Como muitos biólogos que cresceram na era pré-internet, os livros que li durante a infância foram uma tremenda influência sobre minha formação e escolha profissional. Tenho memórias muito boas de uma coleção chamada Os Bichos, da editora Abril, e ainda tenho a edição de 1972 na minha estante. Sei que muitos colegas da minha geração também foram capturados por esses mesmos livros.
Além de dar um gostinho sobre a diversidade da vida, essa coleção teve o efeito irreversível de me incentivar a viajar para ver todas aquelas espécies. E ao longo do tempo tenho colecionado minha lista de bichos de Os Bichos. Sempre há um gosto especial em satisfazer um antigo desejo de infância.
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Uma das espécies que me atraía ao folhear aquela enciclopédia era o Gypaetus barbatus, conhecido por abutre-real ou abutre-barbado. Trata-se de uma ave de rapina com envergadura entre 2,3 e 2,8 metros (grande!), que se alimenta de ossos (!!!), tartarugas (!!!) e que, na coleção, aparece jogando um carneiro no abismo para comê-lo e perseguindo, com intenções gastronômicas, um moleque assustado enquanto um cachorro com cara aparvalhada corre atrás.
O abutre-barbado ou lammergeier (como é mais conhecido entre os bird-watchers) é um parente tão próximo dos abutres do Velho Mundo quanto dos gaviões, constituindo um grupo evolutivo distinto juntamente com o “abutre”-egípcio (Neophron percnopterus). Ambos têm em comum a ausência da calvície característica dos abutres “verdadeiros”.
O abutre-barbudo é um bicho das montanhas. Ocorre em diferentes cadeias da Espanha e vai até o Tibete e oeste da China. Também vive nas montanhas Atlas do norte da África, nos picos da Etiópia e nos da África do Sul. Estes abutres já foram registrados vivendo a 7.300 metros de altura no Evereste, onde devem aproveitar os alpinistas que não conseguem voltar para casa.
Refeição indigesta
A dieta desta ave é peculiar por ser composta entre 85 e 90% por ossos, mais particularmente a proteína que os forma e o tutano de seu interior. É a única ave especializada neste alimento.
Essa dieta implica em um estilo de vida econômico, onde planar nas montanhas consome pouca energia e em uma reprodução lenta. A espécie tem um filhote a cada dois anos após a maturidade sexual ser atingida, que ocorre aos cinco anos de idade. Também é longeva, pode passar dos 40 anos. No seu comportamento sexual destaca-se ser comum que uma fêmea esteja pareada com dois machos, uma versão alada de Dona Flor. Ambos os machos ajudam a criar o único pimpolho até que chega à idade de voo.
O estilo de vida peculiar exige espaço. Os abutres-barbudos ocorrem em baixas densidades, o que somado ao impacto humano tornou-os uma espécie rara. Estima-se que existam menos de 10 mil exemplares no planeta, o equivalente ao número de pessoas em um ou dois quarteirões de São Paulo.
(…) a figura do garoto perseguido por um “abutre-real” com sangue nos olhos é história.
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O abutre-barbudo chega até a desprezar a carne de uma carcaça. Nesse caso, espera que outros abutres a limpem para então engolir os ossos que cabem na sua bocarra, muito maior do que parece na foto. Daí, seus ultra-elásticos esôfago e papo entram em ação unindo maquinário e química eficientes para digerir o alimento.
Ossos grandes demais, como um fêmur, exigem uma técnica especial. A ave segura o petisco de até 4 quilos (ou quase o seu peso) com os pés e decola. Em seguida, procura uma superfície dura onde larga o osso, quebrando-o. Então, é só descer e comer os caquinhos e o mocotó. Essa técnica pode levar um tempo para ser dominada por aves jovens, que chegam a precisar de 7 anos de aprendizado para descobrir como e onde mandar o projétil.
Tartarugas são um petisco especial, com as quais os abutres utilizam a mesma técnica – um uso inteligente da topografia como arma. Águias também agarram uma tartaruga e a jogam das alturas, caso da imperial (Aquila helíaca). Até hoje não se sabe ao certo se o poeta grego Aeschylus (525/524 BC – c. 456/455 B.C.), autor de Prometeu Acorrentado e outros clássicos, foi morto por uma tartaruga que caiu do céu ou se foi vítima de uma águia ou abutre-barbudo em um momento “ooops, errei” (embora muitos duvidem da história).
Abutres-barbudos podem usar suas garras (lembre-se, eles não são abutres típicos) para alçar outros tipos de presas vivas e lançá-las precipício abaixo. Há registros de hiraces, lebres, marmotas e lagartos-monitores mortos dessa maneira, e também de cabras-montesas, camurças e antílopes que caíram abismo abaixo com um empurrão, ou assustados por essas aves.
Imagine que você está tranquilo na crista da montanha, pensando na vida, e de repente um bicho desses dá um rasante ou mesmo uma asada em você. Um susto, um passo em falso e você vira almoço. Dizem as lendas que isso já aconteceu com pessoas, mas não há casos fidedignos registrados e os pesquisadores dizem que, se algo assim ocorreu, foi acidente. Tipo, primata e abutre esbarram-se no alto da montanha, a parte sem asas leva a pior.
Ou seja, na coleção Os Bichos, a figura do garoto perseguido por um “abutre-real” com sangue nos olhos é história.
Caçados e famintos
Tempos mais civilizados resultaram na apreciação dos abutres-barbudos como as criaturas espetaculares que são, e não os monstros da lenda (…)
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Tempos mais civilizados resultaram na apreciação dos abutres-barbudos como as criaturas espetaculares que são, e não os monstros da lenda, e a perseguição foi reduzida. Embora sempre haja um cretino disposto a balear estes animais.
A partir de 1986, aves nascidas em cativeiro começaram a ser reintroduzidas nos Alpes da Áustria, França, Itália e Suíça, resultando no reestabelecimento de populações reprodutivas por lá. As reintroduções continuam até hoje, tocadas por ONGs como Vulture Conservation Foundation e estão reestabelecendo populações em regiões como a Andalusia, na Espanha.
É bom lembrar que reintroduções estão sendo usadas, com muito sucesso, para reestabelecer populações de outros abutres na Europa. Sorte desses bichos. Ao contrário do Brasil, por lá não existe a rejeição a reintroduções comum entre os nossos “especialistas” sem experiência prática.
Espétaculo deslumbrante
No Kilimanjaro, na Tanzânia, finalmente consegui observar o meu primeiro exemplar de abutre-barbudo, enquanto escalaminhava a montanha. Contarei esta história em outra coluna. Mas a melhor experiência foi mesmo em janeiro deste ano, visitando o Parque Nacional Ordesa y Monte Perdido, nos Pirineus espanhóis, onde a população original está aumentando graças à proteção e manejo, que inclui o uso de “restaurantes”, locais onde se deposita as carcaças de animais mortos naturalmente.
Ali pude ver o resultado de um programa de conservação eficaz e como técnicas mão na massa, como suplementação alimentar, ajudam a restabelecer espécies ameaçadas.
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Janeiro não é mesmo a temporada turística por lá e além das cidadezinhas vazias e pouquíssimo movimento, há estradas bloqueadas pela neve. Um dia, eu e minha esposa nos arriscamos na estradinha para a garganta de Escuain, que nos haviam informado estar fechada. A ideia era chegar ao lugar considerado o melhor da Europa para ver os quebrantahuesos, como os chamam por lá.
Não havia neve. Já perto do mirador de onde se abria um panorama incrível, avistamos o primeiro quebranta. E depois outro, e outro, e outro… Nós dois ficamos lá de boca aberta e, depois de recolher o queixo no chão, começamos a fotografar e observar o que acontecia através de nossos binóculos.
Ao fim, deveria haver pelo menos 20 abutres-barbudos e pelo menos três vezes esse número de grifos-comuns (Gyps gyps) circulando e eventualmente aterrissando no que, depois descobrimos, era uma carcaça colocada perto da estrada pelos funcionários do parque. Eles aproveitaram a reunião das aves para contá-las e checar a identidade de cada uma, já que boa parte carrega rádio-transmissores. Gentilmente, pediram-nos que respeitássemos a distância para que as aves pudessem comer.
Ali pude ver o resultado de um programa de conservação eficaz e como técnicas mão na massa, como suplementação alimentar, ajudam a restabelecer espécies ameaçadas. Tudo isso mantendo o devido monitoramento e sem esquecer o bom trato com os turistas. Foi de ficar pasmo ver o céu cheio dessas aves enormes e espetaculares, algumas carregando os ossos que iriam quebrar mais adiante.
Talvez algum dia o mesmo manejo ativo traga araras, mutuns, harpias, jacutingas, papagaios e outros bichos extintos de volta aos nossos parques nacionais. Talvez.
Autor deste blog, Fabio Olmos é biólogo e doutor em zoologia. Tem um pendor pela ornitologia e gosto pela relação entre ecologia, economia e antropologia. Seu último livro, sobre ecossistemas brasileiros e conservação, é Espécies e Ecossistemas. |
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