A partir do momento em que comecei a trabalhar diretamente com direito ambiental (o que tenho feito nos últimos nove meses, em um novo escritório, e explica, mesmo se não desculpa, minha longa ausência desta coluna), fiquei muito mais atento aos potenciais problemas jurídicos ambientais ao meu redor. O interior do Estado do Rio, por exemplo, por onde viajo com muita freqüência, se transforma cada vez mais num show de horrores.
Há cerca de um mês, em uma dessas viagens, acompanhado de um conhecido, rumo à sua fazenda, Minas, comecei a apontar para ele essas irregularidades, todas visíveis no caminho, para quem quiser ver. Eram, literalmente, dezenas de quilômetros de crimes ambientais. Dentre os mais comuns, estavam os relacionados à falta de vegetação legalmente protegida. A própria estrada que percorríamos corre praticamente o tempo todo sobre o que já foi um dia – e ainda deveria ser – a mata ciliar de um rio, como fazem tantas outras.
Isso, no entanto, não é novidade. O que chamou a minha atenção, contudo, foi a absoluta surpresa do meu companheiro de viagem (uma pessoa que de ignorante não tem nada) acerca da existência de algumas das mais básicas obrigações ambientais dos proprietários de terra. Se ele não fazia idéia da existência de algumas das restrições impostas pela legislação ambiental ao uso da terra,é bem possível que uma boa parte dos proprietários rurais do país (em especial aqueles que não exploram as suas propriedades através de atividades econômicas de grande e médio porte) não faça idéia dos passivos ambientais que têm. Nem do fato de que são obrigados a recuperar tal passivo mesmo que tenham adquirido as suas terras já degradadas ou muito antes das atuais normas que regulam o tema.
Provavelmente, muitas dessas pessoas sequer saberiam diferenciar as Áreas de Preservação Permanente da Reserva Legal. Outras talvez até possuam alguma idéia sobre o que são as matas ciliares, ou de que os topos de morro e as encostas muito inclinadas são protegidos por lei, mas dificilmente saberiam dizer a extensão dessa proteção.
Pois bem. Diante disso, tentarei nas próximas colunas dar algumas dicas bem básicas para que quem tem um sítio, uma fazenda, uma casa de campo ou de praia possa identificar os seus passivos ambientais. E fazer o que bem entender a respeito do assunto.
Comecemos pelas matas ciliares
As matas ciliares, nome genérico que se dá à vegetação que cresce próxima às margens de rios e outros corpos d’água e os protegem, tal qual os cílios (de onde emprestam o nome) fazem com os olhos, são a primeira categoria de Área de Preservação Permanente indicada pelo Código Florestal e a primeira vítima dos conhecidos benefícios trazidos pela água.
A primeira coisa a se estar atento para saber se a sua propriedadepossui algum passivo ambiental, portanto, é quanto à existência de qualquer curso ou reservatório d’água, por menor que seja, dentro dela ou nos seus limites. Se ter a sua própria nascente ou a sua própria porção de um rio cristalino parece, a princípio, uma bênção, saiba que isso traz muito mais responsabilidades do que benefícios imediatos.
Isso porque o Código Florestal Brasileiro, instituído pela Lei n° 4.771/65, estabelece no seu art. 2° que:
“Consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito desta Lei, as florestas e demais formas de vegetação natural situadas:
a) Ao longo dos rios ou de qualquer curso d’água desde o seu nível mais alto em faixa marginal cuja largura mínima seja:
1 – De 30 (trinta) metros para os cursos d’água de menos de 10 (dez) metros de largura;
2 – De 50 (cinqüenta) metros para os cursos d’água que tenham de 10 (dez) a 50 (cinqüenta) metros de largura;
3 – De 100 (cem) metros para os cursos d’água que tenham de 50 (cinqüenta) a 200 (duzentos) metros de largura;
4 – De 200 (duzentos) metros para os cursos d’água que tenham de 200 (duzentos) a 600 (seiscentos) metros de largura;
5 – De 500 (quinhentos) metros para os cursos d’água que tenham largura superior a 600 (seiscentos) metros.
b) Ao redor das lagoas, lagos ou reservatórios d’água naturais e artificiais;
c) Nas nascentes, ainda que intermitentes e nos chamados olhos d’água, qualquer que seja a sua situação topográfica, num raio mínimo de 50 (cinqüenta) metros de largura;”
A vegetação e as áreas que fazem parte desse elenco são intocáveis e a sua manutenção ou reconstituição é obrigação do proprietário da terra, mesmo que ele já tenha adquirido a propriedade com tais áreas degradadas ou não tenha contribuído de forma alguma para a sua degradação.
Tentando evitar dúvidas, a Resolução CONAMA nº 303/2002 ajuda a identificar os limites impostos pelo Código Florestal e a esclarecer alguns dos conceitos por ele utilizados:
“Art. 2º – Para os efeitos desta Resolução, são adotadas as seguintes definições:
I – Nível mais alto: nível alcançado por ocasião da cheia sazonal do curso d’água perene ou intermitente;
II – Nascente ou olho d’água: local onde aflora naturalmente, mesmo que de forma intermitente, a água subterrânea;
III – Vereda: espaço brejoso ou encharcado, que contém nascentes ou cabeceiras de cursos d’água, onde há ocorrência de solos hidromórficos, caracterizado predominantemente por renques de buritis do brejo (Mauritia flexuosa) e outras formas de vegetação típica;
(…)
Art. 3º – Constitui Área de Preservação Permanente a área situada:
I – Em faixa marginal, medida a partir do nível mais alto, em projeção horizontal, com largura mínima, de:
a) Trinta metros, para o curso d’água com menos de dez metros de largura;
b) Cinqüenta metros, para o curso d’água com dez a cinqüenta metros de largura;
c) Cem metros, para o curso d’água com cinqüenta a duzentos metros de largura;
d) Duzentos metros, para o curso d’água com duzentos a seiscentos metros de largura;
e) Quinhentos metros, para o curso d’água com mais de seiscentos metros de largura;
II – Ao redor de nascente ou olho d’água, ainda que intermitente, com raio mínimo de cinqüenta metros de tal forma que proteja, em cada caso, a bacia hidrográfica contribuinte;
III – Ao redor de lagos e lagoas naturais, em faixa com metragem mínima de:
a) Trinta metros, para os que estejam situados em áreas urbanas consolidadas;
b) Cem metros, para as que estejam em áreas rurais, exceto os corpos d’água com até vinte hectares de superfície, cuja faixa marginal será de cinqüenta metros;
IV – Em vereda e em faixa marginal, em projeção horizontal, com largura mínima de cinqüenta metros, a partir do limite do espaço brejoso e encharcado;”
Em caso de reservatórios artificiais (definidos como a “acumulação não natural de água destinada a quaisquer de seus múltiplos usos”), a Resolução Conama n° 302/2002 estabelece ainda os seguintes parâmetros:
“Art. 3º – Constitui Área de Preservação Permanente a área com largura mínima, em projeção horizontal, no entorno dos reservatórios artificiais, medida a partir do nível máximo normal de:
I – Trinta metros para os reservatórios artificiais situados em áreas urbanas consolidadas e cem metros para áreas rurais;
II – Quinze metros, no mínimo, para os reservatórios artificiais de geração de energia elétrica com até dez hectares, sem prejuízo da compensação ambiental.
III – Quinze metros, no mínimo, para reservatórios artificiais não utilizados em abastecimento público ou geração de energia elétrica, com até vinte hectares de superfície e localizados em área rural.”
Esses limites podem ainda ser ampliados administrativamente por normas estaduais, de modo que é importante estar atento também a esse detalhe, que muitas vezes passa despercebido.
Toda essa proteção é perfeitamente justificável pela relevantíssima função ambiental que essa vegetação normalmente exerce, enquanto reguladora dos ciclos hídricos que garantem a saúde e o reabastecimento dos nossos reservatórios de água doce.
Em síntese: qualquer riacho ou córrego, perene ou intermitente, deve a princípio ter uma faixa de vegetação nativa intocada (ou restaurada, onde for necessário) de, no mínimo, 30 metros de largura de cada lado. Tratando-se de um rio com mais de 10 metros de largura, essa faixa salta para os 50 metros de cada lado. Até os olhos d’água, brejos e áreas alagadiças devem ter a sua vegetação protetiva.
Qualquer construção ou obra dentro dessa faixa maior do que uma pequena picada ou uma pinguela é vedada por lei (e, mesmo nesses casos de mínimo impacto, dependem de autorização do Poder Público) e qualquer intervenção não autorizada nessas áreas pode ser considerada crime ambiental e infração administrativa, sujeitando o infrator ao pagamento de pesadas multas e à recomposição da área.
É claro que a aplicação dessa lei ao pé da letra requereria uma verdadeira revolução em termos de realocação de ruas, estradas e até bairros inteiros em um país que se habituou, durante séculos, a crescer literalmente pendurado sobre a calha dos seus rios (jogando neles todo tipo de porcaria, diga-se de passagem). Mas espero que esta coluna, e as próximas, possam ajudar aqueles que de fato encontram-se em situação irregular por pura distração a tentar, na medida do possível, corrigir os pequenos pecados das suas propriedades que contribuem, mesmo que em uma escala mínima, para castigar ainda mais os nossos recursos naturais. Ou esperar que os órgãos ambientais se mexam.
Aí, vai da consciência – ou da conveniência – de cada um.
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