Dentro das ações para os 1000 dias de mandato, o presidente Jair Bolsonaro assinou, na última sexta-feira (1º), um decreto que cria nova linha de financiamento para que o agronegócio brasileiro possa desenvolver atividades de conservação e recuperação de florestas nativas. Apesar de ter sido divulgada como mais uma forma de aliar a produção agrícola com a preservação, a medida foi duramente criticada por especialistas: além de não apresentar qualquer detalhamento sobre como seria implementada, essa nova linha de crédito tem como base um mercado ainda não consolidado no país: o de pagamento por serviços ambientais (PSA).
A linha de financiamento em questão foi chamada de Cédula de Produto Rural Verde (CPR Verde) e é um desdobramento de outra linha de crédito que já existe desde 1994 (Lei Federal 8.929/1994), a chamada Cédula de Produto Rural (CPR). As CPRs são títulos de crédito do agronegócio que permitem a participação de empresas privadas no financiamento agrícola.
Atualmente, estima-se que 30%, em média, dos recursos destinados aos produtores rurais são subsidiados pelo governo. Outros 40% têm origem no capital dos próprios produtores rurais. O restante da demanda acaba suprida pelo mercado, por fornecedores de insumos que realizam vendas a prazo, por instituições financeiras, ou pela emissão da Cédula de Produto Rural (CPR), que tem condições de prazos e juros mais atrativos.
Funciona assim: o agricultor tem a expectativa que colherá 100 toneladas de soja, por exemplo. Ele então emite uma Cédula de Produto Rural considerando o resultado da safra e esta cédula é adquirida pelo setor privado no mercado de ações, antecipando o crédito ao produtor. Ao final do período previsto na cédula, que geralmente dura um ano, o produtor precisa retornar ao financiador o valor “emprestado”, em dinheiro ou em produtos.
Na CPR Verde, o governo prevê que agricultores que queiram manter suas florestas privadas em pé possam emitir esses títulos de crédito com base na área preservada, antecipando recursos que viriam da comercialização futura dos serviços ambientais gerados em sua propriedade.
“Conseguimos desenhar uma CPR Verde que vai trazer mais uma possibilidade para o produtor rural antecipar recursos de serviços ambientais. Serviços ambientais que serão lastreados no estoque de carbono da vegetação nativa, na absorção de credito de carbono durante a produção agropecuária e, por último, em outros benefícios ecossistêmicos”, disse o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, durante a assinatura do decreto que cria o mecanismo de financiamento.
Falta de informações
Apesar da explicação feita pelo mandatário da pasta ambiental, o decreto que criou o CPR-Verde, publicado na última segunda-feira (4), não traz detalhamento algum de como esse mecanismo acontecerá na prática.
“A norma é muito pobre, é uma regulamentação que não regulamenta muita coisa. São só quatro artigos, sendo que somente em dois a gente consegue ter um pouco mais de informação”, disse a ((o))eco Fábio Takeshi Ishisaki, advogado especialista em ciências ambientais pela USP e analista da organização Política por Inteiro.
O decreto diz apenas que o documento “regulamenta a emissão de Cédula de Produto Rural relacionada às atividades de conservação e recuperação de florestas nativas e seus biomas” e lista os resultados que os produtos descritos nas Cédulas devem apresentar: redução de emissões de gases de efeito estufa; manutenção ou aumento do estoque de carbono florestal, redução do desmatamento e da degradação de vegetação nativa; conservação da biodiversidade, conservação dos recursos hídricos; conservação do solo ou outros benefícios ecossistêmicos. O decreto estabelece também que os produtos descritos nos títulos serão especificados por uma certificadora independente.
Segundo Fábio Ishisaki, o decreto, na forma como foi publicado, deixa muitas perguntas sem resposta. “Como será a métrica, por exemplo, de redução de emissões de gases de efeito estufa? Como se verificará uma redução do desmatamento de vegetação nativa por simples aquisição de CPR Verde? Como será realizada a certificação por terceira parte? Haverá uma norma específica para a certificação? Deverão ser apresentados relatórios ou estudos que comprovem a manutenção da qualidade ambiental e dos compromissos vinculados à CPR Verde? De quanto em quanto tempo? Para quem? Sendo matérias ambientais e não somente de titulação, como fica a figura do Banco Central e do Conselho Monetário Nacional?”, questionou o analista, em artigo publicado na segunda-feira (4).
O decreto sequer deixa claro quais áreas poderiam entrar como objeto do título de crédito: se somente excedentes de Reserva Legal ou a Reserva Legal em si e áreas de Preservação Permanente. Reservas Legais (RL) são áreas que, por lei, devem ser protegidas, variando de porcentagem conforme o bioma. Incluir RLs no decreto significaria beneficiar o agricultor somente por cumprir o que determina a legislação.
((o))eco entrou em contato com o Ministério do Meio Ambiente para que estas e outras questões fossem respondidas, mas não obteve retorno até o fechamento da matéria.
Informações mais detalhadas do mecanismo vieram à público mais via imprensa do que efetivamente pela norma. Segundo matéria da TV Brasil, emissora oficial do governo, a nova norma tem como público alvo empresas brasileiras e estrangeiras interessadas em compensar, de forma voluntária, a emissão de gases de efeito estufa. A estimativa do governo federal é que as empresas compradoras das Cédulas tenham retorno, em compensação, em um ou dois anos, e que em quatro anos sejam emitidos R$ 30 bilhões em CPR-Verdes no país.
“É difícil imaginar por que as empresas, de boa vontade, vão investir R$ 30 bilhões em 4 anos em CPR-Verdes da maneira que foi apresentado. A iniciativa não tem claro quais são as garantias, os prazos, os certificadores, tendo em vista um ganho futuro em um mercado de PSA e um mercado de carbono que ainda não decolaram”, afirma a pesquisadora Biancca Scarpeline de Castro, professora da Universidade Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e co-autora do livro “Quanto Vale o Verde”.
Mercado de Pagamento por Serviços Ambientais
A Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais (Lei Federal nº 14.119) passou 13 anos em tramitação no Congresso e foi aprovada muito recentemente, em janeiro de 2021. Além de ter recebido vários vetos que a fragilizaram, a lei ainda não contribuiu para impulsionar um mercado de serviços ambientais no país.
Segundo Biancca Scarpeline, o mercado de carbono é o que tem mais avanços, mas ele também ainda não está consolidado nacional ou internacionalmente. Portanto, qualquer iniciativa que tenha como base a comercialização desses produtos, como é o caso da Cédula de Produto Rural Verde, dificilmente será concretizada até que a situação seja resolvida.
“O mercado de carbono foi pensado há muitos anos e até hoje há muito pouca iniciativa, os valores são muito baixos e o mercado não está consolidado. Quem comprar a cédula do produtor rural verde terá a expectativa de retorno financeiro para que seu ativo cresça, mas como vai crescer se não há um mercado robusto de produtos ambientais? É apostar muito em uma expectativa de ganho de um mercado que não emplacou”, diz a pesquisadora da UFRRJ.
Segundo Carlos Eduardo Frickmann Young, coordenador do Grupo de Economia do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor do livro “Quanto Vale o Verde”, já existem várias formas consolidadas de o setor privado compensar suas emissões.
“Atualmente existe um enorme esforço de se estabelecer métricas auditáveis [de compensação de carbono]. Se uma empresa quer ser carbono neutro e recuperar floresta, ela já pode. Quantas empresas já têm reservas particulares, por exemplo, não tem nada impedindo de fazer isso”, explica.
Se a meta é aumentar a preservação, ao invés de criar novos instrumentos de financiamento que deixam dúvidas sobre o seu conteúdo, Young defende que o governo poderia criar regras para os mecanismos já existentes. No caso da própria Cédula de Produto Rural, ele defende que sua emissão deveria estar restrita aos produtores rurais que estão em conformidade com a legislação ambiental.
“Não precisa fazer nada novo, basta restringir a CPR atual à agricultura de baixo carbono e proibi-la para quem esteja em desacordo com a legislação florestal”, disse.
Pra inglês ver
A CPR Verde foi articulada entre Banco Central e os Ministérios da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), Economia (ME) e Meio Ambiente (MMA). Desenvolvida desde o início do ano, ela é um dos produtos do pacote de medidas chamado “Programa de Crescimento Verde” que o governo federal pretende apresentar na COP-26, a ser realizada em novembro, em Glasgow.
O Programa é uma tentativa do governo reverter a imagem ambiental negativa do Brasil no exterior. Mas a longa ficha corrida de promessas descumpridas e iniciativas vazias colocam dúvidas sobre as intenções e eficácia de medidas como a CPR Verde, dizem especialistas.
“Está chegando a COP- 26 e o Brasil está fazendo um esforço para apresentar alguma iniciativa no evento, dado que todos os indicadores ambientais pioraram ao longo do tempo e vários acordos que foram firmados estão abandonados”, diz Biancca Scarpeline. “[A CPR Verde] é uma tentativa de mostrar que eles estão fazendo alguma coisa.”
Segundo Fábio Ishisaki, o mecanismo de financiamento proposto pelo governo poderia até ser um bom negócio, caso as regras fossem claras, com metodologias fortes, metas robustas e o compromisso efetivo da transparência. “Da forma como está, a CPR Verde pode acabar sendo mais programa de papel que não pegou ou uma iniciativa para inglês ver, a exemplo dos programas Adote um Parque e Floresta +, com seus subitens Floresta +Carbono, Floresta+Amazônia etc”, diz o analista.
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