Análises

Dez manguezais no Espírito Santo

Os manguezais têm futuro sombrio. Para conhecer dez deles no Espírito Santo encarei construções irregulares, poluição, desmatamento, agricultura e turismo.

Arthur Soffiati ·
31 de agosto de 2005 · 19 anos atrás

Depois de me deter demoradamente no estudo dos manguezais situados entre os rios Itapemirim (ES) e São João (RJ), avancei para o norte do primeiro e para o sul do segundo em algumas excursões de campo. Nos feriados da Semana Santa de 2004 e 2005, rumei para o Espírito Santo com o fim de verificar preliminarmente a situação de dez manguezais: dos rios Jucu, Congo, Una, Perocão, Meaípe, Parati, Benevente, Iconha, da Lagoa da Conceição e da Baía de Guarapari.

Nunca é demais caracterizar minimamente o manguezal para o leitor não familiarizado com ele. Trata-se de um ecossistema que normalmente se desenvolve na foz de rios, entre a terra e a água e entre a água doce e a água salgada. Pode também ocorrer no interior de lagoas costeiras e em praias de baixa energia oceânica. Como tem estrutura e identidade, ele não deve ser considerado um ambiente de transição (ecótono), mas como ecossistema cujas plantas e animais estão adaptados a substrato de lama formada por sedimentos finos aglutinados pelo encharcamento da água e com pouco ou nenhum oxigênio (anoxia). Pode ainda ocorrer em substrato pedregoso e arenoso. Por esta razão, as espécies vegetais exclusivas dele criaram formas de adaptação, como raízes que crescem do interior para a superfície do solo a fim de respirar, com poros em suas pontas que se fecham quando a maré sobe e se abrem quando ela desce. Estas raízes são chamadas de pneumatóforos e os poros, de lenticelas. Tal é o caso do mangue branco (Laguncularia racemosa) e das duas espécies de siribeira (Avicennia schaueriana e A. germinans). Também as três espécies de mangue vermelho (gênero Rhizophora) encontradas no Brasil apresentam lenticelas nas ramificações de seu caule.

Os manguezais são ecossistemas intertropicais, invadindo muito pouco as regiões subtropicais. No Brasil, estendem-se da foz do rio Oiapoque (AP) a Laguna (SC). As maiores áreas de manguezal do Brasil e do mundo localizam-se entre o Maranhão e o Amapá. Sua fauna pode ser permanente, como o caranguejo-uçá (Ucides cordatus) e o caranguejo aratu (Goniopsis cruentata). Há ainda o guaiamum (Cardisoma guanhumi) e outros crustáceos. A alta produtividade biológica do manguezal torna-o local rico para reprodução, para desenvolvimento de espécies marinhas e fluviais e de fabricação de alimentos. Invertebrados, peixes, répteis, aves e mamíferos freqüentam-no em caráter permanente e temporário.

O Estado do Espírito Santo é pródigo em manguezais, muito embora sua situação não difira dos manguezais existentes em outros estados do Brasil, notadamente entre Ceará e Santa Catarina. Em todos os quais estudei entre os rios Jucu e Itabapoana, das cinco espécies existentes nas regiões sudeste e sul, encontrei o mangue-branco (Laguncularia racemosa), entre todas, a dominante, além do mangue-vermelho (Rhizophora mangle), duas espécies de siribeira (Avicennia schaueriana e A. germinans), sendo que a primeira apenas no rio Benevente, e apenas dois exemplares de mangue de botão (Conocarpus erectus), esta não considerada uma espécie exclusiva de manguezais.

A destruição por interferência humana direta e indireta representa uma séria ameaça para este ecossistema, ainda hoje visto como ambiente putrefato e insalubre. Esta visão nos foi legada pelos europeus, que detestavam pântanos. A supressão do bosque de mangue, o avanço da agropecuária, a industrialização, a urbanização, a poluição e o turismo podem ser apontados como os principais fatores diretos de destruição. Desmatamentos acima deles, erosão, sedimentação, barragens acima e abaixo, substituição da água salobra pela água doce ou pela água salgada, estabilização da lâmina d’água são os responsáveis indiretos por sua perturbação ou degradação, levando-o mesmo à morte.

Os manguezais situados entre os rios Jucu e Iconha são todos ribeirinhos, no encontro com água doce e água salgada, menos o manguezal do rio Parati, que, por ação humana, foi parcialmente estrangulado. Dentre os problemas que mais os assolam, os principais são:

Desmatamento: É difícil encontrar nos dez manguezais analisados indícios de desmatamento com o fim exclusivo de obter lenha, mourões para cercas, casas e tutores para plantas. Não que essa prática não tenha ocorrido. Sucede que a regeneração natural dos manguezais foi impedida pela expansão imobiliária nas áreas desmatadas. Informantes antigos residentes em todas elas, contudo, confirmam que, outrora, os manguezais forneceram matéria prima em larga escala e que, atualmente, em menor intensidade, continuam fornecendo. De um modo tal, porém, que não se efetua a abertura de clareiras. A obtenção de informações é sempre difícil porque os informantes já estão cônscios da ação de órgãos governamentais de fiscalização. Entretanto, alguns trechos dos manguezais dos rios Jucu e Una parecem evidenciar desmatamento recente e esforço da vegetação exclusiva em se recompor.

Agropecuária. O único manguezal que apresenta marcas da agropecuária é o do pequenino rio Parati, em vários pontos barrado por um proprietário rural para impedir o avanço das marés e a salinização do solo. Sob uma estrada, foi construído um grande bueiro celular para permitir a passagem do gado sem riscos. O trecho de manguezal acima dos barramentos apresenta-se estressado em nível subletal, como veremos adiante. Nos demais, não há pegadas deixadas pela agropecuária. Se esta atividade foi praticada no passado, seus vestígios mais nítidos desapareceram, até mesmo no maior manguezal dos dez: o do rio Benevente. Subindo este rio com um barqueiro que o conhece minuciosamente, cheguei a uma construção jesuítica do século 18. Os blocos de pedra estão deslocados e o prédio, em ruínas. Nada restou da agricultura e da pecuária, provavelmente praticadas outrora.

Urbanização. Sendo áreas muito cobiçadas pela especulação imobiliária e pela construção civil, nenhum desses manguezais examinados foi poupado por prédios residenciais e públicos e por fábricas. Neste último caso, figuram principalmente os estaleiros e os frigoríficos. Embora o governo municipal de Vila Velha (ES) tenha criado o Parque de Jacaranema para proteger o manguezal do rio Jucu, impressiona a impunidade como residências e restaurantes se assentaram sobre ele, sem qualquer respeito a sua condição de área de preservação permanente. Um pequeno curso d’água batizado de rio do Congo, que desemboca na mesma enseada onde se encontra a foz do rio Jucu, teve suas margens ocupadas por edificações. Este pequeno rio, na verdade, é um canal aberto pelo extinto Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) para drenar brejos que impediam a ocupação de terras, segundo informação de um pescador antigo. Ela já foi renativizado, apagando a assinatura inconfundível do DNOS.

No rio Una, a expansão urbana sobre o manguezal foi praticada mais pela classe média e por pessoas de baixa renda, e não sem prejuízo menor para o ecossistema. Um dos casos mais graves é o do rio Perocão. A existência de restaurantes e a proximidade de Guarapari atraíram pessoas de baixa renda que construíram suas casas dentro do manguezal, avançando inclusive sobre a faixa de servidão pública do rio. Nele, a antropização se mostra tão acentuada que o manguezal corre sérios riscos de desaparecer.

De todos os núcleos urbanos erguidos na área limitada pelos dois rios mais extremos, o maior e mais problemático é, sem dúvida, o de Guarapari. Uma foto aérea não deixa dúvida de que uma grande área de manguezal existente na Baía de Guarapari (foto), onde desembocam vários rios de pequena vazão foi engolida pela cidade. As amostras que restaram correm sérias ameaças. Os aterros crescem sobre o ecossistema já estropiado e tais acréscimos estão à venda. Existem algumas placas informado à população que manguezal é área de preservação permanente e que deve ser protegido, mas essa medida se revela inócua.

Um pouco mais ao sul, corre o pequeno rio Meaípe, que deságua na praia do mesmo nome. Na década de 1960, ainda um povoado de pescadores, Meaípe é hoje um balneário muito procurado por seus restaurantes e hotéis. Mansões e casas pobres avançaram sobre o manguezal e estrangularam o rio. Duas pontes permitem a circulação de veículos motorizados, mas não a circulação adequada das águas sob elas. Em vez de vão aberto, as pontes passam sobre bueiros que tanto dificultam a descida da água doce quanto o avanço das marés. Acima da primeira ponte, o manguezal já foi suprimido pela invasão urbana e pela falta de água salobra.

De todos os manguezais estudados, o do rio Benevente é o que apresenta menor grau de interferência humana, com uma bela população de mangue vermelho (Rhizophora mangle) em sua foz e uma longa faixa de vegetação exclusiva deste ecossistema rio acima. Mesmo assim, ele é afetado por obras públicas e particulares. A lagoa da Conceição, na verdade um pequeno rio que perdeu a capacidade de manter sua barra permanentemente aberta, espraia-se no apreciado balneário de Iriri. Sobre suas margens, casas ricas e pobres estão avançando rapidamente, comprometendo o pequeno manguezal.

Por fim, a ironia maior fica reservada para o manguezal do rio Iconha, cuja foz localiza-se na praia de Piúma. Além de uma urbanização de tipo clássico, aterros foram feitos pela prefeitura, pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário para a construção de uma rodoviária, das dependências da instituição e do Fórum, respectivamente. Ministério Público e Judiciário, considerados os derradeiros bastiões na defesa do meio ambiente, dão, em Piúma, um deplorável exemplo.

Poluição. É notória a poluição por esgoto doméstico, por óleo e por lixo dos dez manguezais estudados. A discussão a respeito dos males causados pelo esgoto orgânico sobre manguezais é ainda controversa. Ambiente rico em matéria orgânica decomposta, o manguezal tolera bem o esgoto doméstico. Na praia de Imbetiba, em Macaé (RJ), uma pequena carga de esgoto vem favorecendo o desenvolvimento de um manguezal mono-específico. Todavia, deve-se ter em conta que a matéria orgânica diluída contamina a água, tornando-a imprópria para recreação por contato primário, confere-lhe mau cheiro, compromete a estética do ambiente e pode saturar a lama do manguezal, tornando-o mais pobre em oxigênio do que já é.

O lixo também afeta o manguezal, dificultando a troca de gases pelas raízes respiratórias. Por sua vez, o óleo em grande quantidade pode ser mortal para o ecossistema. Em doses pequenas e contínuas, ele causa estresse sub-letal ao ecossistema. Este caso pode ser comprovado no manguezal do rio Guaxindiba (RJ), onde ancoram muitos barcos de pesca que lançam o óleo em suas águas. Sistema aberto, o rio lança as águas oleosas ao mar, porém as marés provocam seu retorno. Ele adere às lenticelas e impede a ventilação da planta.

Turismo. É uma falácia conceber o turismo como uma atividade anódina. Ela é perigosíssima, sobretudo quando se esconde sob o rótulo de ecoturismo. Por trás dele, há uma atividade que explora de forma predatória os atrativos turísticos. Felizmente, o manguezal ainda não é visto como um ambiente propício ao turismo. Nem por isto, ele é poupado. Nos manguezais aqui examinados, o turismo é pouco explorado. Os que mais sofrem com o turismo são os de Meaípe, Parati e Iriri. Os outros desembocam em praias plebéias ou conspurcadas pela própria presença do manguezal, que ainda é visto pelo turista mediano como ambiente pútrido e fétido.

Obras públicas e particulares. Há intervenções em bacias hídricas que não são executadas em áreas de manguezal, mas que podem atingi-lo profundamente em seu coração, levando-o mesmo à morte. Barragens na foz de um rio ou em algum trecho de seu curso podem dar-lhe o caráter de lagoa ou reduzir o aporte de água doce. Quando a barra do rio não é fechada por ação antrópica, represamentos acima causam diminuição de vazão e vitória do mar sobre o rio, fechando sua foz ou salinizando-o excessivamente. Quando o sistema se fecha, a lâmina d’água se eleva e submerge as raízes respiratórias em caráter prolongado. Se não morrem, as plantas de manguezal entram em estresse. Para sobreviver, o mangue branco (Laguncularia racemosa) e a siribeira (Avicennia schaueriana e A. germinans) costumam emitir raízes adventícias das quais brotam raízes respiratórias acima da linha d’água para continuar a exercer suas funções vitais. No mangue vermelho (Rhizophora mangle), as lenticelas deslocam-se para a parte emersa das ramificações do caule. Quando a lâmina d’água se torna mais delgada, mas ainda mantendo submersos os pneumatóforos, seu aquecimento pelo sol pode também causar estresse às plantas.

Os represamentos que fecham bacias e enclausuram manguezais podem alterar o teor de salinidade da água, quer reduzindo-o drasticamente, quer concentrando-o excessivamente. No primeiro caso, a substituição da água salobra pela água doce cria condições para a invasão de plantas aquáticas e semi-aquáticas que competem com as plantas exclusivas de manguezal, podendo mesmo vencê-las. No segundo caso, o aumento da salinidade ultrapassa a capacidade das plantas de lidar com essa alteração. O consumo de energia despendido leva-as a não alcançar o pleno desenvolvimento.

O rio Parati foi barrado nas adjacências da foz. O trecho do manguezal abaixo da barragem continua sofrendo influência das marés e não apresenta sinais de estresse, apesar de estar havendo invasão de plantas competitivas. Acima da barragem, a biodiversidade empobreceu-se e os exemplares de mangue branco (Laguncularia racemosa) emitiram raízes adventícias para sobreviver às novas condições, enquanto os poucos exemplares de mangue vermelho (Rhizophora mangle) mostram lenticelas deslocadas para a parte emersa das ramificações do caule. Na lagoa da Conceição, uma barragem pouco acima da foz produziu alterações de vazão que se refletiram na foz. Atualmente, ela não consegue se manter aberta em caráter permanente. O manguezal que se desenvolveu na parte baixa do rio está sob estresse com a lâmina d’água oscilando lentamente. Além do mais, a dulcificação da água favoreceu a entrada de espécies oportunistas e concorrentes.

O caso mais radical neste trecho da costa não entrou na presente lista. Trata-se da lagoa de Maimbá, uma extensa lagoa costeira cheia de meandros que, segundo informações de um morador bastante idoso, tinha comunicação permanente com o mar e, por isso, abrigava um manguezal nas proximidades costeiras. Para obter água doce, a empresa de mineração Samarco construiu um sistema de bueiros permitindo que apenas a água da lagoa vertesse para o mar, bloqueando a água salgada das marés. A lâmina d’água tornou-se espessa e estável por longo período. O manguezal pereceu e espécies vegetais resistentes à água doce invadiram a lagoa. Mas mesmo para estas, como é o caso do algodoeiro-da-praia (Hibiscus pernanbucensis), foi necessário disparar mecanismos de adaptação. Vários exemplares desta espécie apresentam raízes adventícias, a exemplo do mangue branco e da siribeira sob estresse.

Para todos os manguezais do Brasil, o futuro é sombrio. Ele não deixaria, portanto, de ser sombrio para os que passamos em revista neste artigo. Estudar sua história, demarcar suas áreas originais da maneira mais aproximada possível, remover as construções erguidas em seu âmbito, sustar o despejo de resíduos líquidos e sólidos, promover a sua restauração e revitalização com aumento da biodiversidade… tudo parece uma quimera. Edgar Morin tornou-se pessimista por causa dos rumos seguidos pela humanidade. Contudo, ele não se deixa vencer, sempre confiando num acaso modificador, num acontecimento imprevisível que possa construir um outro caminho para que os seres humanos sobrevivam ao nosso modo ecologicamente insustentável de civilização. Penso como ele.

  • Arthur Soffiati

    Arthur Soffiati é professor do Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional/UFF e Doutor em História.

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