Reportagens

Deixem o Chico em paz

O governo Lula quer a transposição do São Francisco no ritmo do calendário eleitoral. Mas se depender do presidente do Comitê da Bacia, o projeto não sai.

Roselena Nicolau ·
5 de novembro de 2004 · 20 anos atrás

O presidente-executivo do Comitê da Bacia do Rio São Francisco (CBHSF), Luiz Carlos Fontes, é um homem de muitas palavras. Entenda-se com isso que ele é uma pessoa que gosta de conversar, tanto mais se o assunto for o chamado rio da integração nacional. Nesta longa entrevista, o geólogo e professor da Universidade Federal de Sergipe, coordenador do Núcleo de Estudos de Geologia Hidroambiental, disseca a polêmica que envolve o projeto do governo de transposição das águas do rio São Francisco.

O projeto prevê a construção de 720 quilômetros de canais de concreto para desviar água para áreas do Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Paraíba. A determinação do Ministério da Integração Nacional é de que em dezembro a licença ambiental do Ibama esteja em mãos e as licitações concluídas em fevereiro. Assim, as obras começariam em março de 2005. Mas se depender do CBHSF, muito água ainda vai rolar. A entidade, totalmente avessa à transposição, é a representante legal de uma bacia que comporta 504 municípios, com 16,4 milhões de pessoas nos estados da Bahia, Minas Gerais, Pernambuco, Sergipe, Alagoas, Goiás e Distrito Federal.

A maior parte dos 2,7 mil quilômetros do rio está na Bahia (48,2%) e em Minas Gerais (36,8%). O São Francisco nasce na Serra da Canastra, em Minas, e sua foz está em Penedo, Alagoas. Grande parte (58%) do polígono da seca, que atinge 270 municípios, está na bacia do rio. O governo alega que a transposição resolverá a falta de água no semi-árido nordestino, mas Fontes, acompanhado por várias entidades e representantes de governos estaduais, garante que o projeto não resolve o problema do nordeste e ainda cria um maior para a bacia do São Francisco.

O presidente-executivo do CBHSF acusa o ministro Ciro Gomes, um batalhador de primeira hora pela transposição, de ter interesses eleitorais e diz que as empreiteiras estão no outro lado da moeda que faz força para a realização das obras. Em meio às desavenças, o rio segue seu percurso recheado de problemas, como assoreamento, destruição de matas ciliares, lagoas marginais mortas, espécies nativas de peixes ameaçadas e por aí vai.

A transposição vai mesmo ser feita?

A idéia da transposição do São Francisco, prevista pelo governo Fernando Henrique Cardoso, foi retomada pelo governo Lula quando o vice-presidente José Alencar foi nomeado coordenador de um grupo interministerial que iria avaliar o projeto. Naquele momento, por ocasião da II Plenária do Governo, em outubro de 2003, nós do CBHSF entendemos que não poderíamos nos pronunciar sobre o assunto de forma isolada, porque precisávamos ter maiores dados sobre a realidade da bacia e de seus cenários futuros. O CBHSF iniciou, então, uma grande movimentação, inclusive com apoio da Agência Nacional de Águas (ANA) e dos órgãos gestores estaduais, para produzir o Plano Decenal de Recursos Hídricos para a Bacia do São Francisco.

É o Plano aprovado em julho passado?

É este. Fizemos este Plano porque não era de competência do CBHSF deliberar sobre um projeto isolado, no caso o da transposição, e sim sobre os critérios de uso das águas do rio. Decidimos investir no que era competência do CBHSF, já que em projetos individuais podíamos participar, mas não tínhamos poder normativo.

Esse Plano deu poder ao Comitê?

Sim, porque a lei diz que a outorga para o uso das águas, que é dada pela ANA, tem que obedecer aos critérios e prioridades do Plano da Bacia. Portanto, agora qualquer outorga só pode ser dada com base nos critérios estabelecidos pelo Plano Decenal de Recursos Hídricos.

As decisões do CBHSF não tinham efeitos legais antes?

Isso mesmo. O Plano é o primeiro marco regulatório de usos das águas da Bacia do São Francisco e se constitui na primeira fase do Pacto das Águas, acordado por todos os Estados que pertencem à Bacia. Estabelecemos itens muito importantes nesse Pacto, como qual é a vazão que deve permanecer no rio, qual é a vazão que tem que chegar na foz, qual é a vazão que pode ser retirada do rio para os diversos usos da água. São acordos que não podem ser esquecidos. Mas entre estes acordos não houve consenso em relação a um único ponto, justamente o que se refere ao uso externo das águas do rio. Por isso, o governo federal pediu vista da deliberação que tratava sobre os usos externos à bacia. A proposta que estava sendo apreciada, que refletia o posicionamento das câmaras técnicas do Comitê e que tinha sido submetida a consultas públicas era a de que o único uso externo possível da água do São Francisco era para consumo humano e dessedentação de animais.

Em que pé está este pedido de vista?

O governo federal negociou com o plenário do Comitê esse pedido de vista e aí entendemos que ele estava abrindo a possibilidade de rever o projeto de transposição. Então, estabelecemos como condição para negociações que o governo apresentasse um projeto de desenvolvimento sustentável integrado, não só para o semi-árido setentrional do nordeste (que será atingido pela transposição) mas também para toda a Bacia do São Francisco. Pedimos que não se priorizasse apenas parte do semi-árido. Mais de 50% da Bacia do São Francisco está no semi-árido brasileiro e quase 50% do total do semi-árido está na Bacia do São Francisco. Por que priorizar metade do semi-árido em detrimento da outra metade?

Como esse processo de negociação se encaminhou?

Logo após o acordo de negociação firmado com o governo federal, fomos surpreendidos com o anúncio aos quatro ventos de que o governo iria fazer a transposição de qualquer jeito, de que o orçamento da União contaria com recursos para as obras já em 2005. Foi lançado, inclusive, um dos editais de licitação para a gestão da obra e abriu-se o processo de licenciamento ambiental. Enfim, fizeram tudo o que tinham combinado não fazer, mas apresentaram um Plano de Desenvolvimento Integrado do Semi-Árido, no qual se inclui a transposição para o semi-árido setentrional. A avaliação das Câmaras Técnicas do Comitê foi a de que este Plano não atendia às expectativas e não trazia nenhuma novidade relevante, sendo mais propriamente uma reunião de ações já previstas no PPA, mas sem recursos assegurados. Como o Comitê tinha definido que qualquer proposta do governo seria submetida à consulta pública antes de ser apreciada em reunião Plenária, realizamos uma grande rodada nas cinco regiões da Bacia, entre os dias 14 e 23 de outubro.

O governo então rompeu as negociações?

Foi isso. Durante o processo de negociação, o governo começou a tomar decisões sobre a transposição sem que o Comitê pudesse opinar. O governo quebrou toda a relação de confiança que tínhamos construído. Nos estávamos reunidos não apenas como pessoas interessadas no que acontece com o rio, mas como o Parlamento das Águas do São Francisco. Achamos que este é um compromisso sério, e por isso não entendemos como o governo não honra um compromisso desses.

Quem rompeu com vocês no governo?

Ninguém assumiu formalmente o rompimento, mas foi assim que entendemos, pois a nossa expectativa era de que enfim teríamos uma negociação séria em torno deste projeto, com a possibilidade de modificá-lo e não apenas aceitá-lo.

O pedido de vistas sobre a transposição partiu de quem?

Quem pediu vistas na proposta de deliberação sobre usos externos das águas foi o Ministério do Meio Ambiente, devidamente acordado com o Ministério da Integração Nacional. Para nossa surpresa, além da iniciativa para iniciar a transposição em 2005 o governo emitiu um parecer, produzido pela assessoria jurídica do Ministério do Meio Ambiente, que procurava descaracterizar o CBHSF como instância deliberativa. Usou e abusou da nossa confiança e depois apresentou um parecer dizendo que o Comitê não tem poder nenhum para deliberar sobre a transposição. Isso causou uma grande revolta. Porém, conseguimos uma série de pareceres, que foram apresentados nas consultas públicas e também na plenária de Salvador (no final de outubro), que contestam totalmente a posição do Ministério e mostram que o parecer dele foi elaborado com o claro objetivo de tirar do Comitê prerrogativas que são definidas na lei 9433/97. Querem eliminar o Comitê como entrave ao projeto de transposição. O presidente do CBHSF José Carlos Carvalho (secretário de Meio Ambiente de Minas Gerais) afirmou em público que também não reconhece o parecer do Ministério do Meio Ambiente. Estamos embasados por pareceres da OAB da Bahia, do Ministério Público do Sergipe e da Bahia e pelo Ministério Público Federal.

As consultas públicas foram iniciativa apenas do CBHSF?

Sim, mas o Plano de Desenvolvimento Integrado do Semi-Árido, do governo, foi apresentado pelo próprio Ministério do Meio Ambiente, pelo João Bosco Senra (secretário nacional de Recursos Hídricos). Também os representantes do Ministério da Integração Nacional acompanharam as reuniões. É bom lembrar que a proposta de deliberação previa que o uso externo das águas do São Francisco estava limitado ao consumo humano e para dessedentação animal, desde que comprovada a necessidade. Então, nas últimas consultas públicas o que perguntávamos é se a população aceitava a ampliação do uso para atividades econômicas conforme o governo está pleiteando.

Quantas consultas foram feitas?

Foram cinco. Em Propriá (SE), Petrolina (PE), Bom Jesus da Lapa (BA), Pirapora e Belo Horizonte (MG). Foram consultas com quase quatro mil pessoas, de vários municípios de cada região, envolvendo sociedade civil, usuários da água, parlamentares e representantes dos governos estaduais e municipais. Foram consultas muito significativas, que aconteceram em outubro.

Qual foi a reação ao projeto?

O Plano de Desenvolvimento Integrado do Semi-Árido não continha novidades, só agregava o que já estava no Plano Plurianual do governo e incorporava a transposição. A grande questão, e que indagamos a todos, é o que leva o governo federal a eleger metade do semi-árido como prioridade, levando até lá a água do São Francisco, mas em detrimento da outra metade, exatamente a que está na bacia do rio. Por isso, prefeitos e as populações se revoltaram com o projeto do governo. Eles relataram casos dramáticos de pessoas que estão a poucos quilômetros do rio, às vezes na margem do rio, e ainda são servidas por carros-pipa. Foram relatados também casos de adutoras que estão paralisadas há anos porque não existe recurso dos Estados ou do governo federal para a conclusão das obras. Além disso, foram mostrados grandes projetos de irrigação que estão também parados. O que justifica então levar água a quase mil quilômetros de distância da calha do rio? Tudo isso apareceu nas consultas públicas e a decisão final foi a de que o uso externo das águas da Bacia está vetado. A maioria votou contra até mesmo para o uso humano e para o uso animal.

Essa decisão repercutiu de que forma no próprio Comitê?

A decisão retirada das consultas públicas foi contrária ao que o CBHSF estava propondo. Mas entendemos que as pessoas que participaram das consultas não queriam deixar de ajudar quem realmente precisa matar a sede. Na verdade, a decisão das consultas refletiu o medo de que a aprovação para o uso externo das águas destinado ao consumo humano e animal significasse o aval para o projeto de transposição do Ministério da Integração. Achamos até que eles têm razão, que o governo poderia usar essa deliberação para justificar a transposição, mas não poderíamos deliberar sem considerar as questões humanitárias e legais envolvidas.

A decisão das consultas foi replicada na plenária de Salvador?

Não. Em Salvador, apresentamos os relatos das consultas, porém o CBHSF não é uma ONG, é um órgão de Estado e tem dentro dele uma série de representações, inclusive dos governos federal e estaduais. Temos que analisar as questões legais envolvidas. Temos situações em que o rio já fornece água para outros fins – em Aracaju, por exemplo, usa-se água do São Francisco. A lei 9433/97 prevê a prioridade para o consumo humano e dessedentação animal em caso de escassez. Por isso, era inócua a decisão de que não cederíamos água para esses fins. Além do mais, entendemos, desde o início, que se há necessidade realmente para uso humano, mesmo havendo algum prejuízo para a Bacia do São Francisco, deveríamos ceder essa água. Fiel a isso, o Comitê procurou mudar a redação anterior da deliberação das consultas, para evitar que a decisão fosse utilizada para viabilizar este projeto de transposição defendido pelo Ministério da Integração. De fato modificamos, e o que foi aprovado é que a utilização da água do São Francisco é restrita aos usos internos à bacia, salvo a exceção prevista em lei, que é a possibilidade de uso externo para consumo humano e dessedentação animal mediante comprovação de escassez. Ressaltamos ainda que o uso da água como insumo produtivo só poderia ocorrer dentro da própria bacia do rio São Francisco.

Mas com isso o Comitê se utilizou de uma artimanha que vai contra a decisão das consultas públicas, não?

Não podíamos aprovar a deliberação das consultas porque ela não tinha embasamento legal. Não tinha como o Comitê assumir a deliberação naqueles termos, porque estaríamos sujeitos à derrubada dela e a situação iria ficar ainda pior.

Mas a decisão do Comitê não fragiliza as próximas consultas?

Realmente, criou-se uma situação delicada para o Comitê, mas esperamos demonstrar o desejo manifestado pela comunidade, de não aprovação deste projeto de transposição do rio. Isso está claro para nós. Não contemplamos o projeto do governo em relação ao que seria destinado para uso humano e animal. O projeto de transposição prevê uma vazão máxima de 127m3/s, alegando que 26m3/s serão para uso humano e animal. Esse valor não atende aos critérios do Comitê, porque prevê, por exemplo, água para Fortaleza, uma cidade que tem água e que não está enquadrada numa situação de escassez. Temos muitos documentos que demonstram que não há situação de escassez no Ceará. Não há justificativa para se levar água para lá. Em outras palavras, encontramos uma forma legal de inviabilizar este projeto do governo, particularmente no que diz respeito ao eixo norte do projeto. No fundo, o Comitê atendeu ao desejo manifestado pelas consultas públicas. Apenas a forma de demonstrar isso foi diferente.

O Comitê definiu, então, os lugares ou regiões que poderiam ser atendidos com o uso externo das águas?

Não, porque para isso é necessária a comprovação, pelo governo, da escassez de água na região, o que exige estudos técnicos. Além do mais, há dois adendos importantes. O uso das águas do São Francisco como insumo produtivo só é permitido dentro da própria Bacia. Ou seja, a água não pode ser utilizada externamente em projetos de irrigação, de criação de peixes, camarões etc. Mas o projeto do governo diz que 70% do uso externo pretendido para o eixo norte é para uso econômico.

Isso quer dizer que 70% dos 127m3/s que seriam desviados atenderiam a projetos comerciais?

Os 127m3/s é a vazão máxima que o projeto prevê e inclui 26m3/s para uso humano e animal. Mas se aplicarmos os critérios estabelecidos pelo CBHSF, esses valores são exagerados. Em termos práticos, a aplicação dos critérios de uso da água definidos pelo Comitê inviabiliza o projeto de transposição tal como ele está concebido. A decisão do Comitê, aprovada (em Salvador) por 44 votos a favor, 2 abstenções e 4 votos contrários, e com a presença de mais de 800 pessoas, é um verdadeiro veto ao projeto do governo.

De quem foram os votos contrários?

Três votos contrários foram dados pelos representantes do governo federal e um pelo governo de Pernambuco. Os outros Estados votaram com a proposta do Comitê, inclusive representantes de Pernambuco que não pertencem ao governo do Estado.

E agora, o que o CBHSF faz com esta decisão?

Em termos da Bacia, a decisão está tomada, apesar da posição do ministro Ciro Gomes que fez uma campanha de desqualificação do Comitê, alegando que falávamos em nome de poucas pessoas, que não representávamos toda a Bacia, que estávamos defendendo interesses paroquiais. Com esse processo, demonstramos claramente que falamos em nome da Bacia.

E a ministra Marina Silva, qual é a posição dela?

A posição da ministra é delicada. Apesar de não adotar a franca defesa do projeto do governo, está um pouco a reboque da imposição do Ministério da Integração Nacional.

O Comitê pode atuar agora de que forma para impedir a transposição?

O CBHSF ainda não esgotou a sua participação. Primeiro, o governo prometeu que o assunto irá para o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, onde defenderemos nossa posição. Segundo, instauramos em Salvador um processo de conflito de uso. O que significa isso? Até então, estávamos tratando a transposição de uma forma geral, como qualquer tipo de transposição, e não a apontada pelo projeto específico do governo. A lei 9433 diz que o Comitê arbitra, em primeira instância, os conflitos de uso. Agora, será analisado o projeto em si. As partes terão que se pronunciar.

E que desdobramento tem esse tipo de ação?

Dois dias depois dessa ação, definida na plenária de Salvador, o Ministério da Integração Nacional deu entrada, no Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) – que é presidido pela Ministra do Meio Ambiente e é o topo do sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos -, no pedido de aprovação do projeto de transposição, em regime de urgência.

O processo foi apressado? Em que momento o projeto teria que ser submetido ao Conselho?

Foi apressado sim, mas pedimos à ministra Marina Silva que a deliberação do Conselho fosse transferida para uma reunião que acontecerá no final de novembro, convocada apenas para este fim e com a presença do CBHSF. Obtivemos uma vitória parcial, porque a ministra acatou nosso pedido, mas o regime de urgência do pedido do do Ministério da Integração Nacional foi mantido. Isso significa na prática que a matéria será apreciada pelo Conselho sem nenhuma apreciação de outras partes. O Ministério da Integração Nacional entrou com o requerimento, os conselheiros receberam um CD com o projeto e pronto. Não há nenhuma consulta às câmaras técnicas do CNRH, não há o contraditório, os conselheiros não tomaram consciência da polêmica e nem dos impactos que a transposição impõe à Bacia. É um verdadeiro escândalo.

O CBHSF tem representação no Conselho Nacional de Recursos Hídricos?

Não. Os Comitês como um todo têm apenas um representante, com um voto. A maior parte dos representantes no Conselho é do governo.

O governo conseguirá aprovar o projeto no Conselho?

O governo aposta nisto.


Mas por que você duvida que seja fácil?


Porque vamos fazer um trabalho junto aos conselheiros. Não vamos ficar de braços cruzados vendo tudo acontecer. Mas o governo realmente aposta que tem a maioria no Conselho. Tanto que o ministro da Integração Nacional disse que a posição do Comitê não afeta em nada o andamento do projeto. É uma afronta à lei. No momento, a decisão que vale é a do Comitê. Então, como um ministro ou um porta-voz diz que a decisão não está valendo nada? O que é isso? Não existem mais lei no Brasil?

O Conselho deveria estar a reboque do Comitê?

Não, de forma alguma. Mas a decisão do Comitê deveria ser respeitada pois esta é a essência do sistema nacional de gerenciamento de recursos que prevê a gestão por bacia, de forma participativa e descentralizada, através dos Comitês. A Lei 9433 assegura ao CNRH a decisão sobre projetos que afetam mais de um estado, mas dois aspectos não podem ser esquecidos. Primeiro, que os projetos não podem ferir o Plano da Bacia, onde estão contidas as prioridades e critérios que condicionam a emissão de outorgas por parte do órgão gestor, que no caso dos rios federais é a Agência Nacional de Águas. E o projeto de transposição necessita da outorga para poder retirar água do rio e para obter o licenciamento ambiental. Segundo, o CBHSF instaurou um processo de conflito de uso e a rigor o Conselho não pode deliberar sobre uma matéria enquanto o processo está na primeira instância. É a mesma coisa que um processo qualquer ainda estar sendo analisado na primeira instância e o Supremo decidir. Há uma série de irregularidades com as quais a gente não concorda. Um processo dessa natureza não pode ser decidido dessa forma açodada. Nada justifica a pressa, já que isso implica gastos grandes e há muitos argumentos contra a sua sustentabilidade e em relação aos impactos que causará na Bacia do rio São Francisco. A não ser que haja interesses escusos.

Que tipo de interesse?

Os que vêm sendo denunciados na imprensa. Existe um verdadeiro lobby atrás desse projeto de transposição, que envolve interesses eleitorais e também de empreiteiras, de grandes empresários do Ceará e do Rio Grande do Norte, que serão muito beneficiados com o projeto. Ao contrário do que o governo anuncia, não é a população pobre que será beneficiada. Se fosse isso, fariam um projeto muito mais barato, com adutoras, para levar água a quem realmente precisa e não este megaprojeto, que tem o endereço muito claro de atender aos grandes interesses. Como está, este é mais um projeto da indústria da seca.




O projeto de transposição é aventado no Brasil desde a época do Império. Por que nunca foi feito?

Ao contrário do que diz o governo, de que nunca houve alguém com coragem para realizá-lo, a transposição não foi feita porque ela nunca se mostrou viável. Não é a solução para a seca no nordeste e só foi retomado porque atende a interesses eleitorais e econômicos, tanto de quem vai receber a água quanto de quem vai construir. A realização de um projeto como esse não pode depender da aprovação de apenas uma das partes. Tem que se entender que a água da Bacia do São Francisco é um patrimônio natural, que vai fazer falta no futuro. Da forma com que está sendo conduzido trata-se de um mero projeto, não de integração como consta do seu mais novo título, mas entregação das águas do rio São Francisco, com uma decisão unilateral e impositiva de transferência de recurso natural, emprego e renda.

Como Lula se posicionava antes da eleição sobre a transposição?

Ele dizia que nunca faria nada sem ouvir os técnicos, os estudiosos e a própria Bacia do São Francisco. Quando o governo edita uma lei, como a 9433, que diz que a gestão das águas se dá através do planejamento da Bacia, que é participativo e descentralizado, ele abre mão de decidir sozinho sobre os cursos das águas. Essa é uma lei de 1997. Então, o governo não pode decidir nada mais unilateralmente, não pode impor, não pode decidir o destino de uma região tirando água de uma Bacia para outra. O processo de condução está errado. Não creditamos ao governo federal o poder de decidir sozinho sobre a retirada de água do rio.

Em resumo, o que é o projeto do governo?

Ele prevê dois eixos de transposição, o norte e o leste. O eixo norte capta água em Cabrobó, entre Pernambuco e a Bahia, após a Barragem de Sobradinho. O leste capta água em Itaparica, na Bahia. Este eixo atenderá Pernambuco, Paraíba e uma parte da própria Bacia do São Francisco. Essa parte do projeto beneficia o uso humano da água, apesar de não se enquadrar totalmente nas determinações do Comitê. Porém, com algumas modificações, ele ficaria aceitável. O eixo norte atenderá o Ceará e o Rio Grande do Norte. As maiores críticas são em relação a este eixo, porque lá está a maior parte da destinação da água para uso econômico. O principal argumento do governo é de que o projeto vai atender especialmente a população que sofre com a seca. Verificamos, entretanto, que ao longo do canal essa população vai ser atendida é com a construção de chafariz, como consta do Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) do projeto.

A água não chegará na casa das pessoas?

Não. Quando o presidente Lula diz que as pessoas que não entendem o drama da seca é porque nunca tiveram que carregar um balde d’água, ele esquece que, depois da transposição, as pessoas vão ter que continuar carregando balde. Vai haver um benefício, é claro, porque a água vai estar mais próxima, mas isso vai resolver o problema só de quem está próximo ao canal, porque ninguém vai andar quilômetros e quilômetros para pegar água no chafariz. Esse é um grande erro do projeto. Ele só prevê a construção de canais. O governos dos Estados é que terão que bancar a distribuição da água. Hoje, só o governo de Pernambuco tem duas obras de adutoras que captam água do São Francisco paradas.

Por falta de recursos?

Exatamente. Há quase uma década as adutoras estão paradas. Hoje, pessoas que vivem à margem do São Francisco, a dois, três, oito ou quinze quilômetros, não recebem água de adutoras. O fato de ser criado mais um canal não vai necessariamente levar água para essas pessoas. Não vai resolver o drama da seca. Se o problema não foi resolvido após séculos para quem está na beira do São Francisco – a maior transposição natural do Brasil, que leva água do Sudeste para o Nordeste – ele será resolvido com este novo São Francisco? Não dá para acreditar na essência do projeto. Aliás, o secretário de Recursos Hídricos do Ceará, Edinardo Rodrigues, já declarou que não está esperando água para uso humano. O que eles querem é aumentar o desenvolvimento econômico do Estado. Também o secretário de Recursos Hidricos do Rio Grande do Norte, Josemá de Azevedo, declarou em palestra no CNRH que espera água do rio São Francisco para novos projetos de irrigação e para a criação de camarões. Água para abastecimento humano não falta nesses estados. O que falta é a distribuição adequada dessa água.

Por que o Comitê não admite que a água seja usada para uso econômico, se isso também pode trazer desenvolvimento social?

Porque tem que ser considerada a relação custo-benefício. Se é para destinar recursos públicos para desenvolver uma região semi-árida, por que investir 5 bilhões de reais no Ceará, no Rio Grande do Norte e na Paraíba, e não na própria bacia do rio São Francisco, onde temos as mesmas ou até piores situações sócio-econômicas e climáticas, e ao mesmo tempo melhores condições para aproveitar esta água com menor custo? Será é que porque o ministro é do Ceará? Esta é pergunta que insistentemente deveríamos fazer ao governo federal.

Como estão os projetos de irrigação na Bacia?

A Bacia do São Francisco tem 8 milhões de hectares irrigáveis, dos quais são utilizados apenas 342 mil. Em 180 mil hectares, existem projetos iniciados e não acabados. Por que o governo não investe nesses projetos? Outra coisa, o Comitê deliberou que 360m3/s é a quantidade máxima de água que pode ser retirada do São Francisco. Tirando os cerca de 100m3/s que já estão sendo utilizados, sobram cerca de 260m3/s para todos os outros usos futuros da Bacia. Destes, a transposição pretende levar entre 25% a 48%, na média e na máxima, respectivamente.

O que significa isso?

Isto significa que pretendem utilizar quase metade da vazão que pode ser retirada do rio, e não 1% ou 3,5% como divulgam os defensores do projeto. Esta retirada trará um impacto muito grande nos usos futuros na bacia do São Francisco, afetando duramente os planos de utilização das terras irrigáveis e aumentando a pressão para diminuir a vazão destinada à manutenção de ecossistemas e os usos da água que permanece no rio. O governo calcula que não precisa ficar água alguma no São Francisco, como se toda a água pudesse ser retirada. Isso é uma grave agressão ao rio e uma desconsideração monstruosa em relação à gestão do São Francisco. Como o governo consegue falar em revitalização do rio se o trata dessa maneira? O que o Comitê está dizendo é que é necessário ficar água no São Francisco, água suficiente para gerar energia, para navegação, para a pesca, para evitar que a água do mar invada ainda mais o rio, destruindo povoados como está destruindo. Mas como a posição do CBHSF se contrapõe aos interesses mesquinhos que estão tentando se impor, está sendo desconsiderada. Além disso, dos 360m3/s, 335m3/s já estão outorgados.

Como assim?

Os empreendedores detêm o direito de uso desta vazão, o que significa que, no momento, só sobram 25m3/s para todos os novos projetos. Só podemos falar em novas outorgas para grandes projetos quando for concluída a revisão das atuais outorgas, como o Comitê está propondo. É uma questão de respeito aos direitos já adquiridos e de aplicação do principio da precaução.

O volume de água a ser retirado é o maior empecilho técnico do projeto?

Existem muitos empecilhos técnicos e econômicos. Um deles é que com a transposição, o que sobrará da vazão alocável não permitirá irrigar nem 1 milhão dos 8 milhões de hectares irrigáveis. Este é apenas um dos muitos prejuízos que o projeto trará para a Bacia. Outra questão importante diz respeito ao custo da água. Na calha do rio São Francisco, a água tem custo zero. Mas para sua utilização como insumo produtivo é preciso levar a água até onde ela vai ser usada, e esse custo torna muitos projetos inviáveis na própria Bacia. No projeto de transposição, criar mecanismos para levar a água dos canais até onde ela será utilizada pode tornar inviável o custo comercial desse benefício. Temos de lembrar que o Comitê deverá implantar a cobrança pelo uso da água bruta, o que irá onerar ainda mais os custos da água da transposição. Várias estimativas demonstram que o custo final da água tornará inviável o seu uso na agricultura irrigada.

Então nem mesmo o benefício econômico justifica o projeto?

Sabe como eles querem resolver essa questão? Fazendo o chamado subsídio cruzado. Teoricamente a água do São Francisco vai para o consumo humano em Fortaleza, Natal e outras cidades, onde haverá um aumento de 20% nas contas de água, para assim baixar o seu custo na irrigação. Será que a população destas cidades foi consultada? Ela está disposta a esta sobrecarga nas suas contas de água para viabilizar a transposição para grandes empreendimentos?

Já foram feitos outros projetos de transposição nesses moldes?

No mundo existem outros projetos e sempre o governo procura destacar os efeitos positivos deles. Não falam dos efeitos negativos. Nos rios Colorado (Estados Unidos) e Amarelo (China), as transposições fizeram com que as águas não chegassem à foz em diversos momentos. Transposições nos Estados Unidos prejudicaram o México. Problemas graves aparecem especialmente na parte de baixo do rio. Na Espanha, uma polêmica enorme envolve atualmente o rio Ebro. Lá o governo emitiu um decreto que determina que transposições só podem acontecer depois que a bacia receptora fizer seu dever de casa, ou seja, criar a gestão das águas, otimizar ao máximo os recursos existentes e investir paralelamente na bacia doadora para sua revitalização. Tudo isso para só depois falar em transposição. É basicamente isso que estamos propondo.

Quais os recursos previstos para a recuperação da Bacia do São Francisco?

Concretamente, temos R$ 100 milhões para 2005. Mas para o projeto de transposição, só no primeiro ano, o gasto será de mais de R$ 1,73 bilhão.

Qual é o tempo previsto para a conclusão do projeto?

O governo diz que tudo estaria concluído em 20 anos.

Quem mais é contra a transposição, além do Comitê?

Muita gente. Um documento da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), redigido em um seminário internacional realizado em Recife em agosto deste ano e assinado por cerca de 40 renomados especialistas de todo o país (do Ceará ao Rio Grande do Sul), mostra a inoportunidade desse projeto. Eles recomendaram exatamente o mesmo que nós, uma boa gestão das águas antes de qualquer coisa. Um gestor público, se não quiser cometer improbidade administrativa, tem que pensar nesses termos e não se lançar nesse projeto megalômano que tende a ficar inviável.

  • Roselena Nicolau

    Roselena Nicolau é mineira de Belo Horizonte e jornalista. Foi repórter do Jornal do Brasil por 12 anos é correspondente ...

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