Escrevo este texto enquanto um grande incêndio devasta a região de Los Angeles, na Califórnia, destruindo mais de 2 mil construções, forçando a evacuação de 130 mil pessoas e deixando um número de mortos ainda indefinido.
Este é mais um incêndio em um estado onde este tipo de desastre se tornou rotina, na maioria causados por alguém iniciando o fogo de forma deliberada, por fiações elétricas sem isolamento e (a minoria) raios.
Os incêndios são turbinados por um clima com secas, vendavais e tempestades elétricas mais frequentes e florestas onde mais árvores estão morrendo por infestações de pragas e stress hídrico. O que, como todos sabem, é herança das gerações passadas e atuais que libertaram o CO2 – antes enterrado como carvão e petróleo ou aprisionado em florestas e turfeiras – para alimentar o progresso humano dos últimos 200 anos.
Todo fenômeno, incluindo os incêndios californianos, tem uma história que vai além das explicações imediatas e fáceis dos posts de redes sociais.
Los Angeles abriga um dos mais famosos sítios paleontológicos do mundo, os poços de piche do Rancho La Brea. Estas armadilhas naturais são um arquivo da fauna e flora atolada e sepultada ao longo de milênios e com informações como perfis de sedimento do lago Elsinore (a 100 km de distância) que indicam o clima e preservam pólen e carvão, permitem reconstruir a história do inflamável ecossistema ao redor de Los Angeles.
Trabalho publicado em 2023 mostra que 15.600 anos atrás, com um clima ameno e mais úmido, a região era coberta por zimbros e carvalhos em um mosaico de bosques e áreas abertas habitado por cavalos, bisões, mamutes, camelos, preguiças-gigantes, tigres-dentes-de-sabre e outras espécies da megafauna que dominava as Américas até não muito atrás.
Incêndios, registrados como partículas de carvão nos sedimentos do lago, eram raros e limitados por serem causados por raios no início das chuvas. Provavelmente eram mais restritos a colinas e cristas onde, junto com as condições locais do solo, levaram à evolução de uma grande diversidade de plantas adaptadas, ou mesmo dependentes, de incêndios regulares.
No final do período glacial, entre 14.000 e 13.000 anos, houve um aumento de temperatura (5,6°C entre 14 e 13 mil anos atrás), o clima ficou mais seco e carvalhos mais tolerantes ao calor e à seca se tornaram mais comuns que os zimbros. Há uma mudança na composição dos bosques e uma queda nas populações de parte da megafauna, mensurada pelos indivíduos mortos nos poços de piche.
Abruptamente, ao redor de 13.200 anos atrás, a incidência de incêndios (medida pela quantidade de carvão nos sedimentos do lago) aumentou 30 vezes. Zimbros e carvalhos que podem lidar com secas mas, não com o fogo intenso, foram pelo inflamável chaparral arbustivo que vemos hoje, com espécies tolerantes ou mesmo beneficiadas pela ocorrência regular de fogo.
Os três séculos de incêndios e de mudança abrupta da vegetação coincidem com a extinção da megafauna, outra variável que interage com a intensidade dos incêndios. Sem bisões, cavalos, mamutes, camelos, preguiças-gigantes e cia transformando plantas em carne e estrume (que acaba como carbono no solo) sobra mais biomassa seca para queimar nas estiagens. Esta é uma das razões para projetos de refaunação em ecossistemas vulneráveis.
Em um período muito curto há uma rápida mudança de estado para o ecossistema com menos biomassa (por isso menos carvão aparece nos sedimentos), muito biodiverso e inflamável que vemos hoje.
O que causou os 300 anos de incêndios que turbinaram essa mudança?
A resposta é simples: pessoas – cuja presença começa a se tornar mais visível no registro arqueológico e usaram o fogo para “manejar” e moldar seu ecossistema.
Como mostram povos caçadores-coletores pelo mundo, os angeleños pré-históricos deveriam utilizar o fogo para “limpar” o terreno e facilitar suas andanças, como instrumento para caçar (alguém quer bisão pré-grelhado?), arma de defesa e ataque contra predadores e inimigos, e para favorecer plantas e animais úteis para eles.
Até hoje se vê, nas partes do Brasil onde o Cerrado resiste, fogo ateado para gerar “pasto novo” e atrair veados e outros animais para facilitar caçadas. Os irmãos Villas Boas, no ótimo A Marcha para o Oeste, entre muitos exploradores, mencionam as grandes extensões afetadas pela tradição.
O sul da Califórnia é apenas um exemplo de mudança de ecossistemas em grande escala resultante da chegada de humanos e seu uso do fogo.
A Austrália é outro personagem regular no noticiário de incêndios catastróficos, com eventos extremos como o “Verão Negro” de 2019-2020.
Colonizada por humanos que navegaram até lá ao redor de 65 mil anos atrás, o continente viu um longo processo de ocupação que durou dezenas de milhares de anos.
Como descrito por Tim Flannery no excelente The Future Eaters e validado por pesquisas posteriores, a colonização do continente criou regimes de incêndios mais frequentes, transformação da vegetação em favor de espécies resistentes ou beneficiadas pelo fogo (pirófilas) e extinção da megafauna local (veja aqui, aqui, aqui e aqui). Extinção que, vale dizer, seguiu a colonização humana independente de alterações climáticas e tem profundas consequências ecológicas.
Trabalho mais recente mostra como a colonização da ainda úmida Tasmânia, o extremo sul desta migração épica, segue o padrão. Há um aumento súbito na frequência/intensidade de incêndios ao redor de 41.600 anos atrás, com uma drástica transformação, a partir de 40 mil anos, de florestas úmidas e fechadas em ambientes mais abertos dominados por plantas pirófitas como banksias, casuarinas e eucaliptos que ativamente criam condições para que o fogo ocorra.
A Austrália mostra como populações pré-históricas com tecnologia que Baby Boomers, Millenials e Geração Z modernos subestimariam puderam modificar a ecologia de um continente inteiro. Hoje, a dominância de espécies amigas do fogo faz com que as práticas ancestrais de queima controlada (fire-stick farming) sejam uma necessidade para remover o excesso de biomassa inflamável, manter várias espécies e evitar incêndios destrutivos. Não há volta à condição original.
Mais perto de nós, a Gran Sabana da Venezuela é uma anomalia, uma área de campos em uma região onde o clima deveria sustentar florestas. A explicação é a que você pode imaginar e os troncos calcinados de árvores de grande porte que pontuam o sopé dos tepui são testemunhas de florestas que ocupavam áreas muito maiores não muito tempo atrás.
O entusiasmado uso do fogo que converte florestas em capinzais é parte da cultura local e o amor pelas chamas e horizontes abertos tanto impede que florestas cresçam sobre áreas dominadas por capim como muda as condições do solo, tornando a regeneração cada vez mais difícil. Como me contaram quando visitei a região, os locais acham o capim seco triste e incendiá-lo e provocar a rebrota “alegra a natureza”, além do fim prático de atear fogo nos capões de mata para espantar animais e caçá-los.
Tudo indica que o processo data de muito tempo, já que carvões e savanas surgem ao mesmo tempo no registro paleoecológico (veja aqui e aqui). A Gran Sabana parece mais um exemplo de alterações de ecossistemas por povos “tradicionais”. E como “usos tradicionais” em unidades de conservação (no caso o Parque Nacional Canaima) podem ser negativos para a biodiversidade.
Outros exemplos poderiam ser dados e deixo aqui a provocação se o biodiverso Cerrado não teria uma história interessante a ser contada envolvendo ocupação humana, fogo, megafauna e mudanças da vegetação, especialmente agora que sabemos que sua ocupação data de muito tempo.
A compreensão que populações ancestrais muito distantes do capitalismo moderno causaram mudanças ambientais em larga escala que reverberam no noticiário moderno remete ao discurso moderno de falar em ecossistemas antropogênicos, especialmente os associados a culturas nativas, sempre em um contexto positivo.
Por exemplo, é comum ouvir que a Floresta Amazônica é uma criação dos povos nativos, como se fosse o resultado de um plano deliberado.
A Floresta Amazônica ser dominada por poucas espécies de árvores, a distribuição destas e s divergências com florestas onde a megafauna ainda vive (veja aqui e aqui), como o número muito maior de árvores gigantes e de madeira dura nas florestas da Bacia do Congo, podem mesmo ser resultado das atividades passadas de povos nativos.
Afinal, a Amazônia tem um longo histórico de ocupação, teve grandes populações que já cultivavam a terra pelo menos 9 mil anos atrás (como contado por Bernardo Esteves no ótimo Admirável Mundo Novo) e foi palco de um complexo processo de regeneração das florestas após as migrações e conflitos associados ao colapso dos impérios Wari e Tiahuanaco e a “grande mortalidade” pós chegada dos europeus.
Fica a critério do freguês argumentar quanto dessa história inclui ações premeditadas visando criar uma floresta planejada – como algumas narrativas sugerem – e quais os indicadores escolhidos para rotular se o resultado é positivo ou negativo.
O mesmo vale para os ecossistemas inflamáveis de hoje.
O noticiário onde acompanho o que acontece na Califórnia também informa que em 2024 a temperatura média da Terra foi 1,6°C acima da média entre 1850 e 1900 e que as companhias de seguros estão fugindo do mercado californiano.
Muito tempo atrás alguém acendeu uma fogueira e a cadeia de eventos iniciada nesse momento continua a ter consequências. Assistir uma área recorde das florestas amazônicas ser queimada e degradada em 2024 faz lembrar como a História tende a se repetir quando não aprendemos com ela.
Feliz 2025!
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