Reportagens

Áreas rurais e ribeirinhas do Amapá enfrentam precariedade no atendimento de acidentes ofídicos

Até mesmo em municípios com alto índice de acidentes com cobras, como Mazagão, pacientes têm dificuldades de encontrar soro antiofídico

Fernanda Souza Melo ·
19 de setembro de 2022 · 2 anos atrás

Na comunidade de Lontra da Pedreira, na rodovia AP-070, zona rural de Macapá, o aposentado Aldenir Rodrigues, hoje com 41 anos, perdeu a perna direita aos 17 anos, enquanto trabalhava na roça. O motivo foi um acidente com uma serpente que ele denomina como “surucucu”, nome popular que pode ser relacionado com as espécies Bothrops atrox ou Lachesis muta. Aldenir remou de onde estava trabalhando até a terra firme e esperou a ambulância o levar até o Pronto Socorro do Hospital de Emergência da capital, onde ficou internado por dois meses. Equivocadamente, antes de chegar ao hospital, foi feito um torniquete na perna picada, o que somado à demora da aplicação do soro antiofídico, causou o agravamento do quadro, que resultou em amputação.  

O quadro dramático vivido pelo aposentado no Amapá, há algumas décadas, ilustra a realidade ainda atual das áreas rurais brasileiras, sobretudo na Amazônia, onde na tentativa de se curar dos acidentes causados por cobras, pela distância e dificuldade de acesso ao soro antiofídico, uma cultura de métodos caseiros foi se popularizando. Porém, muitas dessas alternativas são prejudiciais, podendo até mesmo piorar o quadro de saúde da pessoa acidentada. Esse é o caso do torniquete, que consiste em amarrar o local da picada, com a ideia de que o veneno não se espalhe pelo organismo. 

Porém, essa amarração, além de não ser capaz de controlar a ação da substância venenosa, que se desloca diretamente para a corrente sanguínea, causa a interrupção da circulação do sangue, fazendo com que o veneno tenha maior ação no local afetado. Nesses casos, são comuns as ocorrências de necroses e hemorragias que podem levar à amputação dos membros. 

As espécies mais comuns nos acidentes ofídicos 

No Brasil, país de megadiversidade biológica e, ao mesmo tempo, marcado por grandes passivos ambientais, a maior causadora de acidentes ofídicos é a jararaca, serpente do gênero Bothrops que está distribuída em várias espécies por todo o território nacional. De acordo com o Boletim Epidemiológico da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, em 2020 foram notificados 31.422 casos de acidentes com serpentes, sendo 21.972 (69,93%) botrópicos (causados pela espécie Bothrops).  

Arte: Julia Lima.

A Bothrops também é conhecida popularmente como “comboia”, “surucucu” ou “jararaca”. Moradores das áreas rurais são os mais atingidos, pois é onde a ocorrência dessas serpentes é maior. Porém, é possível encontrá-las em áreas mais afastadas dos centros das cidades, por terem uma facilidade de se adaptar em jardins ou em locais onde há acúmulo de objetos, devido à presença de pequenos roedores, principais fontes da dieta alimentar desses répteis. 

Na região Norte, encontra-se a espécie Bothrops atrox com altos números de registros de acidentes. Em 2019, o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) notificou 721 casos envolvendo serpentes no estado do Amapá, com uma queda para 473 casos, em 2020, circunstância não explicada pelos profissionais de saúde, tendo em vista que esses episódios se inserem no contexto de Doenças Tropicais Negligenciadas.  

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), essas doenças são assim classificadas devido à falta de interesse das empresas farmacêuticas multinacionais e de baixos investimentos destinados a esse grupo de enfermidades. O Boletim Especial de Doenças Tropicais Negligenciadas publicado pelo Ministério da Saúde destaca que, para que aconteça o controle delas, é necessário conhecer a realidade local e, com auxílio de estratégias de saúde pública, adotar medidas eficazes.

O impacto causado pelos acidentes ofídicos na população

Uma pesquisa intitulada Geographical accessibility to the supply of antiophidic sera in Brazil: Timely access possibilities (Acessibilidade geográfica ao fornecimento de soros antiofídicos no Brasil: possibilidades de acesso oportuno), realizada por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revela os municípios com altos números de acidentes ofídicos que não possuem soro antiofídico nas proximidades. Mazagão, no Amapá, aparece entre as dez cidades em que a ocorrência de acidentes é mais alta, com 91 casos registrados em 2019.

Em casos de acidentes ofídicos, moradores de Mazagão precisam se deslocar até a capital Macapá, como é o caso da agricultora, Socorro da Rocha, 68 anos, que em 2019 foi atingida por uma jararaca enquanto trabalhava na sua plantação. Ela teve que se dirigir ao Hospital de Emergência Osvaldo Cruz para ter acesso ao soro antiofídico e onde ficou internada por oito dias. 

“Era mais ou menos uma hora da tarde, eu fui juntar cupu, quando eu desci ainda tava lembrando de cobra. Depois quando passou pra ali, esqueci”, relata Maria Raimunda Rosa, 62 anos, outra agricultora. “Aí eu tava com um panelão na mão, fui arriar bem rente à folha de bacabeira quando senti a porrada na mão. Ainda tirei um espinho de laranja e consegui furar que o pessoal diz que furando ou cortando, o sangue não dá muito dano, né? Tomei uma colher do específico e fui para Mazagão. Me deram três soros lá, mas mesmo assim me encaminharam para Santana”, recorda sobre o caso que também aconteceu em 2019. 

O “específico pessoa” ou somente “específico” é um método caseiro utilizado popularmente na tentativa de curar acidentes com animais peçonhentos, principalmente em áreas rurais, onde o acesso à saúde é mais precário e esses casos acontecem em maior quantidade. O uso dessa substância se torna perigoso por não existir controle, testes de fabricação e distribuição no país, sendo necessário, nessas circunstâncias, estudos científicos com informações mais detalhadas e seguras. 

Além dos homens e mulheres trabalhadores das áreas rurais, as crianças também são vítimas de acidentes com serpentes, que acabam acontecendo em momentos do cotidiano. No município de Tartarugalzinho, a 231 quilômetros da capital Macapá, em uma comunidade localizada no distrito de Itaubal, um menino de 5 anos chamado Leonardo foi mordido por uma jararaca enquanto brincava na frente de casa, em fevereiro deste ano.  

A mãe dele, Cleidiane Maciel Passos, técnica em enfermagem, relata: “a médica me disse que não tinha o soro, aí eu fiquei mais preocupada ainda, e ela disse que não tinha ambulância para levar porque tinha ido atender uma pessoa em Pracuúba”. Segundo Cleidiane, o soro chegou depois de um tempo de espera. Leonardo foi medicado e ficou dois dias internado, tendo sido possível continuar a recuperação em casa, sem ter apresentado sequelas, apesar do susto sofrido pela família. 

Em 2020, o adolescente Arthur, 14 anos, teve o tornozelo mordido por uma jararaca de 8 centímetros, enquanto ia para a igreja. “Eu cheguei lá no hospital e eles estavam esperando a ambulância para ir para Macapá porque não tinha soro. Aí no Tartarugal [município de Tartarugalzinho], chamaram a ambulância e me levaram para Macapá. Cheguei lá meia noite por aí”, recorda o jovem sobre os desdobramentos em busca de socorro para um acidente que aconteceu entre 19 horas e 19h30.

A Secretaria de Saúde do Estado do Amapá (SESA) foi consultada sobre o estado ter alguma estratégia para diminuir esses índices de acidentes com cobras. Em resposta a essa demanda da reportagem, o órgão enfatizou que “o Estado possui o Programa Estadual de Vigilância de Acidentes por Animais Peçonhentos, que é responsável pela distribuição dos soros utilizados.” Sobre a distribuição de soros antiofídicos, a Secretaria esclareceu que: “essa distribuição ocorre de maneira que respeite a epidemiologia da ocorrência de casos e local de atendimento, tendo cada município um responsável pela informação de estoque e a inserção das fichas de notificação no SINAN.”

Foi questionado à SESA sobre se a diminuição de casos de acidentes ofídicos é uma das prioridades da pasta. Segundo argumentado, “o Programa Estadual sempre está voltado a orientar os municípios quanto à importância do atendimento rápido e oportuno ao paciente e à realização de campanhas de orientação à população para evitar este tipo de acidente”. Ainda segundo informado no comunicado, “é importante que as pessoas saibam o hospital mais próximo da sua casa onde possua estes soros.”

No entanto, como a demora para conseguir o atendimento nas regiões mais afastadas dos principais centros foi um problema que muitos moradores rurais relataram, foi questionado à SESA sobre a tentativa de solucionar essa demanda. “A descentralização das ações para o uso de soros antivenenos é uma prioridade do Programa Estadual para que o tempo de espera pelo paciente seja cada vez menor, e assim, o risco de óbito seja diminuído”, afirmou o comunicado enviado pela Secretaria.

Arte: Julia Lima.
Arte: Julia Lima.
Arte: Julia Lima.

Educação ambiental é fundamental para a prevenção de acidentes e proteção da natureza

Pesquisadores, professores, estudantes da área da herpetologia (área da zoologia que estuda sobre répteis e anfíbios) colocam em prática projetos de Educação Ambiental que têm o objetivo de sensibilizar a sociedade, mostrando a importância desses animais para o equilíbrio ambiental. Apesar de a culpa do declínio da população dos répteis e anfíbios não ser dos pequenos agricultores, ribeirinhos e outras comunidades que vivem no campo e na floresta, por serem esses os grupos sociais com mais contato com esses animais, especialistas consideram que esses são agentes com potencial de contribuir para a proteção dessas e de outras espécies. 

Em entrevista a ((o))eco, o herpetólogo e professor Paulo Sérgio Bernarde, da Universidade Federal do Acre (UFAC), Campus Floresta em Cruzeiro do Sul, analisa que a Educação Ambiental representa  uma estratégia fundamental para evitar que esses animais sejam mortos pelas pessoas que têm contato com eles e também para prevenir os acidentes e, ainda, para que aprendam  como agir, caso ocorram.  

“São essas pessoas que mantêm a floresta em pé e estão em uma zona de conflito com as serpentes. Então, cabe a nós tentarmos mudar o pensamento, ver quanto vão compreender e gostar desses animais para removê-los do local, pois são pessoas que têm habilidade para isso. Além disso, matar não irá resolver o problema pois outras serpentes podem aparecer”, observa o especialista. 

Bernarde também ressalta a realidade do Brasil como país de grandes passivos ambientais, cenário que também afeta a sobrevivência das espécies e, muitas vezes, provoca o seu deslocamento para áreas povoadas. “A gente tem que lembrar que os principais impactos sobre as serpentes é a destruição de habitats”. Sobre os atropelamentos nas rodovias, segundo ele, “provavelmente, muitas cobras são atropeladas pois seus habitats foram cortados, então a gente tem que considerar isso, mas não tirar a importância de evitar a caça”, analisa. O pesquisador ainda alerta: “Por exemplo, a surucucu pico de jaca (Lachesis muta), ocorre em baixa densidade, então se cada caçador topar com uma e matar, é uma espécie que já vai sofrer bem mais que uma jararaca (Bothrops atrox)”. 

Esse conteúdo é resultado da bolsa-reportagem concedida aos alunos do Minicurso de Jornalismo Ambiental, realizado por ((o))eco, Imazon e Fundação Amazônia Sustentável

  • Fernanda Souza Melo

    Graduanda de Ciências Biológicas – licenciatura na Universidade Federal do Amapá.

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