A quantas anda a aplicação do princípio da precaução nestes tempos de emergência climática? Esta pergunta é provocativa e nos evoca a imagem de uma mãe perguntando aos médicos na UTI se o filho está comendo uma maçã ao dia.
É preciso reconhecer que a capacidade da sociedade ocidental de planejar seus atos para eventos distantes provou ser nula. O recente episódio planetário da pandemia de COVID-19 demonstrou a dificuldade de compreensão do período de quarentena necessário para evitar-se a transmissão do coronavírus: o que não gera efeito visível e imediato, não teria consequência alguma.
Extrapolando essa característica imediatista para o campo do Direito Ambiental, a dificuldade de planejamento ecológico e climático será ainda mais intensa. Não lidamos com escalas temporais medidas em semanas, mas em anos, décadas e séculos. Revolução Industrial? Ah, isso é coisa dos nossos tataravós!
Na Conferência da ONU de Estocolmo, no ano de 1972, o nascimento do Direito Ambiental era visto como o ramo do Direito agregador dos mais elevados valores éticos da humanidade (paz, solidariedade, vida, saúde).
Vinte anos mais tarde, a Conferência da ONU no Rio de Janeiro viria balizar os dois grandes vetores de defesa da vida: a proteção da diversidade biológica e o combate às mudanças climáticas. Impunha-se que os Estados e as corporações empresariais se curvassem estas convenções.
Os princípios e as metas do Direito Internacional do Meio Ambiente consubstanciados nas cartas e convenções internacionais das Nações Unidas sempre estiveram orientados para o futuro.
Em que pesassem os incontáveis alertas da comunidade científica, os Estados – leia-se, os políticos financiados pelas grandes corporações econômicas – limitaram-se a organizar encontros midiáticos, sem qualquer expectativa de adoção de providências imediatas e radicais no sentido de fazer cessar a extinção em massa de espécies biológicas, a contaminação dos rios e dos mares, a emissão de gases de efeito estufa.
É possível desenvolver teses universitárias nos mais diversos ramos do conhecimento a respeito da questão ecológica contemporânea. No âmbito das Letras, por exemplo, valeria uma tese a respeito da intensificação do uso de palavras e termos como “resiliência”, “novo normal” e “emergência climática” a partir do início deste terceiro milênio.
No campo do Direito, seria pertinente um estudo sobre a redução do número de estudos sobre mecanismos legais de proteção da fauna e da flora e simultâneo aumento das dissertações e teses sobre mudanças climáticas, refugiados ambientais, desertificação do solo, mega acidentes e catástrofes ambientais.
Na Sociologia Política, caberia levantar dados comparativos entre a ascensão das mobilizações neofascistas e a perda de representatividade dos trabalhadores e dos ambientalistas nos parlamentos.
O Brasil está novamente na UTI, agora por conta das enchentes no Rio Grande do Sul. O novo episódio ofusca os anteriores – o desastre radiológico em Goiânia, no ano de 1987 ou o afundamento da mina da Brasken em Alagoas, em dezembro de 2023. Ou no dia 18 de janeiro de 2000, quando um duto da Petrobrás provocou o vazamento de mais de um milhão e trezentos mil litros nas águas da baía da Guanabara, atingindo uma área de 40 km2. Que lições as empresas petrolíferas e o Estado tiraram de referido evento? A barragem de Mariana, em Minas Gerais, rompeu-se em 5 de novembro de 2015, resultando em uma das piores tragédias ambientais da história do Brasil. Já o rompimento da barragem de Brumadinho, também em Minas Gerais, ocorreu em 25 de janeiro de 2019, causando outra grande tragédia, com impactos devastadores para a região e para o país. Qual é o comportamento das gigantescas empresas de mineração responsáveis por estes crimes ambientais nos dias de hoje? Há alguma notícia nos jornais a respeito do maior rigor na fiscalização estatal dessas atividades, para que não morram mais pessoas, para que não ocorram novos ecocídios de rios como o Doce? Haverá quem se recorda do que aconteceu na tarde do dia 19 de agosto de 2019 na cidade de São Paulo, quando o dia virou noite, em razão do encobrimento do céu por partículas oriundas de fumaça produzida em incêndios florestais na Amazônia e no Pantanal Mato-grossense? Em meio ao aumento expressivo do número de doenças e mortes de pessoas por problemas cardiorrespiratórios, que providências tomaram nossos vereadores paulistanos, nossos deputados e senadores paulistas, junto ao Congresso Nacional, para evitar que seu eleitorado continue a adoecer e morrer em razão das queimadas?
Todos estes episódios aparentemente desconexos convergem para um ponto em comum: a incapacidade das gerações atuais de pensarem num futuro comum para a humanidade. A inobservância ao princípio da precaução não decorre do desejo de que se repita uma tragédia, mas da convicção de que a tragédia foi um caso excepcional, um act of god, como a queda de um meteoro na superfície terrestre ou, no máximo, o terremoto de Lisboa. Em Direito Penal, dir-se-ia que a atitude do Estado (enquanto leal preposto do capital) oscila entre a culpa consciente (o resultado é previsível, mas confia-se que não ocorrerá) e o dolo eventual (o resultado é previsível e altamente provável, mesmo assim pratica-se o ato ou omite-se quanto à ação necessária a evitar a lesão).
Quando o governador Eduardo Leite e todos os parlamentares gaúchos flexibilizaram a legislação ambiental sul riograndense, tinham eles absolutamente todos os elementos para saber que é a inação estatal, ou melhor, é a ação estatal em prol da exploração econômica predatória e imediatista que fomenta tragédias como a que ora é enfrentada pelo povo gaúcho. Não se ignora, evidentemente, que as causas ambientais da tragédia são anteriores ao empenho dos Poderes Legislativo e Executivo gaúchos de tornar a legislação ambiental letra morta. Não há apenas uma, mas incontáveis omissões estatais e ações empresariais por detrás desta tragédia. Por exemplo, as inúmeras anistias aos degradadores ambientais ao longo da primeira década deste século e a subsequente revogação, em 2012, do Código Florestal de 1965.
Para quem não teve um membro da família morto em Mariana ou Brumadinho, para quem não é Yanomami ou Krenak, para quem não dependia da pesca na baía da Guanabara, para quem não está ilhado nas águas do Guaíba, é muito cômodo falar em “novo normal” e em “resiliência”. São expressões destinadas a integrar o vocabulário de 95% da população do planeta que não dispõe de um helicóptero para resgatá-la e levá-la para a casa de campo na serra ou para Palma de Maiorca.
Somente no momento em que os banqueiros forem obrigados a aceitar que o “novo normal” é a drástica redução dos juros bancários e que é necessário pagar impostos pelas grandes fortunas, em que edifícios com garagem para cinco automóveis por apartamento (mais cinco para visitantes) sejam vistos como aberrações pré-apocalípticas, em que ministros do meio ambiente fechem a porteira para impedir a fuga da boiada e em que sejam punidos civil, política e penalmente aqueles que a permitiram no passado é que conseguiremos iniciar o processo de enfrentamento das mudanças climáticas e, mais do que isso, voltar a tratar da hoje esquecida Convenção da Biodiversidade – para que o Direito Ambiental volte a ser mais do que uma especialidade de advocacia empresarial. Em outras palavras, se quisermos pensar em equidade intergeracional e sustentabilidade, precisaremos promover uma revolução ambiental ética, econômica e política. No quadro atual, de individualismo, imediatismo, empreendedorismo e sucateamento das políticas públicas, essa meta parece inalcançável. E, assim, o discurso do “novo normal” – vá se acostumando – acaba também se normalizando. Afinal, diriam os cínicos representantes do capital, a longo prazo todos estaremos mortos.
As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.
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Fantástico esse texto: lúcido, realista e super bem escrito
O desprezo ao princípio da precaução, que alguns jusambientalistas juram que se trata de uma invencionice, como se não existisse um dever de prudência cujo desatendimento caracterizaria, em tese, a culpa, sempre deveria ser considerado apto a acarretar a responsabilidade, e isto em nada arreda a necessidade de se adotarem medidas concretas para enfrentar a catástrofe, que, em si mesma, era evitável. Uma coisa que se impõe, mas soa como um verdadeiro palavrão para os nossos empresários, é o planejamento da reconstrução do Estado e dos Municípios. Atuação do Estado, inclusive levando a sério o tratamento das bacias no contexto dessa sua função econômica constitucional. Levar a sério o que se contém no artigo 174, § 1º, da Constituição, nunca posto em prática, desde 5/10/1988, talvez porque a palavra “planejamento” ainda sofra o preconceito de ter surgido num contexto tido como antagônico ao capitalismo, embora países capitalistas avançados, como a França, desde a II Guerra Mundial, o adotem.
Excelente denúncia em forma de artigo, Guilherme. O processo de enfrentamento das mudanças climáticas e o respeito à Convenção da Biodiversidade depende de uma efetiva intenção de abrir mão de privilégios pelas corporações e/ou empreendedores nacionais e internacionais na busca de lucros sem a responsabilidade social de conservação do meio ambiente e da biodiversidade Em outras palavras, quando os governantes deixarem de se submeter à força dos lobbies nas propostas legislativas e nas políticas públicas e o Direito Ambiental for efetivamente valorizado nas decisões judiciais quando confrontado com os interesses econômicos dos grandes grupos.
Muito bom, Guilherme.
Já compartilhei.