Reportagens

Colhendo resistência

Desmatamento da Aracruz em área de preservação permanente em Linhares (ES) é interrompido graças à ação de agricultores. Empresa não admite crime ambiental.

Fernanda Couzemenco ·
30 de junho de 2006 · 18 anos atrás

Quando a reportagem de O Eco chegou à região do Farias, em Linhares, norte do Espírito Santo, já haviam se passado nove dias desde o desmatamento promovido pela Aracruz Celulose numa Área de Preservação Permanente (APP), às margens do Córrego Jacutinga. Mesmo depois de tanto tempo, os moradores ainda descobriam, em meio à devastação, novas espécies de árvores nativas derrubadas naquele fim de tarde do dia 16 de junho, uma sexta-feira espremida entre o feriado de Corpus Christi e o jogo Brasil x Austrália.

Diante de dezenas de troncos de garibu, jibatão, jequitibá, braúna, sapucaia e outras espécies ameaçadas de extinção, a maioria com mais de 20 anos de idade e seis metros de altura, foi impossível concordar com a versão divulgada na nota oficial da assessoria de imprensa. A sensação é de que, em vez de “uma operação de corte de eucaliptos” durante a qual “algumas árvores do sub-bosque foram danificadas”, o que houve foi a intenção deliberada de descobrir totalmente o terreno, o que iria intensificar o assoreamento do já tão combalido córrego.

O pequeno corpo d’água é o limite natural entre duas formas opostas de ocupação do solo no município. A oeste, a colonização data do início do século, quando os imigrantes italianos começaram a chegar ao estado. São pequenas propriedades rurais onde, atualmente, se produz principalmente coco e café. Em algumas, a agricultura de subsistência está voltando, graças ao “trabalho-formiguinha” de conscientização feito pelo Movimento de Pequenos Agricultores (MPA). Aos poucos, os camponeses estão entendendo que não vale a pena plantar uma ou duas culturas apenas e ter de comprar comida enlatada no supermercado.

No lado leste fica um dos inúmeros eucaliptais (foto abaixo) da Aracruz Celulose que, no total, ocupam mais de 4% do território capixaba. A paisagem monótona é a mesma desde meados do século, quando a empresa passou a derrubar a Mata Atlântica aos correntões para enfileirar seus eucaliptos. O detalhe é que, se essa silvicultura exótica continuar crescendo, não vai demorar para que ela ultrapasse a área ocupada pelos remanescentes florestais, que hoje não alcançam míseros 8% do território.

Chegando ao local, foi fácil visualizar também o que os agricultores já haviam relatado por telefone à reportagem: as sete máquinas cortadeiras se posicionaram ao longo da estrada e desceram até a beirada do córrego, destruindo tudo pelo caminho. Isso, definitivamente, não é fazer “corte seletivo de eucalipto”, como consta na autorização do Ibama emitida em 2001, documento que a empresa tinha como seu principal trunfo na defesa da legalidade da operação.

O próprio documento, aliás, é irregular. Segundo o gerente-executivo do órgão no Espírito Santo, Ricardo Vereza, o desmatamento não podia acontecer a poucos metros do leito do córrego, em Área de Preservação Permanente (APP), como foi verificado.

O efeito da passagem das máquinas da Aracruz pela região, portanto, não foi nem de longe “totalmente legal”, tampouco será possível apenas “interromper provisoriamente os trabalhos”, como diz a nota oficial distribuída à imprensa. Na verdade, a ação foi embargada, a madeira apreendida e o processo, agora, tramita no departamento Jurídico do Ibama, que tem até o dia 12 de julho para definir se vai ou não cobrar a multa à empresa. O procurador federal Dianny Siveira, do Ibama, informou que um engenheiro florestal enviado ao local fará um laudo técnico. Se ele confirmar o que já foi relatado pela equipe de fiscalização, ou seja, que não foi feito corte seletivo e que a área é APP, a multa será definida em poucos dias.

O único momento da nota oficial em que a realidade não é de todo deturpada é na menção às ameaças sofridas pelos operadores das máquinas, que pararam a ação porque “as tentativas de diálogo com os invasores foram infrutíferas”.

Confronto

Ao conhecer os autores das ameaças e ouvir seus relatos, no entanto, nos permitimos rir juntos do aspecto tragicômico das cenas do confronto: de um lado, sete máquinas de corte, uma ambulância, e 14 homens armados, entre policiais militares e funcionários da Visel (empresa que presta serviços de segurança patrimonial à Aracruz). Do outro lado, sete pessoas, entre elas, duas crianças e duas senhoras, sendo uma deficiente e outra grávida de nove meses, todos pequenos agricultores e vizinhos de córrego do eucaliptal. 

Quem convocou a turma foi Domingas Soprani, 52 anos, graças ao alerta do vizinho, que chegou à sua casa contando ter acabado de tirar as caixas de mel da beira do córrego porque “estão desmatando tudo lá”. Dona Domingas duvidou, pois ninguém mexia naquela matinha há décadas, mas, quando foi ao quintal e viu a queda das árvores no outro lado do córrego, ligou para a filha pedindo ajuda. A família toda partiu para o local.

Além da coragem, as armas que dispunham eram um celular e o facãozinho do pequeno Lucas, de seis anos. Elias Alves, um dos homens no grupo, lembra que o supervisor da equipe chegou a zombar deles: “Eu só paro com embargo do Ibama. Mas hoje é sexta-feira, feriadão, e ele não vem. O que vocês vão fazer?”. Foi quando Cristina Soprani usou a barriga de nove meses como escudo e se sentou na frente das máquinas.

Diante da convicção dos agricultores, já caída a noite, os trabalhos foram suspensos. A Polícia Militar registrou ocorrência e, somente no dia seguinte, a Polícia Ambiental foi ao local. O Ibama só chegaria na segunda-feira, constatando o desmatamento de 3,5 hectares (a empresa reconhece, em seu website, o desmate de apenas 1 hectare), embargando a operação.

Mata em regeneração

Elias resume o sentimento que os manteve firmes, mesmo estando em tamanha desvantagem: “Foi uma ofensa muito maior que um tapa na cara”, desabafa, referindo-se ao desprezo da Aracruz com aquela pequena mata em estado avançado de regeneração, que os agricultores acompanham e protegem há mais de 30 anos, desde que o eucaliptal plantado pela antiga dona do terreno, a Companhia Vale do Rio Doce, foi abandonado, permitindo assim o restabelecimento da vegetação nativa.

Domingos Soprani (foto), 64 anos, conta que antes da derrubada da floresta para plantio de eucalipto pela Vale, era costume tomar banho no Jacutinga. “A água batia aqui”, mostra dona Domingas, passando a mão pela altura do peito. Depois do desmatamento, o córrego chegou a secar nos períodos de estiagem.

Nos últimos doze anos, com a mata já alta, isso nunca mais aconteceu. A constatação da relação água-floresta foi suficiente para convencer a comunidade sobre a necessidade de proteger a regeneração da vegetação na propriedade da Aracruz e pensar em reflorestamento do lado do rio pertencente aos camponeses.

O programa “Reflorestando com Árvores e Consciência”, do MPA, era o que faltava para colocar a intenção em prática. As primeiras mudas já foram plantadas, em áreas antes destinadas à agricultura. Cristina Soprani conta que muitos agricultores já aderiram e o programa está crescendo em todo o Farias.

Mesmo tendo tido a oportunidade de estudar e estando prestes a obter o diploma de pedagoga, Cristina não pensa em abandonar a terra em que nasceu e foi criada. Vai continuar lutando para que os pequenos agricultores possam ter a liberdade de selecionar suas próprias sementes, preparar seu próprio adubo, não ter de recorrer a pacotes de venenos para conseguir empréstimos no banco e manter vivos os conhecimentos tradicionais sobre plantio e colheita.

Nem o aparente isolamento provocado pela vizinhança como eucaliptais e canaviais desanimam. Vender as terras, onde chegaram antes das empresas, nem pensar. Ninguém por ali se ilude mais com promessas nas quais muitos antepassados caíram, indo parar nas periferias das cidades depois de trocar a propriedade por alguns cruzeiros e poucos meses de emprego em multinacionais. No fundo, é a esperança em novos tempos que mantém viva a resistência. Organizados nacionalmente em movimentos e redes, os pequenos agricultores têm cada vez mais força para fazer valer a lei e os seus direitos.

Em alguns momentos, também é possível ter esperanças quanto a uma nova postura por parte da multinacional. Como, há cerca de um ano, o presidente da Aracruz Celulose, Carlos Aguiar admitiu, em entrevista ao jornal A Tribuna, que uma das maiores falhas da empresa é a insistência em “não reconhecer os erros do passado”. Se com esta afirmação ele está se referindo aos passivos ambientais e sociais da empresa, ou seja, ao desmatamento de milhares de hectares de Mata Atlântica e conseqüente expulsão e isolamento de comunidades quilombolas, indígenas e camponesas, fica a esperança de que um dia a empresa possa realmente fazer “um bonito papel”, como tem apregoado na última campanha publicitária.

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