Finalmente os organismos multilaterais acordaram para o fato de que é necessário – e mais do que urgente – olharmos com maior atenção para 71% do planeta Terra: o oceano. A ONU lançou em abril a Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável, que irá de 2021 a 2030, e que serve como alerta para que os países voltem suas atenções para um ambiente que é vital à existência humana. A proposta é mobilizar cientistas, gestores, políticos e toda a sociedade a estudar e proteger o oceano que, em pleno século XXI, ainda é pouco conhecido.
A iniciativa tem o objetivo de promover um oceano acessível, conhecido e valorizado por todos, além de propor metas a serem cumpridas pelos países para que desenvolvam programas que possam atingir as diretrizes de: “um oceano limpo; um oceano saudável e resiliente; um oceano previsível; um oceano seguro; um oceano produtivo e explorado de forma sustentável; um oceano transparente e acessível; e um oceano conhecido e valorizado por todos.”
Uma das propostas mais relevantes de mudança indicadas até agora pela ONU diz respeito aos esforços para que a sociedade entenda que estamos falando de apenas UM oceano. Sim, o planeta possui um único oceano, que conecta a todos. E esse único ambiente é o responsável pelo equilíbrio climático planetário, regulando as temperaturas, determinando chuvas, secas e inundações, e produzindo mais de 55% do oxigênio que respiramos. Independentemente do lugar onde vivemos, a cada duas respirações que damos, uma vem do oceano!
Como todos já sabemos, as mudanças climáticas não são um problema do futuro. Elas estão acontecendo agora, e o oceano desempenha papel fundamental nesta crise, já que é o maior estoque de carbono do mundo – cerca de 83% do ciclo global de carbono circula pelas águas marinhas. Por isso, quando falamos em crise climática, não podemos deixar de ter atenção para o que está acontecendo nos nossos mares. O oceano sustenta uma biodiversidade inimaginável e dá suporte direto ao bem-estar humano por meio de recursos alimentares, minerais e energéticos, além de fornecer serviços culturais e recreativos. Os ecossistemas costeiros e marinhos são o nosso melhor sistema de defesa contra a crise climática, já que eles armazenam até cinco vezes mais carbono por hectare do que as florestas tropicais¹.
No entanto, o oceano vem de forma silenciosa, mas dramática, mudando e respondendo aos impactos produzidos em terra. Nos últimos duzentos anos o oceano absorveu mais de um terço do CO2 produzido e mais de 90% do calor retido pela crescente concentração de gases de efeito estufa. Segundo estudos recentes, nos últimos 25 anos, foi absorvida pelo oceano uma quantidade de calor equivalente à explosão de 3,6 bilhões de bombas como a de Hiroshima². Todo esse armazenamento de calor significa mudanças na temperatura da água, acidificação e desoxigenação do oceano, levando a mudanças na circulação física e química da água, ao aumento do nível do mar, ao aumento da intensidade de eventos extremos como tempestades, secas e inundações, à redução na diversidade e abundância de espécies marinhas, com impactos que afetam com maior força as populações vulneráveis.
Esses impactos são somados aos problemas do desmatamento, que responde por grande parte das emissões de gases de efeito estufa (GEE) no caso brasileiro, à poluição do ar e outras formas de poluição geradas nas áreas urbanas e à ocupação irregular nos ecossistemas costeiros, causando ciclo vicioso marcado pelo aumento das emissões e sérios prejuízos a todos.
Segundo o último relatório do Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC), a previsão é de sejam perdidos de 70 a 90% dos recifes de coral com um aquecimento global médio de 1,5°C. Com o aumento de 2oC, a previsão é que praticamente todos os recifes (> 99%) sejam perdidos. A elevação do nível médio global do mar também é preocupante. Em países com ocupação intensa da área costeira, como é o caso brasileiro, os efeitos dessa elevação podem implicar verdadeiros desastres, ainda mais em uma realidade na qual o tema tem sido pouco debatido nas municipalidades. Ao longo do século 21, projeta-se que o oceano transite para condições sem precedentes, com declínio do oxigênio e diminuição dos estoques pesqueiros. Prevê-se que as ondas de calor marinhas e eventos extremos se tornem cada vez mais frequentes.
A previsão feita por cientistas, de que estamos chegando a um ponto sem retorno para a Amazônia (tipping point), também é válida para o oceano. Recentemente, pesquisadores americanos e europeus se uniram para alertar o mundo sobre o que chamam de “pontos de inflexão do oceano”, que podem impactar definitivamente o aquecimento, a acidificação e a desoxigenação. Ou seja, mais do que apenas a declaração de uma década de Ciência Oceânica, precisamos de uma corrida mundial contra o tempo para salvar a vida humana na Terra azul.
O Brasil, detentor de um dos maiores territórios marinhos do planeta³, entra na Década do Oceano em completa desvantagem. Enfrentamos recentemente a maior tragédia já ocorrida na zona costeira no Brasil com o derrame de petróleo que chegou à costa brasileira em agosto de 2019, atingindo 11 estados, 130 municípios, 1.009 localidades e mais de 40 unidades de conservação até fevereiro de 2020, e que continuará afetando os ambientes costeiros e marinhos do nosso litoral por muito tempo. O caso continua sem solução, sem um programa nacional de monitoramento implantado nem tampouco um plano nacional de contingência operante.
Na última COP do Clima, realizada em Madrid em 2018 e considerada a primeira “COP Azul” da história, a delegação brasileira obstruiu politicamente a inclusão do oceano no documento gerado no segmento de alto nível (uma declaração dos governos). Segundo Unterstell e Prates (2019), “a diplomacia brasileira se apequenou, e nos envergonhou, ao recusar-se a apoiar o relatório especial do IPCC sobre oceanos e pedir exclusão do tema na agenda de trabalho do próximo ano”. Anos antes, no entanto, no Acordo de Paris de 2015, o oceano havia sido incluído explicitamente no texto. Em 2021, vimos a delegação brasileira obstruir o processo de avanço de novas metas para a biodiversidade, não aceitando o último Global Biodiversity Outlook – 5 no âmbito da Convenção sobre Diversidade Biológica e, no âmbito dos compromissos dos países junto à Convenção do Clima, não fazendo menção aos nossos ecossistemas costeiros em uma Nationally Determined Contribution (NDC) esvaziada. O atual governo piora a situação com o desmonte progressivo da legislação que protege nosso patrimônio ambiental, sobretudo no plano infralegal.
Enquanto o mundo tenta correr contra o tempo e despertar para o fato de que vivemos todos em um mesmo planeta azul, o país parece estar entrando, atrasado, no século XVIII. Só nos resta pedir a Iemanjá que se una a todos os demais seres e deuses marinhos para nos salvar enquanto é tempo.
Referências
- Kauffman et al. 2018. Carbon stocks of mangroves and salt marshes of the Amazon region, Brazil. Biol. Lett. 14.
- Cheng, L., and Coauthors. 2020: Record-setting ocean warmth continued in 2019. Adv. Atmos. Sci., 37(2), 137−142, https://doi.org/10.1007/s00376-020-9283-7
- Estamos entre os dez países com maior Zona Econômica Exclusiva (ZEE). Ver: https://www.economiaazul.pt/blogue/2021/1/13/zee-ranking-paises-com-maiores-zonas-economicas-exclusivas-zee. Acesso em: 26 mai. 2021.
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