Foram não mais de dez minutos pulando distraidamente de um canal de televisão a outro, na tarde do último domingo, nessas horas em que todos os canais apresentam shows semelhantes. Nesse lapso tomei nota de três reportagens que chamaram minha atenção pelo enfoque, pelo que representavam em termos de consciência pública e, também, pelos seus paralelos e relações com alguns dos mais sérios problemas ambientais do país.
A favela da ferrovia
A reportagem mostrou uma ferrovia na área urbana do Rio de Janeiro ao longo da qual cresceu uma favela. As vivendas estão tão perto da via férrea que praticamente tocam as máquinas e parece que, se alguma porta ou janela ficar aberta, será arrancada pelos vagões. Os trens de carga que se dirigem ao porto são enormes, mas passam devagar, apitando forte, demonstrando o cuidado de seus condutores. Ainda assim, a reportagem mostrou vários casos de amputações e de mortes, provocados entre os meninos que brincam “na rua”, ou seja, na ferrovia, e entre outros vizinhos que se descuidaram. Como se podia esperar, os vizinhos mostraram sua revolta pela situação e exigem veementemente que sejam tomadas medidas para corrigi-la.
O apresentador mencionou, como se fosse um aspecto sem importância, que a ferrovia é antiga e que foi implantada quando não havia habitantes na área. Ou seja, ele omitiu que os queixosos vizinhos são, todos, ocupantes ilegais da área. As cenas mostravam claramente os gatos comuns a todas as favelas nos postes de energia e o desperdício de água que, com certeza, tampouco pagam. Em síntese, nada diferente do que acontece em qualquer favela.
É evidente que nenhum habitante da favela ferroviária mora nela porque desfruta dos trens e dos apitos da locomotiva. Estão lá porque não tiveram escolha ou porque foi a solução mais fácil. Também estão lá pela inércia do governo e da empresa ferroviária que, no tempo da invasão, obviamente, era pública. O problema criado deve ser resolvido e, claro, isso será feito trasladando os invasores a custo do governo. Mas, o que preocupa nesta sempiterna situação de ausência de autoridade é que os infratores da lei são, finalmente, mais escutados e mais beneficiados que os que a respeitam. Pior ainda, parece que a sociedade aceita essa situação de bom grado e que a apóia, como foi mesmo o tom geral da reportagem comentada.
A lei não é para todos
Quem visitou favelas no Rio de Janeiro sabe que a diferença entre elas e o bairro é apenas o outro lado da mesma rua. Sabe também que os habitantes dos bairros vizinhos às favelas têm a mesma origem humilde que os habitantes desta e que são tão ou mais pobres. Mas, embora os primeiros invadam e usurpem a terra, roubem água e energia que outros terão que pagar e provoquem mortíferos desastres naturais, desfrutam de uma série de programas e benefícios sociais e, acima de tudo, ainda reclamam. Os outros, em troca, devem comprar suas propriedades, pagar imposto predial, pagar os serviços públicos e não recebem nenhum apoio especial do governo.
Nisso existe algo de profundamente errado que, ao invés de apontar a uma solução da ilegalidade, a fomenta de forma escandalosa. Ela se repete em qualquer terreno público ou privado desprotegido, sob pontes de estradas e avenidas, nos parques urbanos, nos edifícios em construção e também nas áreas de preservação permanente e nas unidades de conservação. Está baseada no fato de que invadir nunca traz prejuízo (o pior que pode acontecer é ter que voltar onde estava antes) e que, quase invariavelmente, no médio ou longo prazo, traz grandes benefícios.
A indústria da invasão é altamente lucrativa e quase sem controle. Por isso, obviamente, não é unicamente praticada pelos pobres. Os ricos são mestres da invasão através da grilagem de terras públicas e de outras táticas. As invasões dos ricos abarcam extensões e valores econômicos muito mais importantes que as dos pobres. Mas, deve se reconhecer que as dos pobres são muito mais prejudiciais, pelo menos nas áreas urbanas, onde multiplicam os fenômenos erosivos violentos e onde se destroem as fontes de água da cidade. Os custos dessas invasões são enormes em termos de saúde pública e de acidentes, como os decorrentes de incêndios, deslizamentos de terra e inundações, com muitos mortos e feridos a cada ano, sem mencionar os problemas que criam para a segurança pública. Construir infra-estrutura e prover serviços públicos nesses locais é muito mais caro que em locais adequados. Qualquer análise econômica demonstra que, em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, seria mais rentável resolver o problema das favelas outorgando condições habitacionais regulares em locais apropriados em vez de arcar com os gastos “excepcionais” mencionados.
Mas, qualquer solução ao problema das invasões existentes, como no caso da favela ferroviária, passa tanto pela indenização e translado dos habitantes, em condições dialogadas, justas e humanas como pela aplicação severa da lei, evitando novas invasões e re-invasões dos mesmos locais. Isso, curiosamente, nunca é feito. Por exemplo, existem unidades de conservação em que os mesmos invasores já foram indenizados até duas vezes e em cada oportunidade voltaram. O problema de re-invasão é ainda mais comum nas áreas urbanas.
Sabe-se que muitos estarão pensando que as invasões, em países como os da América Latina, é um problema estrutural e que para resolvê-lo deve-se, primeiramente, alcançar um nível mínimo de equidade social, promovendo oportunidades iguais a todos em todas as regiões. Que é necessário criar mais empregos, estimular o crescimento econômico, etc., etc. Tudo isso é verdade indiscutível e deve ser feito, embora requeira muito tempo para ser uma realidade que elimine a pobreza. Mas subsiste o fato de que a lei é, em princípio, igual para todos e que, simplesmente, a pobreza dos que invadem terra pública e roubam serviços públicos não é maior nem pior que a pobreza de muitos outros que respeitam a lei. Não existe constituição que diga que alguns dos pobres têm mais direito que outros pobres para se comportar ilegalmente. Na verdade o princípio da lei é que é igual para todos, inclusive para os ricos.
Os estados e, em especial, os governantes, são os grandes responsáveis, pois sistematicamente se afastam do problema, não aplicando a lei. Sob pressão pública até podem tomar alguma medida, mas, em geral, aplicam a política de não ver e não fazer. Controlar invasões pode ser politicamente arriscado e, como muitas vezes fizeram, tentando resolver o problema com paliativos como o projeto “favela-bairro” do Rio de Janeiro ou com soluções parciais, como com a construção de casas populares, mas sem controlar novas invasões. Pior, muitos políticos, inclusive governantes, como é bem conhecido, fomentam abertamente as invasões populares.
Em conclusão, o programa sobre a favela ferroviária deixou a sensação de que para muitos, as favelas e seus habitantes merecem ser mais bem tratados que outros pobres que não violam a legislação, que eles são vítimas especiais do sistema e que por isso adquiriram o direito de “exigir” soluções (obviamente sem custo para eles) ao problema que eles provocaram. A exibição de meninos e meninas brincando na ferrovia onde uma vociferante locomotiva se aproximava, de mães chorosas preocupadas pelo risco, complementou a argumentação.
O pai de 28 filhos
Nos mesmos dez minutos apareceu outra reportagem, desta vez sobre a proeza de um pescador nordestino de ter gerado e alimentado 28 filhos. O entrevistador considerou isso um fato extraordinário e elogiável e, sem perguntar com quantas mães tinha sido realizado, passou a perguntar pela receita de tanta potência sexual. O pescador explicou que sua vitalidade é de origem totalmente natural, incluindo essencialmente mariscos e peixes extraídos do manguezal e do mar. O entrevistador acompanhou a seu herói a uma pescaria ecológica e, após dar novamente os parabéns ao reprodutor, despediu-se.
A reportagem foi boba e sem transcendência, mas deixou um sabor amargo. Nestes dias em que a humanidade está preocupada pelo fato de haver superado os 6,5 bilhões de pessoas, gerar 28 filhos é, pura e simplesmente, um crime tanto social como ambiental. E não mencionar isso é um grave erro editorial por parte do canal de televisão. Nada foi dito da alimentação, da saúde e da educação dos filhos do pescador. Nada foi mencionado com relação ao impacto que essa população, apenas uma família da aldeia, provoca nos recursos naturais limitados da região. Não foi feita nenhuma pergunta sobre a disponibilidade de contraceptivos. O fato foi apresentado como desejável, para ser imitado. Para isso, as receitas culinárias do homem, que garantiram seu vigor e fertilidade, foram propagadas em nível nacional.
O médico dos índios
Em outro canal foi apresentada uma terceira reportagem, desta vez sobre o trabalho de um médico que cuida sozinho de uma relativamente enorme e muito dispersa população de indígenas na Amazônia, perto da fronteira com a Colômbia. O doutor, um homem sem dúvida admirável pela sua dedicação, sensibilidade e esforços, foi discreto na sua denúncia das lamentáveis condições em que trabalha, mais ou menos abandonado por todas as autoridades públicas responsáveis.
Revelou que o problema principal daqueles indígenas é a desnutrição e, dentre inúmeras outras afecções, o tracoma que deixa muitos deles quase cegos. As cenas televisadas revelavam indígenas vivendo em condições miseráveis e muito diferentes à sua realidade até poucos anos atrás, quando viviam isolados. Uma vez mais se constata o fato de que a proximidade dos indígenas à sociedade nacional e a perda de seus hábitos tradicionais, inclusive sua nova dependência da medicina moderna, não lhes aporta nada de bom.
Não é que esses índios não disponham de terra suficiente para trabalhar e ter uma vida decente. Na verdade, têm muita terra com muitos recursos. O problema, melhor dito, a sua tragédia, é que estão numa situação de transição incipiente entre a vida tradicional e a vida no contexto nacional que os influencia cada vez mais. Viabilizar essa transição, que implica um pulo violento para superar um buraco de milhares de anos entre a cultura deles e a dominante nacional, exige brindar-lhes um enorme, constante e bem direcionado apoio que, ao integrá-los, não elimine seus rasgos culturais próprios. Mas isso tem um custo muito elevado que nenhum governo, até o presente momento, tem encarado. O apoio para a saúde, isoladamente, aumenta a densidade da população indígena (maior longevidade, maior natalidade e maior sobrevivência) embora, por falta de apoio em outros setores que acelerem positivamente a transição, também agrava a miséria, inclusive a desnutrição.
Os índios são cidadãos e, pela lei e pela lógica, têm direito muito justo a privilégios especiais, mas que não se concretizam. Os esforços, ainda que modestos para melhorar a saúde dos indígenas da região que se mostrou na reportagem, são muito louváveis. Mas é absolutamente indispensável que esses esforços sejam acompanhados de outras ações para sua inserção na sociedade nacional, em especial dando a eles a capacidade de usufruir de seus direitos, de se desenvolver de forma sustentável, social e economicamente, com a mesma autonomia que outros cidadãos já possuem.
Em conclusão
A televisão é um poderoso instrumento de formação de opinião que, diferente da internet ou dos livros, jornais e revistas, não pode ser plenamente escolhido pelo cidadão. Pular de um canal a outro, como fiz, não resolve. Com poucas e muito louváveis exceções, tudo o que se apresenta em certos horários é nivelado por baixo. Em dois dos três casos descritos as lições que poderiam se deduzir das reportagens foram ignoradas e, pelo contrário, geraram orientações contrárias ao que deveriam, se as emissoras se preocuparam pela informação e educação de sua audiência. No terceiro caso, o do médico dos índios, foi desperdiçada uma excelente oportunidade de gerar um pequeno, embora ilustrativo debate sobre o tema de fundo.
É claro que a função desses shows dominicais é divertir a audiência. Mas, “sem querer querendo”, eles sempre terminam informando. E informação é coisa muito séria.
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