Parques nacionais e outras áreas protegidas estão no cerne das estratégias para conservar a vida selvagem. Mas, esses territórios delimitados e impactos humanos desafiam a preservação de aves migratórias, cuja vida é uma aventura por céus e terras do planeta. Um dos sítios mais valiosos para esses viajantes nas Américas está no extremo sul do Brasil.
“É preciso identificar os locais mais importantes para a migração das espécies e definir medidas para conservar cada um. A perda de qualquer local, de reprodução, descanso ou de inverno deixa populações propensas ao declínio”, resume o especialista em aves migratórias Richard Lanctot, coordenador de Aves Costeiras no Alasca no Serviço de Pesca e Vida Selvagem dos Estados Unidos.
Uma ave registrada no Brasil demonstra o desafio de proteger tais espécies. Com até 20 centímetros de comprimento e pesando no máximo 120 gramas, menos do que uma cebola, o maçarico-acanelado (Calidris subruficollis) é uma “máquina de voar”. Indo e vindo entre os locais de reprodução e de “veraneio”, percorre até 40 mil km – similares à circunferência da Terra.
“Ainda não se sabe porque certas espécies migram por tamanhas distâncias. Teoricamente, é para evitar predadores, doenças e parasitas, além de acessar locais com grande oferta de alimentos”, conta o pesquisador Fernando Faria, doutorando em Oceanografia Biológica na Universidade Federal do Rio Grande (FURG).
A jornada do maçarico começa nas bordas do Círculo Polar Ártico e depende de rígida preparação. Comem grandes quantidades de insetos, larvas, moscas e mosquitos. Intestino e fígado encolhem dando espaço para gordura, o combustível das expedições. Músculos peitorais ganham potência para o intenso bater de asas.
Adultos que não procriaram decolam em meados de julho. Mães e filhotes com poucos meses alçam voo até o início de setembro. Em seguida, avançam pelo centro da América do Norte, com paradas para comer e descansar em planícies secas e costeiras do Texas e Louisiana e, ainda, de países centro-americanos.
Adiante, pousam em savanas e campos na Bolívia e Venezuela. Seguem pelo centro da América do Sul até aportar, desde outubro, no Pampa do Brasil, Argentina e Uruguai. Ali permanecem até o fim do verão, quando retornam ao Ártico por rota semelhante, mas repousando também nas margens arenosas de rios amazônicos.
Antes estimadas por pessoas atentas às anilhas presas nas pernas das aves, essas grandes viagens são hoje mapeadas inclusive com GPS (sigla em Inglês de Sistema de Posicionamento Global). Os pequenos aparelhos presos ao corpo dos animais revelam suas rotas aos satélites e ajudam a definir medidas de conservação.
Retiro sulista
No Rio Grande do Sul, o Parque Nacional da Lagoa do Peixe e a Ilha da Torotama, no estuário da Lagoa dos Patos, são paradas obrigatórias de bandos de maçaricos. Na área protegida foram contadas 37 espécies de aves viajantes. Enquanto muitas chegam do norte do continente, outras vêm da Patagônia, do Pantanal e de outras inúmeras regiões da América do Sul.
“[O Pampa] é como se fosse um aeroporto internacional com múltiplas conexões”, ressalta o biólogo Eduardo Vélez, pesquisador do MapBiomas para o bioma e pós-doutor em Ecologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Não é para menos. Formações raras como a Lagoa do Peixe oferecem grande oferta de alimento para emplumados que precisam retomar suas forças antes de retornar aos locais de reprodução. Mas as aves também acham comida em pastos bem aparados pelo gado. Uma função que cabia antes a herbívoros como o toxodonte, extinto há milhares de anos.
“Uma pecuária com baixa lotação ou rotação dos rebanhos favorece aves ligadas a campos, dos mais baixos aos mais altos. A pecuária bem manejada em pastos naturais é sustentável, pois um certo nível de ‘herbivoria’ é adequado à ecologia de ambientes campestres”, ressalta Vélez.
Apesar da relevância ecológica, a Lagoa do Peixe esteve na corda bamba. Em fevereiro de 2020, o então chefe do parque, Fabiano José de Souza, lançou um abaixo-assinado para convertê-lo numa Área de Proteção Ambiental (APA), a mais frágil das unidades de conservação. A medida o abriria a pescadores, pecuaristas e ao setor de energia eólica, denunciou ((o))eco.
Além dessa ameaça, a reserva federal convive com invasões de pinus, cujas sementes são facilmente espalhadas pelo vento, com ocupantes e com gado pastejando em suas terras, ainda não totalmente desapropriadas com a indenização de legítimos donos de lotes. A área protegida em 1986 tem quase 37 mil hectares.
Ampliando a lente para além daquele território, a situação da planície costeira gaúcha está estável nos últimos 30 anos, aponta o MapBiomas. A urbanização desacelerou e banhados e lagoas não são mais drenados para cultivar arroz. Todavia, lavouras do grão são trocadas por soja, elevando a pulverização em solo e aérea de agrotóxicos danosos à vida selvagem.
Ao mesmo tempo, usinas e linhões de energia eólica poluem rotas de espécies migratórias. No Rio Grande do Sul, estruturas pontuam municípios litorâneos como Osório, Santa Vitória do Palmar, Pelotas, Chuí e Rio Grande. Proteção e monitoramento de impactos são definidos caso a caso, diz Fernando Faria, da FURG.
“Avaliar os prejuízos às espécies é geralmente associado a algum projeto específico, como de linhas de transmissão. Da mesma maneira, podem ser previstos monitoramentos durante a implantação e operação de usinas eólicas e, se há problema, adotar medidas para reduzir a morte de aves”, ressalta o pesquisador. As ações são reguladas desde 2014 por uma resolução do Conama.
Todavia, há outras ‘nuvens carregadas’ no horizonte das aves migratórias.
Forte turbulência
O maçarico-acanelado vem mantendo suas expedições anuais, mas há cada vez mais percalços impostos pela humanidade às rotas que essa e demais aves migratórias desenharam ao longo de milênios, descreve a plataforma “Aves do Mundo”, mantida pelo Laboratório de Ornitologia da Universidade de Cornell (Nova Iorque).
A agropecuária devora campos onde comem e descansam, sobretudo nos Estados Unidos e Argentina. Agrotóxicos matam adultos e filhotes. Muito caçados na América do Norte até o século 20, seguem alvo de tiros e armadilhas, principalmente na América Central. O derretimento do Ártico e outros efeitos da crise climática podem expulsar inúmeras espécies.
Tais pressões são comuns às 198 espécies migratórias descritas no Brasil, ou cerca de 10% das 1.919 espécies de aves reconhecidas no país, descreve o Relatório de Rotas e Áreas de Concentração de Aves Migratórias no Brasil, do ICMBio. Ações humanas já reduzem os números de quatro em cada dez espécies de aves migratórias no mundo. O maçarico-acanelado é “quase ameaçado” de extinção.
Em nível global, a situação das aves migratórias é vigiada por ongs como a União Internacional para Conservação da Natureza (UICN) e sua conservação é promovida por ações como o Projeto de Conectividade Migratória, focado em mapear a proteger rotas de migração, e a Iniciativa para Conservação de Aves Limícolas da Rota Migratória Intercontinental. O Brasil tem um plano nacional para proteger tais espécies desde 2013.
Enquanto isso, bandos de maçaricos-acanelados e tantas outras aves seguem riscando o globo com suas grandes rotas de migração. “Uma visão difícil de esquecer”, descreve o especialista Richard Lanctot, do Serviço de Pesca e Vida Selvagem dos Estados Unidos.
Para ele, a situação dessas espécies reflete a saúde de um mundo que se torna cada vez menos interessante à medida que as extinções aceleram. “Os seres humanos não lhes facilitam a vida. Nossas ações afetam muitos outros animais. Portanto, mesmo pequenas ações de conservação podem fazer a diferença”, arremata Lanctot.
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