Reportagens

Homem-primata

Veterinário leva nas costas, com parca ajuda do governo, o Centro de Primatologia do Rio de Janeiro, instituição da Feema que é referência no estudo de macacos ameaçados.

Eric Macedo ·
29 de março de 2007 · 18 anos atrás

O veterinário Alcides Pissinatti dirige com segurança a pick up oficial do governo do estado do Rio de Janeiro enquanto fala dos problemas no governo do país. “Parece que o Brasil está que nem a gente dizia que São Paulo estava, quando eu morava lá, há muitos anos. O estado era uma bagunça, mas as coisas andavam sozinhas, ia tudo para frente por conta própria”. Essa é apenas uma das muitas observações que demonstram a desilusão do paulista de Porto Ferreira com o poder público feitas nas duas horas de viagem que separam a sua casa, em Niterói, do Centro de Primatologia do Rio de Janeiro, seu local de trabalho em Guapimirim.

Há três décadas, Pissinatti, de 64 anos, percorre o mesmo trajeto para trabalhar. É o diretor da instituição, e também o único membro do seu quadro técnico. Comanda uma equipe de cinco funcionários da Feema (Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente) – órgão a que o centro está subordinado – que tomam conta de 200 macacos criados em cativeiro e 4.950 hectares de Mata Atlântica nativa: a Estação Ecológica do Paraíso, criada em 1987, dentro da qual fica o centro.

O CPRJ é hoje o retrato do que é possível fazer, com força de vontade, para driblar a falta de dinheiro público investido na conservação da natureza. Apesar do pessoal reduzido, as paredes estão pintadas, os prédios conservados, a papelada organizada e os animais são alimentados duas vezes ao dia com todas as vitaminas e frutas a que têm direito.

Criado em 1976 por iniciativa do biólogo e ambientalista veterano Adelmar Coimbra Filho, o CPRJ tem o objetivo de fornecer material de estudo em primatologia através da criação de espécies de macaco ameaçadas de extinção. Com grande prestígio entre as instituições que realizam esse tipo de trabalho, o centro promove pesquisas sobre alimentação, reprodução e comportamento dos primatas. A idéia é que, com o conhecimento produzido, possa-se orientar a reposição dos animais na vida selvagem e sua conservação. “Muita gente critica a criação em cativeiro, dizendo que o importante é conservar a fauna em seu habitat natural. Claro que o cativeiro não é uma solução. É uma ajuda”, afirma Pissinatti, que participou da fundação do centro. Ele diz que a criação tem a vantagem de, além de trazer conhecimento técnico sobre os bichos (porque o estudo é muito facilitado), também atrair a atenção de mais pesquisadores, que normalmente não entrariam no mato atrás dos macacos.

Planos

Hoje o centro é lar de 23 espécies ameaçadas da Mata Atlântica e da Amazônia. Entre as que correm maior risco, estão duas espécies de macaco prego do sul da Bahia, o Cebus robustus e o Cebus xanthosternos, e o sagüi bicolor da Amzônia (Saguinus bicolor) – que, diga-se de passagem, não agrada nem um pouco a vista (dê uma checada na foto ao lado). Segundo Pissinatti, cerca de 300 estudos científicos já tiveram a colaboração do centro, que também conta com uma biblioteca sobre o assunto. No entanto, o interesse dos pesquisadores não passa pelo estudo prolongado com os animais dos viveiros. “Geralmente eles vêm, colhem material e vão embora”, diz o veterinário.

Um alojamento para pesquisadores está terminando de ser construído com dinheiro de compensação ambiental de uma usina termelétrica, o que pode facilitar a permanência de cientistas no centro. “É uma das coisas que eu gostaria de estimular”, diz Pissinatti. Os únicos visitantes do CPRJ são pesquisadores. Uma vez ou outra abre-se para escolas – o que, segundo ele, não tem dado muito certo, uma vez que há constante risco de contaminação dos animais. “As pessoas sempre dão comida, por mais que você proíba”, afirma. Num dos murais do prédio principal está exposto um outro projeto, existente desde a década de 80: um museu de primatologia que mostraria a evolução dos primatas até o homem. Esse sim, seria aberto ao público.

Hoje tudo o que acontece no CPRJ está concentrado na figura de Pissinatti. Mas na década de 70, quando o centro foi criado, a quantidade de pessoas trabalhando ali era bem maior. “A equipe era de cerca de 30 pessoas nos primeiros sete, oito anos. Tinham quatro biólogos. Aos poucos, todo mundo foi saindo”, conta ele. Para Adelmar Coimbra, aposentado há treze anos da função de diretor, Pissinatti tem levado nas costas a instituição. “E vai continuar levando, enquanto o governo não entender a importância do que ele faz ali”, diz o biólogo, que também reclama da falta de valor dado pelo governo à ciência e à conservação.

Óbito

Com o semblante fechado que lhe é característico, o veterinário anota cuidadosamente, como numa certidão de óbito, os dados de um cadáver de mico-leão de cara dourada que morreu alguns dias antes da entrevista. O macaquinho, o de número 2290 que deu entrada no centro, teve apenas um dia de vida. Morreu um dia depois de nascer por motivo desconhecido. Pissinatti explica que cerca de 20 a 25 macacos nascem por ano em cativeiro, e mais ou menos a mesma quantidade morre ou deixa os viveiros rumo a outra instituição. Com isso, a população do centro se mantém mais ou menos constante. Todas as entradas e saídas precisam ser registradas e arquivadas.

Enquanto remexe os papéis sobre a mesa, Pissinatti reclama do acúmulo de funções. “Isso é algo que eu, como diretor, não deveria estar fazendo. Eu deveria estar preocupado com outras coisas”, diz ele. Ser tabelião de macaco é apenas uma das tarefas que Pissinatti realiza. Além de cuidar dos bichos como veterinário e fazer pesquisa, ele fiscaliza de perto a manutenção dos prédios, dos viveiros e das vias de acesso, briga por obras que nunca ficam prontas por falta do dinheiro prometido pelo governo e administra tanto o CPRJ como a Estação Ecológica do Paraíso. Isso, segundo ele, sem dinheiro algum da Feema, o que talvez justifique o seu receio em relação a todas as instâncias governamentais. “Todo dia eu tiro dinheiro do meu próprio bolso para manter isso aqui. Quando você não recebe nada em troca, às vezes cansa”.

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