda trabalham por conta própria no aterro, querem oferecer cursos de capacitação. O objetivo é tirar todos de lá.
Em janeiro deste ano, a Cootpa inaugurou um Centro de Triagem, onde o vidro e o plástico são processados com a ajuda de prensas e um triturador. Assim agrega-se valor aos produtos e elimina-se a figura do atravessador. Com um carro ou caminhão e um pequeno galpão para estocagem, os atravessadores chegam a lucrar de 200% a 300% a mais do que os catadores informais de quem compram o lixo. Na cadeia produtiva da reciclagem, quanto mais próximo da indústria de reciclagem, melhor o preço dos materiais.
Por isso foram convidadas para o evento empresas que reciclam garrafas PET e vidro. A Frompet, de Recife, processa cerca de 700 toneladas de PET (Politereftalato de Etileno) por mês. A assessora sócio-ambiental da empresa, Maria Botelho, conta que 60% do material reciclado vai para a indústria têxtil. O resto vira matéria-prima na produção de tintas, revestimentos, material de construção e embalagens não-alimentícias. “A maior parte do material comprado pela Frompet vem de atravessadores, mas eles não são fiéis. Fazendo investimento, dando capital de giro às cooperativas, cria-se uma relação que garante volume e fidelidade. É com este argumento econômico, além da responsabilidade social, que tento convencer os empresários”, diz Maria Botelho. As parcerias com as cooperativas começam a emplacar. Junto com a Avina e a Companhia Industrial de Vidros (CIV), a Frompet bancou a infra-estrutura de um grupo de catadores da Paraíba que lhe fornecerá de 30 a 40 toneladas de PET prensado mensais.
Funcionando há dois anos e meio, a empresa ainda está tentando sair do vermelho. Foram grande investimentos para obter tecnologia de ponta alemã, e o que agora preocupa é o aumento do preço da garrafa. “São Paulo enterra 70% do lixo. Estão enterrando as garrafas PET, então a indústria de lá vem buscar matéria-prima aqui”, diz Maria Botelho, para explicar por que o crescimento da reciclagem é benéfico para a indústria: o aumento da oferta faz cair o preço, que hoje fica em média em 1,05 real o quilo prensado.
A Associação Brasileira das Indústrias Automáticas de Vidro (ABIVIDRO), que reúne 20 empresas do setor, também participou do encontro. Stefan Jacques David, representante da entidade, orgulha-se em dizer que o vidro é o único material 100% reciclável. Segundo ele, hoje 45% das embalagens são feitas com cacos reciclados. “A indústria de vidro quer ir ao encontro das cooperativas. Mas é importante envolver o poder público. Ele tem condições de levar renda aos catadores e atrair outros setores industriais para a cadeia da reciclagem”, explica Stefan.
Algumas poucas iniciativas recentes mostram que o Governo Federal acordou para o problema. Depois de um encontro com representantes dos catadores no ano passado, em que se emocionou ao conhecer suas histórias de vida, o presidente Lula determinou a criação de um Comitê Interministerial para a Inclusão dos Catadores. Dez Ministérios e Secretarias Especiais, além do BNDES e da Caixa, integram o grupo. Este ano, pela primeira vez, o Fundo Nacional de Meio Ambiente (FNMA) abriu licitação para projetos de inclusão dos catadores de lixo em cooperativas de reciclagem.
Mas ainda faltam marcos regulatórios nacionais para a gestão pública do lixo. Mudanças na legislação podem incentivar, por exemplo, a redução da geração de lixo (como experimentou-se na cidade de São Paulo), a adoção da reciclagem nas casas (com redução do IPTU, por exemplo) e empresas (com benefícios fiscais), a doação dos materiais para reciclagem. Mayra Huergo, do Departamento Municipal de Limpeza Urbana de Porto Alegre (DMLU), defende que materiais recicláveis deveriam pagar menos impostos, afinal “já pagaram uma vez”.
Na esfera municipal, há boas iniciativas. Porto Alegre tem o mais antigo sistema de coleta seletiva municipal do país. Implantado em 1990, hoje atende todos os 150 bairros da capital gaúcha e emprega 450 “recicladores” de várias associações, em oito unidades de triagem. Em Natal, a Prefeitura implantou há dois anos, em parceria com duas associações de catadores, um programa de coleta seletiva que hoje chega à metade dos bairros do município e fez acordos com os grandes geradores (empresas, escolas, hotéis, construtoras etc.) para que separem e doem seu lixo. Em Belo Horizonte, a Associação dos Catadores de Papel, Papelão e Material Reaproveitável (Asmare) recebe 60 mil reais da prefeitura por mês para assumir a coleta seletiva em parte da cidade. A Asmare é considerada um exemplo para as outras cooperativas do país. Tem 380 associados e recolhe 450 toneladas de lixo por mês. Vem expandindo suas atividades por meio de acordos com a iniciativa privada (como os bancos Itaú e Real, cujas agências doam todo seu lixo para reciclagem) e obtendo novos financiamentos. Segundo Luiz Henrique da Silva, catador e diretor da Asmare, o objetivo é entrar no ramo do processamento de plástico, junto com outras cooperativas.
A tendência de crescimento da reciclagem no país é, no geral, uma boa notícia ambiental, embora sua equação social e econômica carregue ainda muitas contradições. Como o fato de o mercado de reciclados se beneficiar do espírito consumista e da lógica descartável, enquanto uma das receitas para diminuir o impacto ambiental do lixo é justamente diminuir o descarte. Os catadores, devidamente capacitados por ONGs sócio-ambientais, já assumiram o discurso dos 3 Rs (reduzir, reutilizar, reciclar). Dizem que seu trabalho, por resultar do ideal da inclusão social, é comprometido com a cidadania, meio ambiente aí incluído. Dependem do lixo mas pregam sua redução, competem num mercado voraz mas pregam a economia solidária. Espera-se que resistam tanto às contradições quanto às tentações do processo.
Por mais que mobilize esforços sociais e atraia investimentos para gerar inclusão social, o mercado da reciclagem não pode operar milagres. Como lembrou Antonio Bunchaft, da ONG Centro de Estudos Socioambientais (PANGEA), de Salvador, “agora todo mundo quer criar associação de catadores, mas isso não é solução para o desemprego”.
Até porque o buraco pode ser mais fundo do que se imagina. Faltam dados precisos sobre a legião de brasileiros que vive do lixo que o país produz. Eles são cerca de 25 mil, segundo estimativa do Ministério das Cidades. Ou 200 mil, segundo a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Talvez até 500 mil, como estimam alguns catadores organizados. O fato é que a maioria continua na miséria. Constituem um universo obscuro sobre o qual a moda do lixo começa a lançar as primeiras luzes.
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