Reportagens

Avis Rara – com Alceo Magnanini

Magnanini é do tempo em que o serviço público funcionava e trekking se chamava excursionismo. Durante 60 anos ele trabalhou para proteger a natureza do país.

Carolina Elia · Marcos Sá Corrêa · Manoel Francisco Brito · Lorenzo Aldé ·
4 de fevereiro de 2005 · 20 anos atrás

No Brasil de hoje, servidor público que tem prazer em cuidar do bem comum é uma espécie em extinção. O Eco encontrou uma raridade dessas, o geógrafo Alceo Magnanini. Ele é das antigas – trabalha para governos há 60 anos – não fala em parar e ao longo desse tempo testemunhou crimes ambientais que até o diabo dúvida. Como a decisão do Ministério da Saúde de combater a malária na Amazônia derramando 200 toneladas de DDT sobre a floresta. Ou o fiasco de tentar extinguir o mosquito transmissor da doença em Minas Gerais derrubando toda mata que ficasse a menos de 3 km das cidades do estado, mesmo as ciliares, nas margens dos rios. Tudo porque ouviu-se dizer que o raio de ação do mosquito era de 2,5 km. Decisões precipitadas como essas, tomadas com base em orelhadas, custaram a natureza em lugares como Paraty e varreram o mato na Barra da Tijuca, no Estado do Rio. Excursionista da época em que nem se tinha idéia sobre o que era isso e os mantimentos eram carregados em potes de vidro, Alceo descreve um Brasil que sumiu para dar lugar a estradas e arranha-céus. Ele reconhece que dificilmente poderia ter sido diferente, mas teme a velocidade com que o homem avança para cima da natureza. Nesse ritmo, ele acha que um dia ela acaba.

Você é carioca?

Alceo – Sou do centro da cidade de São Paulo, sou paulistano da gema, mas vim para o Rio muito cedo, com 8 anos, em 1935. Vim com a família toda e desde então nunca mais saí do Rio porque acho que aqui é mesmo um paraíso ambiental.

Hoje em dia, qual é o seu grande choque ambiental nesta cidade?

Alceo – A Barra da Tijuca. Na década de 40 você chegava lá a pé, porque não tinha condução até a Barra, atravessava uma pontezinha de madeira e não tinha mais nada dali até o Recreio dos Bandeirantes a não ser restinga. Nós andávamos por dentro da restinga, que era toda intercalada por lagoas. Tinha tantas aves, inclusive guarás. A gente chegava pelo meio, pisava dentro da água nas lagoas e todos aqueles pássaros saíam voando, porque eram todas de vôos migratórios. Hoje em dia você passa ali de carro a 140 km/h e nem vê mais. O contraste é brutal. Mas isso aconteceu em outras áreas. Copacabana, por exemplo, cheguei a ver casas com coqueiros e tudo na beira-mar. Hoje em dia o que você encontra na orla é um enorme paredão de concreto. Isso também choca muito.

Como é que você virou ambientalista?

Alceo – Quando eu vim para cá eu nem pensava em meio ambiente. Quando estava para me formar veio aquele velho dilema, você vai querer ser o quê? Não tinha nenhuma preferência. Sempre gostei muito de aviação, mas não sei porque ouvi falar que tinha a Escola Nacional de Agronomia, que era aqui no Rio, na Praia Vermelha. Aí pensei que esse negócio de aproveitar plantas e bichos seria bom e fiz o curso. Era ciência pura, zoologia mesmo, botânica mesmo.

Foi lá que você virou ambientalista?

Alceo – No curso, lá para 46, conheci um camarada chamado Fernando Segadas Vianna, que foi professor da UFRJ. Ele tinha um grupo amador de excursionismo chamado Falcões que todo sábado e domingo caia no mato para andar por aí. Nunca tinha feito, mas embarquei na idéia e foi quando eu desenvolvi uma maior percepção da ecologia. Mas comecei a trabalhar com ecologia quando virei funcionário do Conselho Nacional de Geografia, onde fui convidado para desenvolver a área de biogeografia, que é muito próxima à ecologia.

Tinha bons equipamentos para excursionismo no Brasil?

Alceo – Tínhamos aquelas lonas pesadíssimas, daquelas de caminhão, que a gente levava nas costas. Subíamos a Serra dos Órgãos e a Serra da Gávea com 30 a 35 quilos no lombo.

E o que vocês levavam?

Alceo – A comida mais condensada era leite condensado e a embalagem era de vidro. Naquela época não tinha nada de plástico e as comidas eram todas assim. Arroz, por exemplo.

Vocês tinham o cuidado de recolher o lixo de vocês?

Alceo – Eu já tinha a preocupação em proteger as coisas, mas o meu objetivo era conhecer a flora e a fauna. Lembro que a gente coletava borboleta para coleção. Mas havia este gosto pela natureza, por preservar as coisas boas como eram, evitar que os camaradas derrubassem as matas quando a gente cruzava com eles.

Você passou quanto tempo no serviço público?

Alceo – Ainda estou ativo no serviço público porque sou assistente do presidente do Instituto Estadual de Florestas, mas comecei em 1946. Sou funcionário público há mais de 60 anos e só possuo cinco coisas: uma casa na Tijuca e meus 4 filhos.

Você deve ter testemunhado absurdos na área ambiental.

Alceo – Teve a reunião de Estocolmo, em 1972, onde o Brasil fez um papelão. Era a primeira conferência mundial sobre o homem e a biosfera e foi nomeada uma comissão interministerial para elaborar o relatório que o Brasil apresentaria na conferência. Na época eu era diretor no Instituto Brasileiro de
Desenvolvimento Florestal e cuidava do departamento dos impactos nacionais e da conservação da natureza. Ao mesmo tempo, era diretor-executivo da Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza. Então fiquei responsável na comissão por tudo que fosse relacionado a fauna e flora. Lá pelas tantas, o representante do ministério da saúde disse que estavam fazendo um programa excepcional de combate à malária na Amazônia e que já havia distribuído pelos igarapés mais de 200 toneladas de DDT.

Eles realmente jogaram 200 toneladas de DDT sobre a Amazônia?

Alceo – Jogaram. Eu olhei para ele e quando perguntaram se alguém queria se manifestar eu pedi a palavra e lasquei. Dei uma aula sobre DDT e as conseqüências para a flora e a fauna da Amazônia e sobre a inutilidade de se utilizar 200 toneladas de DDT para se matar mosquito. O DDT foi um recurso excepcional para se matar piolho durante a guerra e só, depois da guerra acabou este negócio, é uma coisa completamente superada e combatida no mundo. Afirmei que não assinaria o relatório brasileiro se aquele texto fosse incluído. Resultado: disseram para eu não me meter na área de saúde e poucas semanas depois fui afastado da comissão

Conta a história do Mário Pinotti.

Alceo – Foi durante o governo Juscelino, o Serviço Florestal do ministério da Agricultura iniciou uma campanha de educação florestal, na época não havia educação ambiental, e eu fui nomeado secretário-executivo desta campanha. Foi bem legal, contamos com o total apoio do Assis Chateaubriand e ministros de diversas pastas participaram. Em uma reunião com Juscelino, quando a capital ainda era no Rio, coloquei em cima da mesa dele o mapa que eu havia preparado dos remanescentes florestais no Brasil. Ele olhou o disse: ”Agora eu quero saber sobre Minas Gerais”, e eu disse: “Minas Gerais, senhor presidente, é a caixa d´água do Brasil, mas é uma caixa d´água furada porque isso que o senhor está vendo aqui foi a Zona da Mata não é mais”, e ele disse que estava muito interessado nisso e aí o Mário Pinotti, que estava do lado dele, disse que queria se incorporar nesta campanha porque tinha cometido um pecado do qual estava arrependido. O sacana, assessorado devidamente e amparado por um dos maiores ecologistas do Brasil que trabalhava no Instituto Oswaldo Cruz nessa ocasião, soube que os mosquitos transmissores da malária tinham um raio de ação de 2,5 km. Então eles pensaram que se terminasse com a mata ao redor da cidade não teria mais malária no centro urbano porque o mosquito morreria antes de chegar lá. Resultado, eles cortaram em todas as cidades e vilas do Sul e Sudeste do Brasil mais de 3 km de raio de mata ao seu redor com o apoio do ministério da saúde. Eles acabaram criando um desequilíbrio ecológico tremendo porque mataram os inimigos dos mosquitos e provocaram uma maior incidência da malária.
Qual foi o melhor governo para o meio ambiente no Brasil?

Alceo – Ainda está por vir. Todo mundo estava com uma esperança maravilhosa na Marina da Silva e ela acabou sendo o último vagão de um trem onde lá na frente está o Ministério da Fazenda que vem puxando tudo. Não existe política nenhuma, pode ter no papel, mas não há uma política nacional de meio ambiente porque as coisas são executáveis de acordo com as pessoas e não com as instituições. Do ponto de vista ambiental, a ditadura Vargas foi boa porque alguns elementos deram bons conselheiros. O primeiro código florestal é do tempo de Getúlio ditador, a criação dos parques nacionais também. Já o Juscelino criou sete parques nacionais, sem querer, mas criou algo. Mas uma vez ,em uma palestra na costa oeste americana, já como ex-presidente, lhe perguntaram o que ele tinha feito a respeito da conservação da flora e da fauna brasileira. Ele respondeu que no Brasil nós estávamos preocupados era com arroz e feijão e não com esse negócio de flora e fauna. Ele poderia ter dito que criou 7 parques nacionais.

O episódio da biblioteca do Jardim Botânico também foi no governo JK?

Alceo – O Jardim Botânico era mais antigo que o ministério da agricultura, era do tempo do reinado e foi adquirindo certo acervo de livros raríssimos principalmente sobre botânica. Quando foi criado o Serviço Florestal, o Jardim Botânico ficou subordinado a ele e quando o Serviço Florestal foi transferido para Brasília recebi ordem de mandar a metade da biblioteca para a nova sede. Tentei argumentar que um acervo como aquele não se separa, que montassem uma nova biblioteca lá, mas não adiantou. Decidi que os que fossem sobre flora ou botânica ficariam no Rio e os que fossem sobre parques nacionais, reservas biológicas ou sobre assuntos florestais iriam para Brasília. Foi com o coração partido que vi aqueles caminhões levando os livros para o Distrito Federal. O pior é que logo em seguida a biblioteca da capital pegou fogo, porque o Serviço Nacional de Informação ficava no primeiro andar do prédio e houve queima de arquivo. O fogo lambeu todo o acervo do Serviço Florestal. Lembro que tinha uma coleção americana maravilhosa sobre os parques nacionais, apesar de que pouca gente ia a biblioteca.

O Patrimônio Nacional é muito maltratado no Brasil?

Alceo – Uma vez um cara veio me perguntar por que eu detive mais de 5 mil peles de onça em Mato Grosso. Numa apreensão só, estava misturada com couro de vaca num carregamento de trem. “O senhor deteve esta carga, não pode fazer isso, está impedindo o progresso”. Eespondi que as peles não só tinham sido apreendidas como infelizmente seriam queimadas porque se fossem colocadas à venda iriam incentivar o comércio ilegal. Eu já apreendi 50 quilos de asas de borboleta no Cais do Porto, você já pensou o que é isso? Sendo que o responsável pela carga era um naturalista do Museu Nacional.

Você viu alguma coisa acabar?

Alceo – Você tinha uma reserva biológica em Jacarepaguá, uma área muito grande e que era maravilhosa e foi extinta pelos nossos ilustres Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, e eles acabaram com a reserva biológica que foi criada por lei. Mas agora a pior área é daqui até Paraty, eu conheci esta área sem a BR-101. Eu lutei contra o DNER por causa do traçado da BR-101. Perto de Itaúnas, no norte do Espírito Santo, testemunhei o corte de 30 mil hectares de mata. Com o vento seco, se formavam aqueles cogumelos imensos, tipo o cogumelo da bomba atômica, que se via a quilômetros de distância no horizonte.

30 mil hectares é um Parque de Itatiaia inteirinho.

Alceo – E tinha áreas ali do Espírito Santo, indo para o parque do monte Pascoal pela BR-101, em que você encontrava serrarias de 100 em 100 metros com milhares de troncos cortados: jequitibás, jacarandás da Bahia, toras cortadas. Em alguns lugares eu vi, tenho até uma fotografia, uma cerca feita com troncos de árvores e cada tronco não tinha menos de 30 cm de diâmetro. Uma cerca de quilômetros e para quê? Boi, pasto.

Está em algum lugar que a Amazônia foi ocupada pela pata do boi.

Alceo – Por causa dessas políticas do tipo a marcha para o oeste que me chamaram uma vez no Ministério da Agricultura. Eu estava trabalhando no conselho de geografia e me chamaram para dar um parecer sobre o traçado da Brasília-Belém e da Transamazônica. Eu falei: “ Senhor ministro, o traçado já está feito para estrada, vocês vão utilizar a parte agrícola e vocês me perguntam sobre a área florestal. Ora ela vai ser tirada pra se construir a estrada.” Eles diziam que iam dar incentivos para se replantar a floresta, mas era tudo fábula. O mais racional seria ter feito uma análise dos solos das diversas regiões e depois interligar os melhores solos com a rodovia, estabelecendo agrovias. Mas o traçado foi determinado sem estudo nenhum. E nessa ocasião o general Pinto Leão escolheu propositalmente a maior árvore da região pra começar a Brasília-Belém. Cortaram ela toda e colocaram um trator em frente para o presidente da república derrubar. Só para exibicionismo. Também tenho foto disso. E repetiram a história com a Transamazônica, onde escolheram a melhor árvore, a mais alta. Acabou que uma dessas árvores caiu no próprio Pinto Leão, que morreu esmagado.

O que fazer para injetar a conscientização ambiental nos órgãos públicos?

Alceo – Eu acredito em se fazer carreira. Antigamente, no Banco do Brasil, o cara entrava como boy e ia subindo na empresa até ser diretor. Não podia ser diretor antes de passar por toda aquela carreira porque assim se conhecia a fundo o órgão. Mas em várias instituições públicas não funciona assim. Uma vez, um garotão foi convidado pelo senhor ministro da Agricultura, que era muito amigo dele, para ser diretor do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal. Um dia ele me chamou na sala dele para explicar o que era o “ lance” de parque florestal e “esse negócio” de espécie ameaçada. Fui lá para dar uma aula de história natural ao presidente do IBDF, é o fim da picada.

Você participou da criação da Fundação Estadual de Engenharia de Meio Ambiente, a Feema?

Alceo – Em 1972-1973, no estado do Rio de Janeiro não existia nada em respeito ao meio ambiente. A Feema foi um órgão pioneiro porque juntou tudo sobre proteção, conservação da natureza, meio ambiente, poluição em um órgão só. Nos primeiros 4 anos, a Feema desenvolveu uma ação que chegou a ter um renome internacional e nacionalmente ela influiu no Rio Grande do Sul. Eu fui fazer palestras no Espírito Santo e em Santa Catarina para dizer como funcionava esse negócio porque era um modelo, até para São Paulo. A questão da fumaça dos ônibus, foi a Feema que iniciou este sistema de multar quem poluía. Ela fez também uma série de propostas para a legislação estadual reforçando muito a parte ambiental.

E quando tudo começou a degringolar?

Alceo – Exatamente 4 anos depois da Feema ser criada, porque mudou o governo. Passou para o Chagas Freitas, governador eleito que entrou modificando tudo, entrando assim a fundo no esquema da corrupção e venda de interesses, porque o político pega um negócio desse e é claro que a partir dali é ele quem vai dominar. Alguns técnicos continuaram por lá, mas muitos saíram. Alguns foram dispensados, alguns resistem até hoje e muitos entraram no esquema.

Você fez a sua parte pela defesa do meio ambiente?

Alceo – Considero que fiz muita coisa, mas a minha grande infelicidade é ver que o que a gente faz de positivo não tem a mesma velocidade do que é feito pela turma do mal. Antigamente, um cara demorava para derrubar um hectare de mata. Hoje em dia eles colocam tratores com tecnologia avançadíssima que derrubam 100 hectares em 1 hora. Então a velocidade com que se derruba e que se destrói é infinitamente maior do que a das nossas armas para combater essas atividades.Esta velocidade me preocupa. Teve um presidente que se virou para mim e disse: “a tecnologia resolve tudo”, e eu disse: “exatamente, nós agora vamos aprender a comer parafuso.” O cara é um grão fino, minúsculo, dentro de um planeta minúsculo, numa galáxia imensa e acha que pode tudo, meu Deus.

A ambição é uma pedra no caminho?

Alceo – Se o Brasil fosse só uma faixa da Bahia até o Rio Grande do Sul já seria o suficiente para se produzir tudo que o país precisa. Agora vem aquela história da marcha para o oeste para se conquistar novas áreas, novas áreas pra quê? Isso que é desenvolvimento econômico? Nós não temos condição de administrar tanta terra e nem precisamos. Tendo o litoral bem administrado , poderíamos até fechar e não deixar ninguém entrar na Amazônia. Mas as pessoas acham que é preciso colonizar a Amazônia antes que ela seja invadida por estrangeiros. È a ameaça da famosa cobiça internacional, mas teve a cobiça pela Mata Atlântica e até hoje nunca ninguém falou nisso.

  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

  • Lorenzo Aldé

    Jornalista, escritor, editor e educador, atua especialmente no terceiro setor, nas áreas de educação, comunicação, arte e cultura.

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