Reportagens

Bancando a boiada

Braço do Banco Mundial empresta 90 milhões de dólares a frigorífico que compra bois de fazendas griladas na Amazônia e não deixa claro como o empréstimo preservará a floresta.

Eric Macedo ·
9 de março de 2007 · 18 anos atrás

Muita gente sente calafrios só de pensar em mais bois pastando pela região amazônica. Ao que parece, não é o caso dos diretores do Banco Mundial. Ao menos não do International Finance Corporation (IFC), o braço de investimento privado do banco. O seu conselho em Washington aprovou nesta quinta-feira um empréstimo de 90 milhões de dólares para expansão das atividades do frigorífico Bertin, o segundo maior do Brasil. A empresa atua em três estados amazônicos – Pará, Mato Grosso e Rondônia – e compra gado de fazendas “que não possuem títulos de terras ou apresentam documentos fraudulentos”, como atesta o próprio site do IFC. O dinheiro será usado, entre outras coisas, para dobrar a produção do matadouro da empresa em Marabá, no Pará. A expansão demandará 300 mil cabeças de gado a mais nos arredores da floresta. Nesta sexta-feira, o Ministério Público Federal abriu procedimento administrativo para investigar os problemas ambientais do projeto.

A iniciativa gerou um documento de protesto assinado por importantes Ongs e institutos de pesquisa que atuam na região. Para os ambientalistas, não foram suficientemente estudados os impactos gerados pelo aumento da produção do matadouro na Amazônia. O único estudo feito pela empresa de consultoria Arcadis (contratada pela IFC) é referente à região de Marabá, mas o documento de protesto diz que não há informação alguma disponível sobre outras áreas também afetadas pelo projeto. “E mesmo nesse único lugar estudado [Marabá], se assume a ilegalidade”, diz Roberto Smeraldi, da Ong Amigos da Terra. “O acordo diz que só daqui a dois anos a regularização das terras será cobrada. Eles vão aumentar a produção ilegalmente, para depois, quando ela chegar ao top, torná-la legal”, afirma.

O IFC diz que não é bem assim. Reconhece que a questão fundiária na região é complicada. Mas diz que o projeto estabelece a regularização não daqui a dois anos, mas ao longo dos próximos dois anos. E ninguém que tenha sido condenado por grilagem poderá ser fornecedor do matadouro. O banco trabalha com a empresa para desenvolver um procedimento de compra informatizado que permita o rastreamento e controle da origem dos bois. Segundo a assessoria do IFC, a aposta é que com incentivos econômicos, os produtores se regularizem ao saber que a Bertin só comprará carne de quem estiver legalizado.

O processo, no entanto, não está nas mãos do IFC – não há como determinar prazos para a regularização. Ela depende da atuação do governo e seus órgãos agrários, como o Incra e o Iterpa (Instituto de Terras do Pará), além da justiça. É o que lembra Paulo Barreto, do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia). Para ele, com o Pará Rural, um programa com recursos do próprio Banco Mundial e do governo do estado que está prestes a ser implantado, talvez essa oportunidade apareça. O programa prevê a regularização de todas as fazendas do estado, aliada a incentivos aos produtores.

Garantias

Uma outra exigência do IFC é que todos os fornecedores da Bertin tenham as reservas legais de suas fazendas de pé até 2009. Para Smeraldi, é difícil acreditar que isso vai acontecer. A área de abrangência do projeto é de 125 mil quilômetros quadrados. Levando em conta a reserva legal, poderiam ser desmatados legalmente apenas 31 mil km2. No entanto, segundo os estudos feitos a mando do IFC pela empresa de consultoria Arcadis, já foram abaixo 84 mil quilômetros quadrados de floresta. Segundo os cálculos de Smeraldi, para que as reservas legais estejam em dia, a área de pasto terá que ser muito reduzida. “De 11 milhões de cabeças, seria preciso passar para 3,5 milhões. Mas eles prometem ainda um aumento de 300 mil”.

O coordenador do estudo da Arcadis, o economista Marcelo Hercowitz, admite, num cálculo feito rapidamente durante a entrevista por telefone, que não caberá tanto boi na área de abrangência do programa. “Se fossem levados em conta os 80% de reserva legal, já não caberiam hoje. Menos ainda depois do aumento [do rebanho]”, diz. Hercowitz explica que a lógica adotada pela empresa foi outra – hoje, a oferta de bois já é maior que a procura. Com isso, há espaço para um aumento de produção do frigorífico. Só.

“Na minha opinião, expandindo-se ou não o frigorifico, nada muda. Há muitos outros fatores que influenciam o aumento do rebanho na área”, afirma. O economista reconhece que seu relatório não levou em consideração o cenário final de 80% da reserva legal. “Há mesmo uma contradição aí. Se o Bertin realmente cobrar de seus produtores essa exigência do IFC, eventualmente ele sairá prejudicado, porque não haverá bois suficientes”, disse.

Para Paulo Adário, do Greenpeace, o importante é que nenhum hectare a mais de floresta seja derrubado. “A região vive sob intensa pressão, com uma presença precária do Estado. Tudo deveria ter sido feito com muita cautela, para não deixar nenhuma dúvida quanto aos riscos. Esse cuidado não se teve”, opina. O pasto é sabidamente um sinal de expansão da fronteira agrícola sobre a floresta. Paulo acredita que o peso de uma instituição como o Banco Mundial deveria ter se traduzido em ainda mais garantias de que o meio ambiente seria respeitado.

Apesar de assumir que há riscos no investimento, o IFC jura que não financiará o desmatamento de novas áreas. O aumento do rebanho, garante o banco, estará atrelado a um aumento significativo de produtividade. Os técnicos estimam que ela possa ir de 1,2 para 1,5 cabeças por hectare, com o uso de novos métodos de produção. Para o banco, esse é o primeiro esforço significativo de pôr a pecuária amazônica na legalidade. A intenção é que o compromisso do próprio setor privado seja uma forma de ajudar o estado a implantar políticas públicas.

Para Paulo Barreto, a questão é saber se a empresa vai tomar medidas suficientes para contornar os riscos. O pesquisador, entretanto, levanta um lado positivo do processo – pelo menos há exigências sendo feitas. “Tem muito banco nacional, como o Basa (Banco da Amazônia) que nem faz pergunta antes de dar o empréstimo. No caso do IFC, as demandas são bem melhores”, afirma. Mas é cauteloso quando perguntado se, no lugar do Banco Mundial, ele concederia o empréstimo. “Se eu fosse o investidor, esperaria um pouco mais, para que houvesse medidas do Estado no sentido de regularização. É preciso ter clareza de que esse investimento será feito”, diz.

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