Análises

A invasão dos tucanos tocos: uma hipótese

Com boa adaptação a áreas abertas e uma dieta eclética, que varia de outras aves a uma variedade de frutinhos, ele prospera nas cidades

Marcos Rodrigues ·
2 de maio de 2013 · 12 anos atrás
Agrupamento de tucanos toco. Eles são vorazes e bons dispersores de sementes. Foto: Lilian M. Costa.

Acordo bem cedo no dia do meu aniversário com o canto de quatro tucanos (Ramphastos toco) no alto da velha sucupira branca (Pterodon emarginatus) de 12 metros que sombreia o jardim. O som é um inconfundível roncar baixo e profundo em forma de trinado. Eles continuam roncando por vários minutos até perceberem minha presença insólita, de binóculos em punho e pijamas. Partem em revoada, naquele voo batido e ofegante, intercalado por um descaso rápido de asas e a inevitável caída de altura, até que as asas comecem a bater novamente. Tucanos não dominam a arte de planar, característica compartilhada por seus primos mais próximos, os pica-paus.

Os tucanos, na realidade, pertencem a um grupo de 34 espécies, a família Ramphastidae, de 6 gêneros (Ramphastos, Bailonius, Selenidera, Aulacorhynchus, Andigena, Pteroglossus). Todas estas espécies são endêmicas da região Neotropical, e todas elas restritas às florestas tropicais, com exceção desta que visita meu jardim, a Ramphastos toco. Ele é popularmente conhecido por tucanuçu ou tucano toco, e é também a maior espécie de tucano, podendo pesar 550 gramas. Seus hábitos alimentares são bastante heterodoxos, pois come de tudo um pouco. O tucano toco se aproveita da explosão de cigarras que acontece nas áreas urbanizadas dentro de toda a região do Cerrado; engole ninhegos vivos de bentevis (Pitangus sulphuratus) que abundam nas cidades durante a primavera; engolem coquinhos de palmeiras nativas como o jerivá (Syagrus romanzoffiana) e exóticas como a palmeira-imperial (Roystonea oleracea), que são plantadas como ornamentais nas grandes avenidas e condomínios residenciais do Brasil afora. Assim, o tucano toco é ao mesmo tempo um predador de aves indefesas, um controlador de insetos e um dispersor de sementes de plantas.

Saio de carro para o trabalho e tenho que dirigir por alguns quilômetros numa estrada que cruza uma matriz de fazendas de gado entremeada por condomínios residenciais semiurbanos, galpões de fábricas e aglomerados populacionais. Durante a viagem, um par de tucanos toco cruza os céus. Já no meu escritório, um colega me vem dizer que tem visto tucanos lá na sua terra, no interior, e quer saber se é normal. O telefone toca e uma repórter quer que eu dê uma entrevista sobre um casal de tucanos que nidificou num prédio abandonado próximo ao centro da cidade. Depois do almoço, um aluno me aborda para me reportar que vira um tucano em frente à mata da reitoria. Outro me passa um e-mail dizendo que está acompanhando um incrível ninho de tucanos feito sobre uma palmeira morta na frente da casa dele. Todos estes eventos e relatos intercalam-se no tempo e tornam-se cada vez mais frequentes. Afinal, há uma invasão de tucanos?

Contando tucanos

“…no Brasil não temos um programa de monitoramento populacional de aves em grande escala, como existe, por exemplo, nos EUA o Christmas bird count, na Inglaterra o Breeding bird survey e na Austrália o Australia bird count”

Recorro às minhas velhas e carcomidas cadernetas de campo, onde relato compulsivamente as observações mais banais que eu jamais pensaria que um dia se tornariam úteis. Assim, coloco em gráficos o número de observações que fiz de tucanos toco ao longo dos últimos dez anos. O primeiro é referente ao número de observações feitas ao longo da rodovia Fernão Dias, sentido Belo Horizonte-São Paulo e vice versa. Os dados aparecem muito esparsos e não mostram um padrão reconhecível. O segundo mostra as observações que fiz no campus da Universidade Federal de Minas Gerais, onde faço levantamentos periódicos de aves com ajudas dos alunos durante todo o ano letivo (portanto, os meses de dezembro a fevereiro praticamente não foram amostrados). O terceiro, e mais consistente, refere-se a levantamento de aves feito no vale do Rio Cipó, desde 1999, com metodologia mais específica e padronizada.

Os gráficos mostram que há uma leve tendência de crescimento de observações da espécie ao longo destes anos, o que seria uma evidência de que existe um crescimento populacional de tucanos toco. Depois de uma pesquisa no site de observadores de aves, o WikiAves, faço mais um gráfico para entender o suposto crescimento populacional da espécie.

As hipóteses

Foto: Lilian M. Costa
Foto: Lilian M. Costa

A evidência concreta para se afirmar que existe um aumento populacional de tucanos toco nos vinte últimos anos são fracas, e principalmente por um motivo: no Brasil não temos um programa de monitoramento populacional de aves em grande escala, como existe, por exemplo, nos EUA o ‘Christmas bird count’, na Inglaterra o ‘Breeding bird survey’ e na Austrália o ‘Australia bird count’, entre outros. Assim, a maior evidência para o crescimento da população de tucano toco no sudeste do Brasil ainda são os relatos de alunos, colegas, jornalistas e observadores de aves. Eu assumo aqui que há um aumento populacional do tucano toco em várias áreas do sudeste do Brasil, e uso argumentos coletados na cidade de Belo Horizonte para esboçar uma hipótese sobre as prováveis causas deste fenômeno.

1 – Desmatamento e aproveitamento de mais áreas.

O tucano toco é a única espécie adaptada à vida em áreas abertas de uma família de aves florestais. A expansão do desmatamento, tanto no centro-oeste quanto no sudeste do Brasil, estaria aumentando o habitat para esta espécie.

2 – Abundância de recursos alimentares – ninhos, cigarras, coquinhos, cevas.

O tucano toco tem dieta generalista, omnívora, isto é, se alimenta de vários itens, tão díspares como ninhegos de outras aves quanto invertebrados e frutos exóticos. Não há como negar a grande expansão populacional de sua presa favorita nas grandes cidades, o bentevi, que nidifica sobre transformadores de energia dos postes de iluminação pública. Observações de tucanos toco predando estes ninhos são cada vez mais frequentes no anedotário popular.

Durante a primavera, as cidades do centro-oeste e sudeste são tomadas pelo canto das cigarras, sendo a mais comum e maior a Quisada gigas. Estas cigarras, com ampla distribuição geográfica se adaptaram muito bem às cidades. Elas também atacam o cafeeiro, sendo até mesmo consideradas uma praga na região cafeeira do Sul do estado de Minas Gerais e Nordeste do estado de São Paulo. A Quisada gigas é atualmente um dos maiores invertebrados urbanos, chegando a 6 centímetros, o que fornece proteína em abundância para variadas espécies de aves, inclusive o tucano toco.

Diferentes espécies de palmeiras foram adotadas pelos urbanistas e administradores públicos para enfeitarem os jardins e avenidas de grande parte das cidades do Brasil. Isto se deu devido à facilidade de reprodução destas plantas; seu crescimento rápido; sua facilidade de ser translocada mesmo quando já atinge tamanho grande; o enraizamento não danificador de calçadas; o crescimento longilíneo que pouco atrapalha a fiação pública; e, finalmente, devido à sua beleza que nos remete a paisagens tropicais ensolaradas.

As espécies mais comercializadas são o jerivá e a palmeira imperial. O jerivá é palmeira nativa que originariamente ocorria na Mata Atlântica e matas ciliares do Brasil central. A palmeira imperial é originária das Antilhas, e as primeiras mudas que surgiram no Brasil são as famosas palmeiras plantadas por Dom João VI no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. O tucano toco é um ávido comedor desses doces coquinhos, que abundam durante todo o ano. Entre 75 fotos postadas no WikiAves de tucano toco nas cidades de Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Ubatuba, 20 foram feitas enquanto indivíduos se alimentavam dos frutinhos da palmeira imperial. O tucano toco também se alimenta de outras espécies de frutos exóticos usados na decoração de praças públicas.

Colocar restos de frutas e sementes nos jardins e quintais das casas para atrair aves é um dos comportamentos que mais crescem nos últimos anos. Não existem dados sobre isso, mas os relatos são inúmeros.

As frutas mais usadas nestas cevas urbanas são o mamão, a banana e a maçã. O tucano toco é um grande apreciador de mamão, e há relatos de que se aproveita eventualmente deste recurso. Eu prevejo mais observações de tucanos toco se alimentando em cevas à medida que indivíduos aprendam a utilizar este recurso e transmitam a novidade às gerações seguintes.

3 – Aumento de cavidades para nidificação

O número de árvores grandes e com idade avançada aumentou naturalmente nos últimos anos. Em Belo Horizonte, por exemplo, que nasceu num canteiro de obras totalmente devastado, hoje, as poucas praças e jardins públicos da cidade são dotadas de árvores de grande porte e isso se aplica a grande parte das cidades do sudeste e centro-oeste do Brasil, inclusive Brasília. Nos últimos anos, temos assistido a inúmeros casos de tempestades e ventos com intensidade acima da média histórica, possivelmente como resposta às mudanças climáticas que vêm ocorrendo no planeta. Isso causa queda de árvores, e mais do que isso, quebra de galhos grossos, cuja consequência é deixar largas cavidades nos troncos destas árvores. Belo Horizonte vem sistematicamente sofrendo estas quedas e quebras de galhos de árvores todos os últimos verões. Estas cavidades vêm sendo usadas para nidificação pelos tucanos toco, como por vezes já pude observar.

Os fatores listados acima agem em sinergia e devem estar associados ao aumento populacional de tucanos nos grandes centros urbanos do Brasil. É uma hipótese a ser testada. De qualquer forma, este aumento em algumas regiões tem importantes implicações ecológicas. O tucano toco é um predador de aves e como dispersor de sementes. Para muitas regiões já alteradas, onde a maioria das aves que se alimentam de frutos foi localmente extinta, o tucano toco, pelo grande porte, é dos poucos capazes a dispersar sementes grandes que, de outra forma, estão órfãs de seus dispersores.

*Texto editado em 03/05/13 às 18h25

  • Marcos Rodrigues

    Doutor em zoologia pela Universidade de Oxford (UK). Hoje, é professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais.

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Comentários 1

  1. Nadja Simbera diz:

    Oi Marcos, onde você cita "as poucas praças e jardins públicos da cidade" você está incluindo os parques de Belo Horizonte? Poucos cidadãos sabem, mas são quase 80 parques municipais na cidade. Digo quase porque são criados parques a todo o momento e talvez enquanto eu escrevo este comentário tenham criado mais um (risos). Imagino que já tenha conhecimento do artigo "Functional connectivity in urban landscapes promoted by Ramphastos toco (Toco Toucan) and its implications for policy making". Parabéns pelo artigo. Gosto muito de ler seus textos.