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A arbitragem

O direito interno não admite a arbitragem no julgamento de danos ambientais, mas o país é signatário de acordos internacionais que prevêem esse recurso.

18 de março de 2005 · 20 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

A cultura jurídica brasileira tem entendido que o meio ambiente integra um dos chamados interesses difusos e que, em tal condição, está catalogado entre os direitos indisponíveis, visto que não pode ser objeto de negociação entre partes, sejam elas públicas ou privadas. Ora, dentro de tal concepção e em razão de sua natureza indisponível não se poderia, em tese, dele tratar sob o ponto de vista da arbitragem, visto que esta última está direcionada essencialmente para matérias de direito privado e, portanto, disponível.

A partir do raciocínio que acabo de expor, é indiscutível que um dos aspectos mais relevantes do moderno direito – a proteção ambiental – ficaria inteiramente alheio ao universo da arbitragem. Entretanto, a experiência prática demonstra que o mundo teórico e ideal da indisponibilidade dos interesses difusos não se materializa e, efetivamente, inúmeras questões nas quais a proteção do meio ambiente é o elemento central têm sido resolvidas entre partes privadas. A bem da verdade, sou da opinião de que a “indisponibilidade” traz em seu bojo a idéia de que qualquer negociação que envolva interesses difusos seria, em princípio, gravosa para o meio ambiente. Paralelamente a tal concepção acredita-se que a simples propositura de uma ação perante o Poder Judiciário é suficiente para que, mecanicamente, ela seja julgada procedente. Entretanto, não é assim que as coisas se passam e, não com pouca freqüência, a “indisponibilidade” serve como um obstáculo concreto para que soluções sejam encontradas e as ações judiciais ambientais se eternizarem sem que uma definição seja encontrada.

As cláusulas ambientais estão cada vez mais presentes nos diferentes contratos celebrados entre empresas. A compra e venda de ativos, a incorporação, a fusão e todo e qualquer tipo de operação financeira, contábil ou comercial entre empresas que, por um motivo ou por outro, sejam capazes de gerar impactos no meio ambiente, são operações que não se realizam sem a prévia existência das chamadas Due Dilligences ambientais; isto é, sem que um levantamento prévio dos passivos seja efetuado por uma empresa isenta e da confiança dos contratantes. Em função daquilo que constar do relatório, o impacto dos passivos ambientais, o valor da transação comercial poderá ser maior ou menor. A Due Dilligence serve, também, para demonstrar o nível de conhecimento que as partes têm sobre as condições ambientais dos ativos envolvidos na operação comercial. Entretanto, várias questões posteriores à Due Dilligence podem se apresentar, gerando divergências entre os contratantes. Um primeiro tipo de questão é o que se refere a passivos que não tenham sido identificados pela Due Dilligence. Já um segundo tipo de questão é aquele que tem origem na chamada incerteza regulatória, ou seja, no aparecimento súbito e inesperado de normas que venham a impor responsabilidades sobre passivos e que não tinham previsão durante o período de celebração do contrato entre as partes.

Muito embora o Brasil seja signatário de diferentes tratados e convenções internacionais que dispõem sobre a arbitragem em matéria ambiental, em termos de direito interno tem havido uma fortíssima resistência à adoção da arbitragem como forma célere e segura para a solução de disputas ambientais que, quando levadas ao Poder Judiciário, tendem a se eternizar em função de uma série de questões bastante complexas. Ocorre que, modernamente, a arbitragem tem passado por uma revalorização em conseqüência de uma série de novas situações, das quais algumas podem ser alinhadas: (i) excesso de demandas perante as cortes de justiça; (ii) especialização crescente dos temas e maior dificuldade para que os juízes tenham conhecimento sobre os aspectos peculiares do direito aplicável; (iii) grande internacionalização dos contratos, gerando dificuldades para a identificação do foro competente e da lei aplicável.

A Lei de Arbitragem (Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996) foi declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal em decisão proferida aos 12 de dezembro de 2001. Conforme se sabe, o seu artigo 1º dispõe que: “as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”. A interpretação de tal artigo tem levado muitos juristas a considerarem que a arbitragem não é aplicável a questões referentes ao meio ambiente.

No mundo real, a indisponibilidade de direitos difusos tem levado à criação do conceito de obrigatoriedade da ação civil pública (ACP), mediante o qual a ACP ambiental deve ser sempre proposta, a menos que um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) que antecipe os resultados de uma provável procedência seja firmado entre as partes. Como se sabe, nas ACPs ambientais, o ponto crucial é a concessão, ou não, de uma medida liminar ou de uma tutela antecipada, dependendo daí o êxito da demanda. O fato objetivo é que a “indisponibilidade” funda-se no ingênuo pressuposto de que tais direitos são mais bem protegidos se não forem “disponíveis”. Na prática, tal doutrina leva ao perecimento dos direitos difusos (indisponíveis), pois justiça ambiental que não se faça célere, injustiça é.

É importante observar que a existência de “direitos indisponíveis” em matéria ambiental é um elemento com validade apenas para a ordem jurídica interna, pois no plano internacional, o Brasil aceita tranqüilamente a existência de arbitragens – e outros meios pacíficos – para as diferentes questões ambientais.

Um novo horizonte, no entanto, se vislumbra. A Emenda Constitucional nº 45, de 2004, que deu nova redação ao artigo 5º da Lei Fundamental da República, acrescentou o § 3º que determina que os tratados e convenções “internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Tal parágrafo veio constitucionalizar a internacionalização dos direitos humanos, dentre os quais se inclui o de desfrutar de um meio ambiente saudável. Muito antes desta disposição constitucional, há que se anotar que o artigo 98 do Código Tributário Nacional já dispunha que: “Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha”. Não é ocioso relembrar que, assim como direito tributário, o direito ambiental se fundamenta em diversos compromissos internacionais firmados pelos países e que, portanto, a analogia é perfeitamente válida. Ademais, a legislação ambiental é específica e como tal deve ser interpretada em relação à LA, guardando-se as determinações do § 2º do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, cujo teor é o seguinte: “A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior”. Desta forma, não se pode pretender a aplicação do artigo 1º da Lei de Arbitragem (direitos patrimoniais indisponíveis), vez que os Tratados e Convenções Ambientais, expressamente, admitem a arbitragem. É curial que não se pode ter um direito simultaneamente disponível (ordem internacional) e indisponível (ordem interna). Vejamos, rapidamente, alguns tratados e convenções internacionais firmados pelo Brasil que admitem a arbitragem: (a) Convenção de Viena para a proteção da Camada de Ozônio, artigo XI, 3, a; (b) Convenção sobre Mudança de Clima, Artigo 14, 2, b; (c) Convenção sobre Diversidade Biológica, Artigo 27, a; (d) Convenção de Basiléia sobre o controle de movimentos transfronteiriços de resíduos perigosos e seu depósito, artigo 20, 3, b. Quanto aos demais artigos da LA, entendo-os perfeitamente aplicáveis às demandas ambientais.

As normas acima, integradas ao Direito Brasileiro, admitem a conciliação e a arbitragem em matéria ambiental. Mas esta não é apenas uma questão teórica. Na prática, os TACs ou Termos de Compromisso (TC) têm sido celebrados entre órgãos ambientais, empreendedores e o próprio Ministério Público, assim como em transações judiciais. Trata-se de um direito costumeiro cuja importância na proteção ambiental é cada vez maior. De fato, há uma tendência crescente nos órgãos ambientais e no próprio Ministério Público em evitarem soluções judiciais para os problemas ambientais, dando-se preferência aos entendimentos extra-judiciais.

Ocorre que os TACs, tal como vêm sendo elaborados, são produzidos por partes “desiguais”, pois os órgãos ambientais e o próprio Parquet entendem o TAC como uma antecipação daquilo que, em tese, poderiam auferir mediante uma sentença judicial. Pressionam as terceiras partes a aceitarem condições unilaterais, sob pena de “ajuizamento do feito”. Diga-se, a bem da verdade, que tal prática não é unânime, embora seja muito difundida. A adoção de mecanismos de arbitragem seria extremamente vantajosa, pois o árbitro poderia decidir o litígio em termos imparciais e eqüidistantes, assegurado o contraditório de argumentos, a ampla defesa, a produção de provas e chegando-se a uma solução aceita pelas partes.

O árbitro, ou os árbitros, podem ser escolhidos pelas partes, dentre pessoas que conheçam os aspectos técnicos, legais e sociais das questões a serem submetidas à arbitragem; o que substitui – com vantagem – o processo judicial, pois o magistrado deverá se socorrer de peritos para a causa e dificilmente terá condições de decidir “contra” a perícia. É importante ressaltar que o árbitro está submetido a comandos legais e é um “juiz de fato e de direito”, não se limitando a decidir por eqüidade. O mais importante, no entanto, é que as partes estipulam o prazo no qual o árbitro deve proferir a sentença arbitral. A sentença arbitral se faz dentro dos princípios do estado de direito e, portanto, não significa renúncia de nenhuma das partes aos seus “direitos”, mas a submissão da avaliação da sua extensão e existência a uma pessoa ou grupo de pessoas capacitadas a entendê-los. A diferença, em relação à apreciação judicial, é que eles são decididos por um particular, de livre escolha, que é investido de poderes legais específicos e que tem conhecimento do tema sob análise.

A proteção do meio ambiente, como regra geral, é considerada matéria de ordem pública e, portanto, não submetida à arbitrabilidade (1), isto é, à possibilidade de ser passível de submissão à arbitragem. Entretanto, a questão não é tão simples, como poderia parecer à primeira vista. Com efeito, um dano ambiental é necessariamente um fato da vida complexo e que se compõe de diversos “subdanos”. Explico-me melhor. O dano ambiental existe como uma categoria geral que busca englobar uma macro-situação negativa ao meio ambiente. Esta, entretanto, ao sofrer danos, não pode ser reparada globalmente, pois é composta de realidades submetidas às regras do direito privado e às regras do direito público. A característica ambiental do dano – isto é, diferenciadora com relação ao dano civil – reside na interpenetração dos aspectos públicos e privados de tal forma que identificar cada um de per si se torna extremamente difícil e muitas vezes impossível. A doutrina jurídica, especialmente aquela voltada para o Direito Ambiental, tem tido muita dificuldade em perceber que a solução do enigma está em retornar à clássica divisão do direito em público e privado e, a partir dela, desconstruir o dano ambiental em tantos danos singulares quantos se façam necessários. A recomposição do dano ambiental será, portanto, uma decorrência da recomposição dos diferentes danos que o componham.

Dano ambiental não se confunde com o mero dano ecológico, no sentido em que o dano ambiental não é, simplesmente, o resultado de uma agressão injusta ao bem ecológico (flora, fauna, recursos hídricos, recursos minerais), mas é a conseqüência de uma agressão aos bens ambientais que, como se sabe, são constituídos pelo conjunto de bens ecológicos acrescidos com o conjunto de bens pessoais, econômicos, materiais e morais que dependem de um determinado ecossistema para subsistirem. Resulta inquestionável, em meu ponto de vista, que o macrobem meio ambiente é constituído por microbens que tanto podem integrar o rol de direitos disponíveis ou indisponíveis. Pensemos nos danos (i) à propriedade privada decorrentes de poluição atmosférica (paredes e janelas enegrecidas de uma habitação), ou da (ii) falta de água pura (diminuição da produção de uma empresa). Tais hipóteses configuram, sem a menor sombra de dúvida, atentados a direitos patrimoniais disponíveis e, portanto, compreendidos no conceito de arbitrabilidade. Por outro lado, a mesma poluição atmosférica que gerou o enegrecimento de paredes pode ter (iii) gerado doenças pulmonares em menores de idade, repercutindo na esfera de direitos indisponíveis e, desta forma, não suscetíveis de apreciação por corte arbitral. É evidente que, nas situações acima aventadas, a arbitragem é aplicável nas situações (i) e (ii), não sendo válida para a situação (iii).

As hipóteses acima narradas se enquadram muito adequadamente no comentário de Lee (2): “Se partirmos do princípio de que todas as relações litigiosas de caráter pecuniário são disponíveis, as matérias extrapatrimoniais são, ao contrário, consideradas indisponíveis e, conseqüentemente, inarbitráveis. Ora, as questões de estado e de capacidade das pessoas, de direito de família e das sucessões não são de natureza a ser resolvida pela via arbitral. Entretanto, se o problema é a determinação do quantum, isto é, a fixação do valor de uma pensão alimentar, por exemplo, o litígio deveria ser arbitrável”. Veja-se que nas hipóteses que apresentamos em (i) e (ii) os danos patrimoniais são inteiramente disponíveis e, portanto, plenamente submetidos à arbitragem, ainda que, no caso concreto, sejam danos ambientais derivados ou de segunda linha.

1. Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996” Art.1º – As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”.

2. VER: LEE, João Bosco. O conceito de arbitrabilidade nos países do mercosul, in, SP:RT, Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, nº 8, pg. 354.

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