Reportagens

É fogo…

Na época das queimadas, pilotos brasileiros apagam incêndios em Portugal. Aqui falta estrutura, dinheiro e vontade política para o combate eficiente às chamas.

Andreia Fanzeres ·
4 de agosto de 2006 · 18 anos atrás

O Brasil está muito próximo de arder mais uma vez em seu período crítico de queimadas, entre agosto e setembro. Do ano passado para cá, fez pouco ou quase nada do que havia planejado para evitar que as chamas se alastrem. Diante disso, o país assiste a emigração anual de profissionais bem qualificados para ajudar no combate ao fogo. Como aqui não há demanda de trabalho para eles, pilotos de aviões e helicópteros passam de três a quatro meses por ano compondo a força-tarefa para prevenção e combate a incêndios florestais de Portugal.

Comparar o Brasil com o país europeu pode soar injusto. A área de Portugal é equivalente a dois estados do Rio de Janeiro. E há menos gente e mais dinheiro por lá. No entanto, há décadas o governo português trata o problema das queimadas como prioridade nacional, e vê sua população mobilizada para impedir que o fogo ameace cidades, florestas e áreas agrícolas.

Em Portugal, a dispersão das queimadas durante os meses mais quentes é facilitada pelos ventos do deserto do Saara, pela baixa umidade do ar e pelo modelo de fragmentação da zona rural. “O excessivo parcelamento fundiário, e as alterações climáticas associadas a comportamentos negligentes e criminosos determinam a violência e a extensão dos incêndios”, explica Andreia Gama, da organização ambientalista lusitana Quercus. Segundo ela, o país precisa investir com urgência no cultivo de espécies resistentes ao fogo, e não em monoculturas, sem esquecer no reforço da vigilância com implementação de uma rede de comunicação que detecte de forma mais exata o início dos incêndios. Nesse sentido, a cada ano, o país tem dado sinais de avanços.

Força-tarefa

Segundo o piloto Eustáquio Pereira, que trabalhou em Portugal por oito temporadas e inclusive participou da primeira turma de brasileiros contratados em 1992, há mais de 40 anos o país vem se estruturando para operar um sistema que previne, detecta e destaca aeronaves e brigadistas para apagar os focos de calor. Hoje a coordenação das atividades é feita pelo Serviço Nacional de Bombeiros e Proteção Civil, responsável por emitir alertas à população quando são identificadas condições propícias ao surgimento do fogo.

Sob seu comando, foram espalhados por todo território português bases operativas chamadas Centros de Meios Aéreos (CMAs), cada qual com uma aeronave de prontidão. Para servir a essas bases, o governo abre licitação para a contratação de empresas aéreas especializadas. De acordo com o piloto Marco Antônio Suzarte, que trabalhou em Portugal entre 2000 e 2004, cerca de 40 aeronaves cobrem todo o país, sendo 30 helicópteros, aproximadamente. “Os aviões com maior capacidade de carga ficam estrategicamente posicionados na parte central do país, na Serra da Estrela. Os menores sempre voam em duplas”, explica.

Além do apoio aéreo, nos meses de seca observadores ficam espalhados nas áreas consideradas de maior risco de incêndios com localizadores e comunicadores. Ao primeiro sinal de fumaça, avisam ao CMA, que imediatamente desloca um helicóptero com um chefe de brigada e quatro bombeiros a bordo. A aeronave é equipada com tanques ou bambi buckets (um tipo de bolsa externa que pode carregar água ou substâncias químicas retardantes). Os brigadistas, por sua vez, aparelham-se com abafadores. “Quando o incêndio é grande, além do apoio de aeronaves maiores, são chamados voluntários e mais bombeiros, com carros e equipamentos próprios existentes em todas as cidades portuguesas”, conta Suzarte.

Todo ano, entre oito e dez pilotos brasileiros são chamados para atuar em Portugal e embolsam cerca de 10 mil euros por mês pelo serviço. Segundo Suzarte, as empresas de lá exigem no mínimo 800 horas de vôo e mais 400 horas em atividades aéreas de combate a incêndios. A entrada de brasileiros em peso neste mercado aconteceu em 1992, quando o governo lusitano passou a exigir que os profissionais falassem fluentemente a língua portuguesa. A preferência por pilotos disciplinados, experientes e treinados atraiu, especialmente no início, militares para as vagas. No entanto, hoje profissionais que sempre atuaram no mercado civil também compõem a força-tarefa em Portugal.

Prioridade de mentira

No Brasil não falta demanda nem empresas interessadas em oferecer cursos e serviços para este tipo de profissional. Segundo Pereira, o que não existe é vontade política para abrir esse filão no mercado nacional.

Essa passividade do governo brasileiro diante da urgência de mais investimentos nas estratégias de combate ao fogo decepciona Heloíso Figueiredo, chefe do Centro Nacional de Prevenção e Combate a Incêndios Florestais do Ibama (Prevfogo). Com menos de 10% dos recursos que seriam necessários, ele se vê de mãos atadas. “Trabalhamos com um orçamento de 1,2 milhão de reais, quando precisaríamos de 15 milhões de reais para dar conta de todo o país”, contabiliza.

É bom lembrar que no país existe apenas um avião – o do corpo de bombeiros do Rio de Janeiro – próprio para combate a incêndios. Outras operações aéreas contra as chamas são desempenhadas há anos pelos governos de Minas e São Paulo com helicópteros. Ainda assim, são iniciativas insuficientes diante da extensão do país.

Para combater o fogo, além de brigadistas e analistas ambientais capacitados para as ações em campo, o Ibama conta com o apoio de apenas quatro helicópteros alugados de empresas particulares: três que atendem à região amazônica e um a operações no Cerrado. De acordo com Figueiredo, o ideal seria ter uma a duas aeronaves à disposição em cada estado. “Esse é um problema crítico. Semana passada, por exemplo, havia uma demanda para Minas Gerais, mas a aeronave estava no Rio Grande do Sul. Foi um dia de deslocamento. E essa demora é suficiente para o fogo atingir proporções maiores, impedindo que os poucos recursos que dispusemos sirvam”, conta.

Segundo o chefe do Prevfogo, os helicópteros voam o ano todo e, quando não estão em atividades de combate às chamas, são solicitados para operações de fiscalização. Não são serviços baratos. Entre julho e setembro, as aeronaves chegam a atuar entre 60 e 80 horas por mês, sendo que a hora de vôo custa, em média, quatro mil reais ao minguado orçamento do Ibama.“Fica difícil com o dinheiro sendo liberado na metade do ano, e mesmo assim, contingenciado”, reclama Figueiredo. “Quando acontece um acidente no Acre ou em Roraima surgem milhões de reais não sei de onde, para dizer que estamos fazendo alguma coisa. Mas aí já é tarde”, diz .

Dinheiro que não veio

Figueiredo aguarda desde o início do ano a promessa do governo para estruturar melhor o Prevfogo. Em outubro do ano passado, ele informou a O Eco que o Ministério do Meio Ambiente negociava para 2006 um acordo com o Ministério da Agricultura para que os milhares de aviões agrícolas usados para dispersão de agrotóxicos no interior do país fossem usados na temporada de queimadas para apagar fogo, quando geralmente ficam ociosos. Decepção. “Infelizmente nada aconteceu. Não entrou recurso nenhum nesse sentido”, lamenta. Seria uma ajuda e tanto, como mostra a experiência mineira. O chefe do Prevfogo diz que em Minas Gerais o governo contratou uma empresa que tem aviões agrícolas e montou uma estrutura com três aeronaves para operar em todo estado.

A realidade nacional é muito diferente. Figueiredo admite que os trabalhos de prevenção, embora sejam os mais importantes, estão sendo feitos de maneira muito incipiente. “Até agora não adquirimos um equipamento sequer. Temos que investir em prevenção, oferecer tecnologias, orientação no campo. Essa é uma demanda permanente durante o ano, com necessidade de investimentos em educação fundamental, produção de materiais para campanhas. Estamos praticamente zerados”, revela.

Na tentativa de economizar, o engenheiro aeronáutico e coronel aviador da reserva, Wilson Cavalcanti, sugere que as Forças Armadas formem equipes permanentes para prestar esse tipo de serviço à nação. Segundo Figueiredo, hoje o Ibama recebe apoio do Exército para transportar brigadistas e equipamentos, não para a ação de apagar incêndios.

No caso de optar por um modelo parecido com o português, baseado em “forças-tarefas”, Cavalcanti acredita que o Brasil ia esbarrar, a princípio, na falta de aviões. “Mas se houver uma licitação bem antecipada, os empresários vão se mover e se equipar ainda em tempo de prestar esse serviço na próxima temporada de queimada”, opina. Mesmo assim, de pouco vai adiantar se o país não estiver estruturado para isso. “A operação deverá incluir uma rede de detecção e alarme, treinamento de pessoal, instalações adequadas, e logística, sobretudo dos insumos químicos necessários à contenção e extinção dos incêndios”, recomenda.

Trata-se, de fato, de uma estrutura necessária, mas cara. A atividade de apagar incêndios por via aérea é arriscada. Os pilotos devem ser bem remunerados, as aeronaves requerem manutenção com custo elevado, fora a organização em terra. Mas os investimentos compensam o que anualmente o Brasil perde em termos de recursos naturais em incêndios florestais. “A operação é barata perto dos prejuízos ambientais. Há quem nos ensine, quem trabalhe com isso há mais tempo. Mas o Brasil ainda não acordou”, desabafa o piloto Pereira.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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