Nos manguezais podem ser encontradas centenas de guarás-vermelhos (Eudocimus ruber), cuja presença é erroneamente considerada resultado do controle da poluição pelo pólo industrial de Cubatão, ninhais de socós-caranguejeiros (Nyctanassa violacea), bandos de trinta-réis-reais (Thalasseus maximus) descansando nos bancos de lodo e grupos familiares de gaviões-asa-de-telha (Parabuteo unicinctus) caçando nas ilhas de restinga que pontilham a área. Nos esporões da Serra do Mar que encostam nos manguezais, vivem papagaios-moleiros (Amazona farinosa), gaviões-pombo (Leucopternis lacernulatus e L. polionotus) e gaviões-pato (Spizaetus melanoleucus). Todas estas espécies constam da nova lista de espécies ameaçadas publicada pela Secretaria de Meio Ambiente de São Paulo (Sema/SP).
Há alguns sítios especialmente interessantes que têm rendido muita alegria a observadores de aves e fotógrafos. A área do Rio Piaçaguera (confira no Google Earth com as coordenadas 23.5156S, 46.2341W) é o local onde bandos com centenas de guarás (mais de 500 em abril passado), talha-mares (Rynchops niger), marrecas-toucinho (Anas bahamensis) e uma salada mista de maçaricos migratórios vindos da América do Norte se reúne para procurar alimento e ter onde pousar durante a maré-alta. Este é o sítio onde foram feitos os poucos registros de algumas espécies, como o Colegial (Lessonia rufa) e o maçarico (Calidris himantopus), para todo o estado. Ali também regularmente observamos jacarés e lontras.
Descendo do Rio Piaçaguera para o Rio Cubatão e dali para sua foz, no Canal de Piaçaguera, passamos pela ilha homônima (no Google Earth, confira com 23 54’14″S, 46 22’54″W), onde além dos restos de um sambaqui e de uma das poucas ilhas de restinga, todos os anos se reúne a única colônia reprodutiva de maguaris (Ardea cocoi) reportada para o litoral paulista. Nos baixios de lodo adjacentes, o visitante verá esta e outras aves aquáticas, além de tartarugas-marinhas que se alimentam das algas que crescem nas áreas mais rasas.
Continuando o passeio rumo ao Estuário de Santos, será impossível ignorar o grande banco de lodo no Largo do Caneu, que chega até a Ilha dos Bagres (veja no Google Earth com as coordenadas 23 54’30″S, 46 21’45″W). É um dos sítios tradicionais de monitoramento de aves aquáticas na região e apresenta algumas das maiores concentrações de aves no litoral paulista. Por exemplo, em uma manhã de abril havia ali 390 garças-azuis (Egretta caerulea), 236 guarás (cerca de ¼ da população do sudeste brasileiro), 294 talha-mares etc. Em outra manhã, em maio, estavam ali 589 garças-azuis, 81 guarás, 88 batuíras-de-bando (Charadrius semipalmatus), essas migrantes vindas da América do Norte, 69 talha-mares, 2 gaviões asa-de-telha, entre outras espécies.
Virando a esquina na Ilha os Bagres o visitante adentra as águas rasas do Largo de Santa Rita (no Google Earth, insira 23 54’27″S, 46 20’18″W), pontilhada por montículos expostos pela maré baixa que, quando examinados, se revelam bancos de mexilhões que estão sendo colonizados por plântulas de mangue e, se não forem perturbados, irão se transformar em ilhas arborizadas. Nestes e nos bancos de lodo próximos centenas de aves aquáticas, com destaque para garças-azuis, colhereiros (Platalea ajaja) e biguás (Phalacracorax brasilianus) procuram alimento. Aproximando-nos do morro coberto por florestas, ao fundo podem ser observados tucanos (Ramphastos vitellinus e R. dicolorus), papagaios e gaviões-pombo.
Este é um dos pontos de maior sedimentação em todo o sistema e seria ideal para construir manguezais e bancos de sedimentos utilizando material dragado para manutenção dos canais de navegação do Porto de Santos. Construção de habitats costeiros é rotina em países que enxergam longe e ajuda tanto o meio ambiente como pode reduzir os custos de empreendimentos.
Vale lembrar que, segundo a Sema/SP, dos 131 quilômetros quadrados (Km2)de manguezais que existiam entre Praia Grande e Bertioga, restam apenas 88 km2, graças às indústrias, portos e favelas que ocuparam a região.
O visitante poderá também ver pescadores esportivos fisgando robalos que comumente superam os seis quilos e pescadores artesanais capturando meros, embora esta seja uma espécie criticamente ameaçada e teoricamente protegida por lei (a fiscalização faz vista grossa ao que os “povos tradicionais” da região fazem). Certa vez, encontramos um mero morto que media pelo menos 1,15 m. O pobre peixe provavelmente havia escapado de uma linhada apenas para morrer dos ferimentos recebidos ao engolir o anzol.
UC engavetada, lei desrespeitada
Um dos resultados das pesquisas feitas na região foi a publicação de um livro e de vários trabalhos científicos, devidamente encaminhados ao gabinete da Secretaria de Meio Ambiente de São Paulo. Os estudos também subsidiaram a proposta para criação de uma unidade de conservação, feita no agora longínquo ano de 1994 e engavetada pelo medíocre titular do órgão à época.
Embora a quarentona versão de 1965 do Código Florestal e legislação anexa (inclusive a que protege espécies ameaçadas) teoricamente garantam que manguezais sejam áreas de preservação permanente, sempre há a “porta dos fundos” do “interesse social”, a batida desculpa para justificar a destruição do que deveria ser protegido. Daí a preocupação em dar um status de proteção mais efetivo a lugares como os que descrevi acima.
A Baixada Santista está tendo sua ocupação planejada através de uma interessante iniciativa da Sema/SP, com o Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) da Baixada Santista. Infelizmente, a versão do mesmo que foi aprovada pelo “fórum-representativo-dos-diferentes-setores-da-sociedade” conseguiu a proeza de desagradar tanto ambientalistas como setores técnicos da secretaria ligados à Cetesb, Fundação Florestal e outros, mesmo porque as recomendações dos técnicos foram “democraticamente” ignoradas.
O ZEE, na versão aprovada pelo Grupo Estadual de Gerenciamento Costeiro da Baixada Santista, parece ter sido elaborado desconsiderando todos os estudos realizados anteriormente – incluindo aqueles sobre contaminação industrial – e, pior, sem lembrar que existe uma legislação ambiental em vigor que protege manguezais, restingas e Mata Atlântica. Imagine uma legislação trabalhista que desconsidere que a escravidão é inconstitucional e você pescará o espírito do que estão propondo.
Por exemplo, a minuta atual do zoneamento vê restingas consideradas prioritárias para conservação pelo Biota/Fapesp como sendo destinadas à expansão urbana e prevê a expansão portuária exatamente sobre as áreas de manguezal que descrevi acima (Rio Piaçaguera, Ilha Piaçaguera, Largo do Caneu e Largo de Santa Rita), classificadas “tecnicamente” como “zonas que apresentam a maior parte dos componentes dos ecossistemas primitivos degradada ou suprimida, e a organização funcional eliminada”.
É claro que as aves aquáticas, lontras, jacarés, tartarugas-marinhas, meros, caranguejos etc não sabem que não deveriam estar naquelas áreas. Afinal, o ecossistema teve sua funcionalidade eliminada. Quem acha que estou mentindo pode visitar os locais que indiquei. Abril e maio são bons meses (pouca chuva e os guarás terão retornado de sua área de reprodução).
É óbvio que, do ponto de vista de conservação da biodiversidade, o ZEE tem graves deficiências e quem o elaborou não fez a lição de casa garimpando as informações disponíveis e ignorou mesmo aquelas produzidas por agências do próprio governo paulista.
Como a atual crise financeira mostra, há necessidade de controle sobre a ganância privada para evitar prejuízos coletivos. A cultura brasileira, baseada no princípio do “quem vier depois que se vire”, visível tanto na nossa incapacidade de dar descarga em sanitários públicos como na facilidade em gerar áreas de desastre ambiental (como os 150 milhões de hectares de pastagens degradadas no país), mostra como zoneamentos, planos diretores e ações punitivas são uma necessidade para resguardamos um mínimo de qualidade de vida enquanto tentamos evoluir além da condição de “coacervados” (formas primitivas de vida).
Conselhos, fóruns e companhia ilimitada para deliberar sobre questões ambientais que geram conflitos são instrumentos extremamente interessantes e válidos se o processo respeitar critérios mínimos como, para começar, a obediência à lei. O problema é quando um instrumento que deveria fixar limites a ímpetos predatórios se transmuta em carta branca para a destruição sob a chancela de “decisão da maioria”.
Foi o que aconteceu no ZEE da Baixada Santista, onde o processo foi dominado por setores que parecem desejar mandar a lei às favas e dar à região um futuro estilo Blade Runner (quem passeou pelo pólo de Cubatão à noite ou pela periferia de São Vicente já fez a associação) enquanto mantém apartamentos em locais onde o uso do solo é estritamente regulado, como Paris.
Não surpreende que o ZEE atual parece uma lista enviada a Papai Noel por um desenvolvimentista saído da década de 1970. Este tipo de mentalidade ainda tem muita influência na política e economia regionais. Lembro, em uma palestra no Rotary Clube de Santos, de um expoente do setor imobiliário se declarar indignado pelo embargo do já folclórico Xuxa Water Park em Itanhaem e me perguntando o que eu achava deste “absurdo”. Sem constrangimento, esta pessoa declarou que em outras situações (ele mencionou quais) bastava molhar a mão de alguém, enquanto o Ibama paulista se atrevia a barrar o projeto. Este tipo de posição explica os muitos loteamentos da região que acabaram embargados pelo Ministério Público por “problemas no licenciamento”.
A preocupação com a possibilidade da atual versão do zoneamento se transformar em lei não se deve apenas à necessidade de conservar os preciosos remanescentes de ambientes naturais que coexistem com um dos maiores PIBs regionais do país. Deve-se, também, à necessidade de resgatar a qualidade de vida na região. A Baixada Santista, para não mencionar todo o Litoral Paulista, é uma região saturada devido ao inchaço populacional em uma área naturalmente limitada. Serviços de destinação de lixo, abastecimento, saneamento, segurança e transporte estão no limite ou já o ultrapassaram. Prova cabal é que neste verão todas as praias da região se transformaram em um caldo adubado por esgotos e a água que saía das torneiras do Guarujá (que já foi chique) estava contaminada por coliformes fecais.
Promessas de geração de emprego por empreendimentos imobiliários, industriais e portuários na realidade se traduziram na explosão de favelas onde é armazenado um conveniente exército industrial de reserva. Assisti, durante toda minha vida, como cada nova rodovia, loteamento ou unidade industrial gerou uma favela invariavelmente construída em morros, manguezais, restingas ou margens de mananciais. Argumentar, como dizem os advogados da versão atual do ZEE, que se aquelas áreas naturais mencionadas acima não forem ocupadas por eles, as favelas o farão, é ignorar seu papel decisivo como indutores da própria favelização.
“Desenvolvimentistas” também falam na necessidade de ocupar novas áreas para aumentar a capacidade do Porto de Santos, principal via de escoamento da produção nacional, gargalo de nosso crescimento etc. O problema real do Porto, um dos mais ineficientes do país, é antes resultado da gestão pública por administrações que combinaram indicações políticas e peleguismo sindical do que de entraves ambientais. Listar seus verdadeiros gargalos (como o escoamento terrestre e mão de obra) daria uma enciclopédia.
Antes de repassar para os manguezais o ônus da ineficiência, a gestão do Porto de Santos deveria ser repensada e áreas realmente degradadas utilizadas a plena carga. Estas não são pequenas, como visível na região insular de Santos e na margem oposta do estuário. Uma avaliação ambiental estratégica (feita por equipe técnica isenta) do porto e de empreendimentos-satélite seria desejável, até mesmo para evitar os conflitos que já pipocaram entre empreendimentos existentes e previstos. A privatização do Porto, para sairmos do secular entrave da gestão amarrada à política, mais ainda.
A Secretaria de Meio Ambiente de São Paulo vive o dilema de referendar um instrumento “participativo-democrático” tecnicamente péssimo, ou iniciar novas negociações e promover uma versão que obedeça à lei e respeite as recomendações de seus técnicos e cientistas.
Há interessantes meditações a tirar desta situação. Por exemplo, sobre as limitações do “participativismo” que virou epidemia na gestão ambiental brasileira e comumente tem dado mais poder a interesses privados que ao coletivo. Ou, ainda, insere no processo pessoas desqualificadas que são entraves ambientais. Quem já participou de audiências públicas para criação de unidades de conservação ou conselhos gestores e consultivos, sabe do que estou falando.
A qualidade de vida dos moradores da Baixada Santista e algumas das áreas naturais mais preciosas de São Paulo, para não dizer do bioma Mata Atlântica, estão na berlinda. Cabe à Secretaria de Meio Ambiente decidir se as protegerá, como manda a lei, ou irá abrir a porteira apelando para argumentos conhecidos como “progresso”, “geração de emprego” e “interesse social”.
Veremos qual caminho o governador José Serra e o secretário Xico Graziano irão tomar.
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