Reportagens

Correções necessárias

Governo prepara mudanças na legislação quilombola para torná-la mais clara. Cria mecanismos para evitar conflitos institucionais e aumenta exigências para demarcação de áreas.

Andreia Fanzeres ·
20 de dezembro de 2007 · 17 anos atrás

Não são só ambientalistas, gestores de unidades de conservação e militares que estão cansados de enfrentar conflitos judiciais envolvendo áreas protegidas e demarcação de terras quilombolas. O governo também está. Mas como não pretende suspender ou limitar o reconhecimento de comunidades de remanescentes de quilombos pelo princípio da auto-definição, optou por pelo menos deixar as regras de demarcação de territórios mais claras e de acordo com a lei. Na prática, o governo está alterando o texto de uma instrução normativa do Incra de 2005, que regulamenta os procedimentos para definição das áreas pleiteadas. Representantes da área ambiental acreditam que as mudanças, embora sutis, serão um importante avanço para que conflitos de interesse como os da restinga de Marambaia (RJ) não se repitam.

Os problemas gerados pela titulação de terras para quilombolas na restinga, uma das áreas mais bem preservadas do litoral do Rio, controlada pelas Forças Armadas, foram alguns dos motivos que levaram o presidente Lula a atender uma recomendação de seu Gabinete de Segurança Institucional. Para tentar acabar com as diversas ações judiciais que têm incomodado o governo, foi formado no mês de julho um grupo de trabalho, sob a coordenação da Advocacia Geral da União (AGU), para identificar o que estava errado. “Foi uma tarefa monumental”, descreve Ronaldo Jorge Araújo Vieira Junior, consultor-geral da AGU. Segundo ele, representantes do Ibama, Instituto Chico Mendes, Serviço Florestal Brasileiro, Incra, Ministério do Desenvolvimento Agrário, Fundação Palmares, Ministério da Defesa, Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan) e outros órgãos apresentavam diagnósticos às vezes contraditórios. “Mas no final, trabalhamos numa linha convergente. A proposta foi consensual, não houve nem votação”, diz o consultor.

A primeira coisa que todos os representantes do governo concordaram foi em não alterar o Decreto 4.887 de 2003, que, aliás, nesta quarta-feira (19 de dezembro) foi rejeitado pela Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados. A peça está, desde 2004, no Supremo Tribunal Federal (STF) aguardando julgamento de uma ação direta de inconstitucionalidade movida pelo então PFL (atual DEM). De acordo com a petição inicial do processo, o partido não aceita que a demarcação das áreas seja feita mediante indicação dos próprios interessados e, ainda, que o Incra desaproprie áreas que supostamente estejam em domínio particular. “O decreto não será atacado porque é a diretriz de uma política pública fixada pelo governo.”, explica Vieira Junior.

Embora este decreto tenha sido poupado, o grupo de trabalho identificou uma série de falhas no texto da Instrução Normativa 20 do Incra, de setembro de 2005, criada para regulamentar essa política do governo. Aí reside a maioria das brechas que têm tornado a demarcação de terras quilombolas uma farra.

Alterações na legislação

Nessa delicada negociação, a área ambiental brigou e se deu por satisfeita depois de ver na nova proposta uma ligeira, mas fundamental alteração. Na tentativa de evitar conflitos, a comunidade poderá indicar, no ato do reconhecimento como quilombola, que existe problema de sobreposição com unidades de conservação. “Embora precária, pois precisará de análise mais aprofundada, essa indicação será comunicada aos órgãos ambientais competentes”, diz explica Vieira Junior, da AGU. O objetivo é que, desde o início do processo, os órgãos ambientais sejam informados para se preparar e tomar providências, ao contrário do que vigora atualmente. “Hoje, esse conflito só é configurado depois que o relatório antropológico é entregue, já no final do processo”, lembra o consultor.

Uma vez notificados a tempo de reverter um conflito em potencial, os órgãos ambientais podem solicitar intermediação à Casa Civil e à AGU, que serão responsáveis por instaurar câmaras de conciliação. A intenção, neste caso, é forçar o poder executivo a solucionar esses problemas, com a participação direta dos órgãos envolvidos, e não deixar que o poder judiciário decida. Para Boris Alexandre César, coordenador geral de regularização fundiária do Instituto Chico Mendes, isso já é um avanço. “Não estamos resolvendo, mas criando mecanismos de negociação”, resume. “O grande problema é que existem dois dispositivos constitucionais que se chocam. Um garante o direito das comunidades quilombolas demarcarem terras e o outro assegura que áreas de proteção integral se destinam exclusivamente à conservação da natureza”, complementa Boris.

Na AGU, por exemplo, já funciona a primeira câmara desse tipo, que analisa o caso da restinga de Marambaia, com Ministério da Defesa de um lado e Incra do outro. O Instituto Chico Mendes não perdeu tempo e também já pediu a instauração de mais seis câmaras para discutir problemas de sobreposição de terras quilombolas no Parque Nacional do Cabo Orange (AP), Parque Nacional de Aparados da Serra (RS), Parque Nacional do Jaú (AM), Reserva Biológica da Mata Escura (MG), Reserva Biológica do Guaporé (RO) e Reserva Biológica do rio Trombetas (PA).

“Não dá mais para discutir esses problemas sob a ótica de interesses localizados. Era preciso uma decisão de governo”, diz Boris. Foi também por isso que, a partir de agora, em casos de controvérsias de natureza jurídica, a decisão final deixará de caber à superintendência regional do Incra, e passará a ser definida pela AGU. “Essas superintendências não têm competência legal para fazer mediação de conflitos envolvendo Ibama e Fundação Palmares, por exemplo”, explica Vieira Junior. Ele lembra que se o conflito não for jurídico, mas quanto ao mérito, a decisão caberá à Casa Civil.

Imparcialidade e protestos

Pelo novo texto, o relatório antropológico somente poderá ser elaborado por especialista que tenha vínculo com o Incra, salvo em hipótese devidamente reconhecida de impossibilidade material. Nesses casos, será permitida contratação. Com a norma, o grupo de trabalho quer acabar com situações em que o antropólogo responsável pelo relatório tenha vínculos jurídicos com os quilombolas solicitantes. “O Estado brasileiro não pode se valer de um técnico contratado pela comunidade para assinar o relatório. Não é lícito, nem correto”. Mas para os diversos movimentos sociais que querem a manutenção da norma vigente, isso é uma “restrição inédita e descriminatória”.

Em carta encaminhada à Casa Civil, AGU e Incra, as entidades Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos, Comissão Pró-Índio de São Paulo, Justiça Global, Koinonia Presença Ecumênica e Serviço, Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e Balcão de Direitos da Universidade Federal do Espírito Santo afirmam que o Incra dispõe de apenas 40 antropólogos hoje, e tramitavam em outubro de 2007 cerca de 450 processos. “Sabemos que o Incra não tem antropólogos suficientes para o trabalho, por isso também recomendamos que o órgão fortaleça seu quadro de servidores, com abertura de novos concursos”, diz Vieira Junior, da AGU. Os movimentos chiaram também por causa de uma alteração um tanto quanto óbvia. Conforme consta no texto novo, só poderá ter início o processo de demarcação de terras quilombolas depois que a Fundação Palmares certificar e reconhecer a comunidade como tal. Isso, na visão dos movimentos sociais que protestaram, cria entraves burocráticos e é ilegal.

O grupo de trabalho resolveu também estabelecer critérios objetivos para elaboração do laudo antropológico. E recorreu à portaria do Ministério da Justiça, que define os critérios para redação de laudos para demarcação de terras indígenas, para reformular os parâmetros do relatório sobre terras quilombolas. “Hoje esse laudo é uma carta de princípios, com uma subjetividade imensa. Fizemos ajustes à norma para terras indígenas e fomos assessorados por antropólogos na adaptação da Portaria do Ministério da Justiça referente à demarcação de terras indígenas para a questão quilombola”, explica Vieira Junior, da AGU. Agora, o relatório terá que obedecer a um roteiro bem mais detalhado, preenchendo as diversas informações solicitadas. Mas isso também não agradou os movimentos sociais. Eles não concordaram com o grau de detalhamento exigido na elaboração do relatório antropológico, declaram que isso é “desperdício de tempo e dinheiro público” e consideram que o relatório se transformará num “obstáculo à conclusão dos processos”.

A carta de protesto fala em “grave retrocesso aos direitos dos quilombolas” sobre a maioria dos pontos que foram alvo das mudanças propostas pelo grupo de trabalho. Eles se dizem excluídos do processo porque não foram consultados na fase de elaboração, por isso boicotaram as duas reuniões públicas convocadas pela AGU para apresentação da minuta da nova instrução normativa. “Era impossível fazer consultas antes porque ainda não havia posição do governo”, diz Vieira Junior, que, avisou, vai continuar tentando o diálogo. Enquanto as consultas não são realizadas, ainda não há previsão de quando essa instrução normativa entrará em vigor. Mas tão logo ela se torne oficial, espera-se que, com mais clareza, as verdadeiras comunidades de origem quilombola tenham uma legislação mais forte a seu favor. Assim, as áreas de proteção integral também serão menos ameaçadas.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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