Os modelos de pick-ups e utilitários de luxo oferecidos, hoje, pelas principais montadoras, como o Blazer, Cherokee, Pajero, Hilux e vários outros são cada vez mais comuns nas ruas e estradas brasileiras. Eles caíram no gosto do consumidor, que pode pagar seus altos preços, porque são grandes, robustos e encaram qualquer tipo de estrada, mesmo as mais esburacadas e enlameadas. Tudo isso com ar-condicionado, CD player e direção hidráulica.
A tração 4×4 é um item símbolo de status entre os seus donos. Os verdadeiros utilitários têm que tê-la, senão é enganação. Mas a grande maioria jamais enfrentará os desafios fora-de-estrada exibidos nas propagandas desses pequenos caminhões, e raramente precisará de tração nas quatro rodas. Verdade seja dita que as estradas brasileiras mais parecem pistas de rally. Mesmo assim, a grande atração dos utilitários parece ser a sensação de segurança e onipotência que transmitem aos seus donos. É comum vê-los conduzidos por mulheres nos bairros elegantes do Rio e São Paulo, talvez para servir como uma potente armadura contra a agressividade e descontrole do trânsito das metrópoles. Nos utilitários, o motorista senta mais alto do que quem dirige um carro comum. Vê o mundo de cima. Ninguém se mete com ele, já que um carro pequeno certamente levará a pior em qualquer colisão.
O reino dos utilitários tornou-se possível com o fim dos choques de petróleo em 1981. Nesse momento, o preço do barril de petróleo foi equivalente, a preços de hoje, a US$75 – bem acima dos US$50 gerado pelo mini-choque dos últimos meses. Mas, nos anos seguintes, a mudança dos hábitos de consumo, a maior eficiência no uso dos derivados de petróleo e o aumento da oferta, com a descoberta de novos campos em países fora da OPEC, derrubaram drasticamente os preços.
Enquanto os preços altos perduraram, mudou o perfil da indústria automobilística mundial. Particularmente, a que mais sofreu foi a americana, barricada em Detroit. Seus carrões foram preteridos pelos novos e compactos modelos japoneses, que invadiram o mercado americano. As grandes montadoras de lá, GM, Ford e Chrysler, sobreviveram aos trancos e aos barrancos, em boa parte, porque, através do seu poderoso lobby em Washington, obtiveram medidas de proteção contra a concorrência japonesa. Mas foram obrigados a se adaptar também. Em pouco tempo, os grandes e potentes beberrões, como os Camaros, Mustangs e enormes station wagons só podiam ser vistos em filmes hollywoodianos velhos.
A partir de 1981, o preço do petróleo caiu cerca de 10% ao ano, em termos reais. A década de 90 começou com a volta gloriosa do petróleo barato, e o barril andou abaixo de US$20. Os carrões reencarnaram nos veículos utilitários ou Sport Utility Vehicles (SUVs), como chamam os americanos. Hoje, por lá, eles já representam mais de 50% da frota de carros. Consomem bem mais, pioram o trânsito e aumentam a gravidade dos acidentes. Seu grande sucesso de vendas está calcado no marketing do aventureiro solitário e independente, que enfrenta qualquer terreno para escapar da caretice dos subúrbios americanos, nos quais a maioria dos proprietários de SUVs mora e raramente sai. Mas Dude, they’re cool (algo como “Bacana, eles são demais”).
Nem tanto. O ex-chefe do escritório do New York Times em Detroit, Keith Bradsher, escreveu o livro High and mighty (Altos e poderosos) sobre como os fabricantes americanos subverteram as leis, aplicadas aos carros comuns, para fazer carros relativamente baratos e perigosos, além de mais gastadores e poluentes (veja a resenha do New York Times). O truque foi simples: classificar os utilitários como caminhões e não carros de passeio, seu principal uso. Quando o governo americano, em 1990, aprovou o Estatuto do ar limpo (Clean air act), por conveniência política, ou seja, para não sofrer pressão do setor de transporte, eximiu os caminhões de muitas das suas exigências.
Bastou a Detroit obter o mesmo favor para os seus SUVs. Isso permite que eles sejam sujeitos a regulações muito menos estritas do que carros de passeio e, assim, possam consumir e poluir mais. Existe também um imposto adicional de 10% sobre a compra de carros de luxo de mais de US$30 mil, do qual os SUVs são igualmente isentos. Ou seja, com um pouco de lobby e uma manobra simples, Detroit desenvolveu seu nicho mais lucrativo dos últimos tempos e o mais maléfico para a atmosfera e a letalidade dos acidentes de trânsito.
Os utilitários causam um efeito perverso, criam uma competição para ser o maior da rua. Muita gente que tem um carro comum se vê intimidado por dividir a rua com esses concorrentes bombados. Para ficar de igual para igual, muitos consumidores, mesmo não querendo ou precisando, ou depois de bater com um deles, compram um utilitário também. O raciocínio é semelhante ao sujeito que poderia ir de bicicleta ao trabalho, mas tem medo do trânsito e opta por ir de carro. Resultado, para nivelar o jogo é preciso que os utilitários sejam penalizados pelas distorções que causam.
Existem várias soluções possíveis para igualar o jogo e evitar que continue uma corrida ao pior dos mundos, aquele em que todos compram o maior carro possível, para se sentir mais seguros. Uma idéia é taxar de acordo com faixas de peso dos carros. Quanto mais pesado, mais paga. Isso também é uma forma de cobrar pelo maior desgaste que os utilitários impõem as ruas e estradas. Outra alternativa é regular o design dos utilitários. Como são mais altos, em colisões frontais, eles “engolem” os carros mais baixos, aumentando muito a gravidade dos acidentes. Nos Estados Unidos, sob a pressão de vários grupos contra os SUVs, a indústria está “voluntariamente” propondo mudanças de projeto que tornem esse veículos menos perigosos para os outros. Essa discussão deveria acontecer no Brasil também.
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