Análises

Invadiram a nossa praia

Privatização de lugares públicos ocorre ao longo do litoral brasileiro, de forma silenciosa e sem gerar manchetes, vitimando principalmente comunidades tradicionais

Carlos Isaza Valencia ·
28 de agosto de 2024

Na memória da população brasileira, ainda está recente o escândalo causado pela Proposta de Emenda à Constituição (PEC 03/20220) que busca privatizar as praias e está tramitando na CCJ (Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania). Embora essa pauta tenha conseguido atenção pelo absurdo da ideia de restringir legalmente o nosso acesso a lugares públicos, essa situação acontece atualmente em diversas áreas do litoral brasileiro sem chamar a atenção das grandes manchetes nem viralizar nas redes sociais. 

Um exemplo dessa realidade é o caso da comunidade tradicional de pescadores da Barra de Mamanguape, situada no litoral norte do Estado da Paraíba, cujos membros expressam preocupação quanto ao risco que atravessam atualmente sua reprodução social e cultural. Apesar de seu território estar localizado dentro de uma Área de Proteção Ambiental (APA) que deveria garantir o uso sustentável do território, os caminhos ancestrais que conduzem às suas praias estão sendo fechados pelos muros construídos pelos novos moradores, que estão adquirindo terrenos para estabelecer suas casas de veraneio e estabelecimentos comerciais. 

As dinâmicas sociais, econômicas e ambientais da Barra de Mamanguape

Esta área protegida é cheia de contrastes, pois se trata de uma área de manguezais com 5.769 hectares de extensão, cercados por grandes plantações de açúcar e viveiros de camarão, os quais chegam inclusive a contaminar o solo, afetando a fertilidade da terra e impedindo as práticas de agricultura familiar. Os moradores da comunidade se ocupam historicamente da pesca tradicional de subsistência, colocando em prática diversas técnicas e conhecimentos transmitidos pelos seus pais e avós, ora com a coleta de marisco nos bancos de areia e a captura de caranguejos nos manguezais, ora lançando suas redes de pesca para capturar tainhas, sardinhas e outras espécies que habitam o estuário do Rio Mamanguape.  

Durante alguns anos antes do período de pandemia, os modos de vida da comunidade mudaram de forma paulatina com o despertar do interesse turístico pela Barra de Mamanguape, promovidos pela sua paisagem imponente, uma diversidade de ecossistemas e a presença de espécimes de peixe-boi marinho, destacados pelas ONGs que atuam no território como espécie chave para atrair visitantes. A promoção do local também chamou a atenção da Prefeitura de Rio Tinto, que tomou a decisão de atender uma demanda histórica da comunidade: asfaltar os 26 km de estrada que comunicam a Barra de Mamanguape com o centro urbano do município, criando uma grande expectativa, já que esse projeto mudaria a vida da comunidade, tornando o povoado mais acessível.

Transformações turísticas e urbanas: o custo do crescimento

No entanto, também foram criadas expectativas entre especuladores imobiliários e outros interessados em ter uma propriedade num lugar paradisíaco, onde pudessem descansar da sua vida rotineira. 

O interesse de terceiros nunca foi uma ameaça para a vida pacata da Barra de Mamanguape pelo fato de estar localizada em uma área protegida, ajudando a conter os embates de interesses econômicos externos. No entanto, após o ano 2021 a administração da APA, nomeada pelo governo de Jair Bolsonaro, autorizou a construção de numerosos prédios, derivando no aumento do valor dos terrenos, construindo muros em terrenos pelos quais a comunidade transitava diariamente, causando a sensação de serem invadidos por estranhos com muito dinheiro, que estão dominando o território. 

A combinação deste fator com o aumento do fluxo de turistas têm causado temor nos membros da comunidade, pois estão assistindo o seu território ser totalmente transformado, social de fisicamente, colocando em risco a tranquilidade do seu lar.

A aflição da comunidade é justificada, se considerarmos o fenômeno da gentrificação, no qual as comunidades tradicionais são vulneráveis a transformações que levam ao aumento do custo de vida e, em último caso, à expulsão do seu próprio território. A exemplo dessa situação, os membros da comunidade manifestam preocupação porque não sabem onde vão morar seus filhos quando estes decidirem formar um novo lar, pois a comunidade está ficando sem espaço para sua próxima geração.

A atividade turística tornou-se uma oportunidade para diversos membros da comunidade que encontraram uma fonte de renda adicional, seja no comércio local, seja guiando turistas para conhecer a biodiversidade do território, compartilhando sua sabedoria e sendo embaixadores dos modos de vida de populações tradicionais. 

Para garantir o bem-estar dos habitantes da Barra de Mamanguape, é fundamental que a atividade turística seja realizada por membros da comunidade, respeitando a lógica dos seus modos de vida e evitando a criação de locais comerciais com altos investimentos em infraestrutura, estabelecendo uma disputa de mercado desigual.

A luta pelo reconhecimento e a burocracia que assusta

Acreditando que seria um último recurso para não ver extintas suas tradições e ter controle do seu território, um grupo de moradores iniciou um processo administrativo perante o Ministério Público para solicitar o reconhecimento da comunidade como sendo tradicional de pescadores, “a fim de que possamos proteger nossa cultura e garantir nossa sobrevivência, já que o crescimento desordenado vem agravando problemas sociais e econômicos dentro do nosso território”. Agora, a comunidade atravessa um novo desafio, enfrentando procedimentos burocráticos aos quais não estavam acostumados e que já causaram terror na comunidade, como a autuação que receberam de órgãos ambientais para regularem seus estabelecimentos comerciais. 

Pescadores da comunidade tradicional Barra de Mamanguape. Foto: Carlos Isaza

Acredito que nos casos de comunidades tradicionais como a Barra de Mamanguape, a regulação deve ter um caráter orientador e de acompanhamento, compreendendo o contexto social em lugar de abordar a população com métodos punitivos e aplicando sanções que não estão em condições de cumprir. O pior de toda essa situação foi quando a comunidade se perguntou o “que tinham feito para receber esse tratamento?”, a resposta da fiscalização foi “informar que era isso o que estavam pedindo”, isto é, quando viram a necessidade de ser reconhecidas pelo Estado como uma comunidade tradicional de pescadores.

O Futuro Incerto das Comunidades Tradicionais

Como podemos ver, a luta das populações mais vulneráveis pelo direito a reproduzir sua cultura mediante a realização de práticas em lugares públicos continuará enquanto prevalecer a lógica econômica e o Estado legislar a favor da priorização dessa lógica. Jaque, uma vez que as APA são o modelo menos restritivo de Unidades de Conservação no Brasil, apresentam-se muitas dificuldades e limitações para proteger o território contra os interesses de investidores privados.

As áreas do litoral brasileiro são cobiçadas permanentemente por grupos que desejam se apropriar do espaço público para aumentar seu lucro com a conivência de alguns representantes do poder legislativo. Devemos estar atentos, considerando que, historicamente, nos conflitos por diferentes linguagens de valoração da natureza, os interesses dos poderes econômicos prevalecem sobre a dignidade das comunidades tradicionais que representam a nossa cultura.

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

  • Carlos Isaza Valencia

    Pesquisador colombiano, formado em e estudante de doutorado em Desenvolvimento e Meio Ambiente da Universidade Federal da Paraíba.

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