Entre abril de 1977 e maio de 1978, duas fêmeas de onças-pintadas e um macho de onça-parda, ou puma, foram aparelhados com coleiras equipadas com rádios-transmissores. Foi a primeira vez em que a telemetria foi usada em felinos no Brasil. Essa técnica, que permite o acompanhamento dos animais aparelhados à distância, sem interferir em seu comportamento, estava em desenvolvimento nos Estados Unidos, em estudos com ursos pardos (grizzly bears) e o puma americano (a mesma onça-parda nossa).
Infelizmente, por uma série de eventos imprevistos, a compra da Fazenda Acurizal não se concretizou e, por um problema econômico/cultural que se repete até hoje, em projetos de estudo da onça-pintada, o projeto teve que ser interrompido em julho de 1978. Duas onças não-aparelhadas foram mortas por empregados da fazenda, por ordem do administrador, supostamente por predação no gado. Com esse tipo de interferência, achamos melhor não continuar o estudo ali. Iniciamos a procura por uma nova área de estudo, e foi apenas em 1980 que conseguimos autorização para retomar a pesquisa na Miranda Estância, no sul do Pantanal, uma fazenda com 248 mil hectares, da família Klabin. Durante esse intervalo, estudamos jacarés e capivaras no município de Poconé, ao longo da então recém-construída Transpantaneira.
Em 1980, Schaller já havia se envolvido em um projeto junto ao governo chinês, para estudar o panda-gigante, animal-símbolo da WWF e emblemático com o movimento mundial para a conservação. Para substituí-lo no projeto na Miranda Estância junto à New York Zoological Society (hoje Wildlife Conservation Society – WCS), foi contratado o biólogo americano Howard Quigley. Entre 1980 e 1984, Howard e eu capturamos e aparelhamos com rádios-colares mais sete onças-pintadas, completando o primeiro estudo sobre a ecologia e comportamento da espécie.
Desde a sua saída do projeto, no Brasil, Schaller tem dedicado a vida ao estudo e conservação de espécies da fauna asiática, algumas ameaçadas e outras ainda desconhecidas pelo mundo.
A volta ao Pantanal
Seu retorno recente ao Pantanal é parte da produção de um documentário intitulado Witness to the Wild (Testemunha do Mundo Selvagem), sobre a sua vida e seu trabalho, financiado pela National Geographic. Nele, a idéia é visitar alguns dos lugares em que ele trabalhou no passado, comparando as condições atuais das espécies estudadas com a situação à época. No caso do Pantanal, além da melhora sensível na situação da onça-pintada (e outras espécies importantes, como a ariranha), o George veio visitar um projeto desenvolvido com recursos da ONG conservacionista Panthera, da qual ele é vice-presidente.
Durante nossa semana em Porto Jofre, fomos diariamente à Fazenda São Bento, onde está sediado o projeto, coordenado por Sandra Cavalcanti. Nesse período, foram capturadas quatro onças-pintadas, aparelhadas com transmissores sofisticados, pré-programados para armazenar coordenadas geográficas a intervalos regulares – informações que são enviadas a um satélite e repassadas por e-mail aos pesquisadores. Desta forma, não são mais necessários os sobrevôos regulares que encareciam os projetos utilizando essa técnica, no passado.
A grande preocupação dos produtores do documentário era a possibilidade de não conseguir filmar uma onça-pintada em seu ambiente natural, que pudesse comprovar a melhora na situação da espécie no Pantanal. De certa forma contradizendo as expectativas, vimos e filmamos três indivíduos diferentes em quatro ocasiões, em um trecho com não mais do que 15 quilômetros ao longo do Rio Cuiabá. Embora por um lado satisfeitos por essa evidência na melhora da situação da espécie, ficou clara também a preeminência da prática de cevar indivíduos para habituá-los à proximidade dos barcos com turistas.
Em uma manhã, saindo do hotel em uma “voadeira” pelo Rio Cuiabá, fomos chamados por um pescador na margem direita. Ao nos aproximarmos, ele disse que estava alimentando uma pintada, jogando piranhas para ela. Tendo terminado o seu estoque de peixes, ele amarrou uma sandália havaiana na ponta da linha de sua vara de carretilha e a lançou na margem, a uns dez metros de distância. O chinelo ficou enganchado na vegetação e ele começou a sacudir o galho da árvore. Em alguns segundos, um macho adulto de pintada se aproximou e tentou pegar o chinelo. Ele ficou por vários minutos entretido com o movimento do chinelo na vegetação, como um gatinho doméstico que cresceu demais. Depois, desapareceu na vegetação mais densa da mata de galeria da margem do rio. Na tarde do mesmo dia, voltamos ao local para procurá-lo e o encontramos dormindo dentro do casco de um barco abandonado, a poucos metros de onde o havíamos visto pela manhã.
Na verdade, para todos nós, incluindo o George, o prazer da visualização foi diminuído pela situação um tanto degradante de ver um animal tão nobre sendo enganado por estratagema tão vulgar, tão “humano”, no seu sentido mais pejorativo. No entanto, como que para compensar esse evento, quando saímos novamente para o rio, na manhã seguinte, fomos atraídos por uma comoção na margem esquerda.
Quando nos aproximamos, avistamos uma fêmea de onça-pintada saindo do rio, depois de um ataque frustrado a uma capivara, que desapareceu por baixo d’água. Em estado de alerta, ela ficou esquadrinhando a superfície, ainda procurando por sua presa. Após alguns minutos, se afastou da nossa visão, embrenhando-se na vegetação.
Ao contrário do dia anterior, nos sentimos gratificados pelo privilégio de ter presenciado uma cena na vida cotidiana do maior dos nossos predadores. E olhando a expressão de enlevo no rosto do George Schaller, agradeci mentalmente por ter participado, através dele, de alguma forma para melhorar um pouco a situação da espécie no Pantanal e no Brasil, ganhando talvez alguns anos mais na batalha contra a extinção desse felino tão imponente da nossa fauna.
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