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Ambientalistas querem nova UC em Minas Gerais para proteger ave ameaçada

O bacurau-de-rabo-branco, que ocorre apenas no Cerrado, tornou-se o símbolo da luta pela criação de uma unidade de conservação de 3.500 hectares em Uberaba

Duda Menegassi ·
20 de abril de 2021 · 3 anos atrás

Por muito tempo, acreditou-se que a única população brasileira do bacurau-de-rabo-branco, ave endêmica do Cerrado, estava em Goiás, no Parque Nacional das Emas. Foi apenas em 2017, com muita surpresa e entusiasmo, que ornitólogos descobriram que a ave também ocorria em Minas Gerais, mais especificamente no município de Uberaba, na parte alta dos rios Uberabinha e Claro. O registro do habitat mineiro da espécie, considerada vulnerável à extinção, movimentou duas corridas: a de observadores de aves, que ganharam um local muito mais acessível para ver o raro bacurau; e a dos ambientalistas, para garantir a proteção deste local, cada vez mais pressionado pela mineração.

O bacurau-de-rabo-branco (Hydropsalis candicans) tornou-se então a bandeira e o símbolo da luta para criação de uma unidade de conservação de proteção integral, que garanta a preservação da população mineira da ave, exclusiva de ambientes campestres. As principais ameaças à sobrevivência da espécie em Uberaba estão relacionadas à degradação do seu habitat, tanto pela exploração minerária, quanto por incêndios criminosos e pela invasão de pinus – espécie de árvore exótica está transformando os campos em florestas empobrecidas.

A sugestão dos ambientalistas é criar um Refúgio de Vida Silvestre, que compatibilize o uso rural já consolidado no território com a preservação de áreas já legalmente protegidas e suas conexões com remanescentes naturais e áreas degradadas passíveis de recuperação. A proposta para nova unidade de conservação (UC), localizada no município de Uberaba e com 3.544 hectares de extensão, foi protocolada na última semana junto ao Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais (IEF), acompanhada de um longo e detalhado estudo sobre a área, que já havia sido apontada como prioritária para conservação em levantamentos anteriores.

A biodiversidade da região vai além do bacurau-de-rabo-branco e contempla um universo de 135 espécies de peixes, 62 de anfíbios, 68 de répteis, 312 de aves e 101 de mamíferos, além de 210 espécies da flora, com cerca de 50 espécies consideradas ameaçadas. Os dados foram levantados por uma equipe de pesquisadores que estudou a região para elaborar o relatório que embasa a proposta e a necessidade de uma UC no território.

“A cereja do bolo é a biodiversidade. A proteção desta espécie [o bacurau-de-rabo-branco] e de outras 14 espécies de aves campestres ameaçadas, além da proteção de outros táxons, peixes de riacho, mamíferos, flora… É uma região que agrega valores e atributos especiais de conservação que são raros de você encontrar no Cerrado: áreas de cabeceira, uma fauna campestre muito ameaçada, a importância hídrica e a urgência para ação de conservação, especialmente diante da ameaça da mineração e de outros impactos oriundos da má gestão do uso do solo, porque hoje o licenciamento [ambiental] não está resolvendo”, explica o ornitólogo Gustavo Malacco, diretor da Associação para a Gestão Socioambiental do Triângulo Mineiro (ANGÁ) e coordenador técnico dos estudos sobre a área proposta para a nova unidade de conservação.

A região possui ainda outros atributos importantes para conservação, como a proteção dos campos naturais, em especial dos campos de murundus, localizados na parte alta dos rios Uberabinha e Claro, que são áreas de manancial e de recarga que contribuem para o abastecimento dos municípios de Uberaba e Uberlândia. A elevada concentração de nascentes e córregos são outra prova da importância hídrica da região.

Vista aérea dos campos murundus. Foto: Gustavo Malacco

Um dos principais desafios para tirar a unidade de conservação do papel será a disputa pelo território, já que a região é uma colcha de retalho composta por 17 propriedades rurais. Para antecipar o embate, uma das estratégias foi justamente propor um Refúgio de Vida Silvestre, categoria que, apesar da proteção integral, dispensa a desapropriação e pode facilitar a negociação com os proprietários, assim como para o próprio governo, que não precisará desembolsar uma indenização numa região com um dos hectares mais caros do Brasil.

A outra estratégia adotada pelos ambientalistas na proposta foi valer-se das áreas que já possuem caráter protetivo. No desenho proposto da UC, 92,5% do território já é caracterizado como área legalmente protegida, tanto por reservas legais quanto por Áreas de Preservação Permanente (APP). Os apenas 7,5% sem nenhum instrumento de proteção, são na maior parte áreas de Cerrado stricto sensu, de pousio ou degradadas pelas atividades de mineração.

De acordo com Gustavo, apesar da quase totalidade do território já “protegido”, os atuais instrumentos não garantem a proteção efetiva da área diante da mineração. Atualmente, 72,65% do território proposto para o Refúgio de Vida Silvestre está no estágio mais avançado para solicitação de licença, que é a concessão de lavra para exploração de argila refratária e argila, consideradas de interesse social e, portanto, uma vez licenciadas, são autorizadas a agir mesmo em zonas de APP e reserva legal. O mesmo se aplica a outro mineral explorado na região, a turfa, que por sua vez é considerada de utilidade pública.

“A mineração pode usar o pressuposto da utilidade pública no caso da exploração de turfa, que é um dos minerais declarados ali no território. E no caso da argila, ela se enquadra como de interesse social. Consequentemente, mediante um processo de licenciamento ambiental, é possível essa intervenção para exploração tanto de turfa quanto de argila em APP. O mesmo vale para as reservas legais averbadas, que podem ser realocadas se o licenciamento autorizar a mineração. Resumindo, a gente tem uma atividade que, por lei, tem a condição de entrar nesse território supostamente protegido. Esse é o problema. E nós entendemos que uma unidade de conservação daria segurança total de que esse lugar não pode ser alvo de exploração minerária”, explica o ornitólogo. “O motivo da urgência para encontrarmos um instrumento que realmente preserve essa área tão importante é a atividade minerária”, completa.

Área impactada pela mineração no entorno do habitat do bacurau-do-rabo-branco. Foto: Gustavo Malacco

Gustavo diz que o diálogo com os produtores rurais já começou, assim como com as duas empresas mineradoras – Magnesita e Ibar – que exploram no local.

“Nós já tivemos algumas rodadas com o agronegócio, antecipamos alguma coisa da proposta. É possível dialogar com o agronegócio local, já que nossa proposta inicial não coloca 1 hectare de área agrícola passível de utilização. Nós tomamos esse cuidado para evitar o ruído. Agora, com a mineração não tem jeito, porque nossa proposta restringe a atividade [minerária]. O que a gente está tentando fazer para evitar esse processo é adiantar as conversas”, conta Gustavo, que explica que a intenção é sentar com as empresas mineradoras para avaliar o que cada um dos lados pode ceder para que a proposta se concretize. “Agora, se não chegarmos em nenhum acordo, aí a queda de braço vai ser grande e vai ser um processo complicado”, completa.

A expectativa é que o IEF dê um parecer técnico sobre a proposta, em que valide as informações levantadas no relatório sobre a importância da área para conservação. A partir daí, a decisão é política. “Pode ter o aval técnico, mas politicamente o governo na hora que for conversar com outras casas, pode achar que não é uma boa ideia. A decisão é do governador”, explica o ambientalista, em referência a Romeu Zema (NOVO).

Na balança a favor da criação do Refúgio, não há apenas a vertente ecológica, mas também o vetor econômico. Uma das oportunidades é o turismo de observação de aves, que já ocorre na região em função, principalmente, do bacurau-do-rabo-branco, e movimenta a procura por serviços de guia, alimentação e hospedagem.

Além disso, Gustavo acredita que o bacurau pode ser um símbolo para o próprio agronegócio local melhorar sua imagem. “Por exemplo, o bacurau pode ser um termômetro se a agricultura está sendo sustentável ou não. Se a população do bacurau se mantiver ou aumentar, quer dizer que aquelas atividades agrícolas possuem uma sustentabilidade. Essa é uma hipótese, porque o bacurau-de-rabo-branco é o que tem de mais raro lá e eu acho que precisa ser o símbolo. E assim eu acho que dá para estimular e envolver esses produtores preocupados em melhorar sua imagem em relação ao meio ambiente”.

Calcular o valor dos serviços ecossistêmicos prestados pelos campos naturais de Uberaba também está nos planos dos ambientalistas, para aumentar a força da proposta de conservação. “O município ganha em turismo sustentável, na proteção de áreas de recarga… e esses serviços ecossistêmicos, se mensurados, o valor é muito alto para indústria, pro abastecimento público, para mitigação das mudanças climáticas”.

“Essa proposta tem muita maturidade técnica e política. Não é uma proposta radical, pelo contrário. A gente tem uma proposta muito bem fundamentada e não temos dúvidas de que é uma área única e se a gente perder ela, vamos perder muitos atributos. É uma das áreas ainda não protegidas por unidade de conservação, mais importantes para conservação de aves do Brasil. E para aves campestres eu digo que é a mais importante do Brasil que ainda não está protegida, falando de campos limpos, sem entrar no mérito dos campos rupestres. Porque ela protege uma quantidade de táxons que só está presente de forma significativa em três locais: nos parques nacionais da Serra da Canastra, das Emas e aqui em Uberaba. E precisa de prioridade máxima de ação”, alerta Gustavo Malacco.

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  • Duda Menegassi

    Jornalista ambiental especializada em unidades de conservação, montanhismo e divulgação científica.

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Comentários 1

  1. Luiza diz:

    À exceção da visão utilitarista da ave como termômetro para beneficiar o agronegócio, ela deveria ter esforços para sua conservação por sua característica singular.