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Ouvindo sem dar ouvidos

As obras da hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu, estão paradas por uma ação do Ministério Público que quer ouvir os índios antes de mais nada. Para o quê é difícil saber.

30 de março de 2007 · 18 anos atrás

Para quem vê de fora, o Brasil de hoje parece ser o melhor lugar do mundo para se pertencer a uma minoria histórica: nos últimos anos, qualquer pessoa que se identifique como índio ou quilombola pode reclamar para si qualquer pedaço de terra do país — não importa se tenha dono legítimo, com título de propriedade e tudo mais — sob o pretexto da “ocupação tradicional”, criado sem querer pela vagueza da Constituição Federal; grupos indígenas receberam, de mão beijada, nada menos do que dois parques nacionais inteiros para “administrar”, atropelando norma constitucional e sem precisar fazer qualquer prova de que estariam aptos a tal “encargo”; e agora, o processo de licenciamento da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, considerada de interesse público geral e essencial para o planejamento energético do país, está parado por causa de uma guerra de liminares que tem como único objetivo ouvir as comunidades indígenas afetadas.

Essa batalha começou quando o Ministério Público Federal ajuizou uma ação civil pública para invalidar o Decreto Legislativo nº 788/05, através do qual o Congresso Nacional concedeu a autorização para a utilização do potencial hidrológico de terras indígenas. A justificativa do MPF é que o art. 231, § 3º da Constituição Federal que a exploração de recursos hídricos em terras indígenas somente se dará “com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas”, sem esclarecer quem deve realizar e nem o momento exato da oitiva. No entender do MPF, essa oitiva teria que ser anterior à edição do decreto que autoriza a exploração (o Decreto 788/05, é importante que se diga, condiciona a exploração à oitiva das comunidades indígenas afetadas).

A discussão toda, portanto, é para saber se a tal autorização do Congresso pode, ou não, ser dada antes da manifestação dessas comunidades e quem estaria autorizado a ouvir tais comunidades (o decreto afirma que quem deve promover as audiências públicas é o Ibama, mas o MPF acha que quem deve fazê-lo é o próprio Congresso, que teria legitimidade indelegável conferida pela CF/88). Nesse meio tempo, o Juiz Substituto de Altamira/PA concedeu uma liminar ao MPF para sustar todo o processo de licenciamento da usina; o Juiz Titular de Altamira revogou essa liminar; o MPF recorreu dessa decisão e conseguiu, no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, uma nova decisão mandando parar o licenciamento; e, por último — até agora —, a União Federal entrou com um pedido de suspensão de liminar do Supremo, onde conseguiu da Ministra Ellen Gracie uma decisão mandando o Ibama prosseguir com o processo de licenciamento, em especial com a oitiva das comunidades indígenas.

Segundo a Presidente do STF, o acórdão do agravo de instrumento (interposto pelo MPF) é ofensivo à ordem administrativa e à economia pública, quando considera inválido o Decreto Legislativo nº 788/05, proibindo o Ibama de elaborar a consulta política às comunidades interessadas. Ela ressaltou, ainda, que a consulta do Ibama às comunidades indígenas não deve ser proibida nesse momento inicial da verificação da viabilidade do empreendimento e que é relevante o argumento de que a inviabilização da UHE Belo Monte compromete o planejamento da política energética do país. A Ministra lembrou que, em decorrência da demanda crescente de energia elétrica, para substituir a Usina de Belo Monte, seria necessária a construção de dezesseis outras usinas na região, inundando-se uma área quatorze vezes maior do que o reservatório da UHE Belo Monte.

Permitam-se abrir um parêntese para dizer, desde logo, que eu não sou particularmente a favor nem contra a construção da Usina de Belo Monte. Eu, para falar a verdade, nem conheço direito as suas dimensões, benefícios e impactos. Essa não é, portanto, uma coluna de louvor à usina, nem de ataque aos índios. É apenas, como se verá a seguir, uma manifestação contrária ao desperdício de tempo e dinheiro públicos em discussões inteiramente estéreis. Alguém já parou para pensar se toda essa discussão possui algum efeito prático, além de movimentar a já assoberbada máquina judiciária brasileira? Fecha parêntese.

Eis aqui duas questões para se pensar: que diferença faz se as comunidades indígenas afetadas são ouvidas antes da autorização do Congresso Nacional ou durante o processo de licenciamento da usina (o que, aliás, é o que acontece com qualquer outra comunidade, afetada por qualquer outro empreendimento, o que demonstra mais um aparente privilégio de ser índio)? Faz sentido o Congresso Nacional — que não se interessa por absolutamente nada a não ser política — ser responsável por ouvir essas comunidades, como pretende o MPF, ao invés do Ibama?

Tudo bem que não se pode sair por aí fingindo que normas constitucionais não existem, mas há que se ter cuidado com a irracionalização das formalidades. Eu proponho aqui um desafio: considerando-se apenas os últimos 507 anos de história do Brasil, quem consegue imaginar um único argumento que, apresentado pelas comunidades indígenas do Xingu, faria mudar o rumo da construção da Usina de Belo Monte? Eu não consigo e, talvez por isso, ache essa discussão em particular sem sentido nenhum.

Parece-me que depois de cinco séculos de massacres, escravidão e abandono, o Brasil decidiu tratar bem as suas minorias mas, por absoluta falta de prática no assunto, não tem a menor idéia de como fazê-lo. E mete os pés pelas mãos, numa sucessão de trapalhadas tamanha que, se Didi, Dedé, Mussum e Zacarias estivessem todos vivos e juntos, teriam aqui a chance da fazer o seu grande épico com seu humor politicamente incorreto (com Zacarias no papel do índio, Mussum encarnando o quilombola e assim por diante). Esse sim, seria um sucesso.

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