Nos anos 1970 e especialmente nos anos 1980, as duas maiores ongs ambientais de atuação internacional, o World Wildlife Fund (hoje denominado World Wide Fund for Nature ou WWF) e The Nature Conservancy (TNC), fomentaram a criação e apoiaram muito o desenvolvimento de organizações nacionais dos países em vias de desenvolvimento. Mas, na década de 1990, essas ongs internacionais e outras mais novas, como Conservation International (CI), passaram a competir cada vez mais acirradamente com as suas criaturas ou, em outros casos, a usá-las como mão-de-obra barata para cumprir os seus propósitos. O resultado é que muitas das que foram as mais prósperas e úteis instituições ambientais privadas nacionais passam agora por momentos críticos, estando sua própria sobrevivência quase tão ameaçada como as espécies e ecossistemas que pretendem preservar.
Até finais dos anos 1970 eram poucas as ações da sociedade civil organizada dos países da América Latina em beneficio da conservação da natureza e do meio ambiente em geral. O que era feito respondia essencialmente ao entusiasmo de funcionários públicos isolados e de raríssimos políticos ilustrados. As ongs da época eram todas muito formais e excessivamente protecionistas, respondendo à filosofia ambiental que havia dominado na década anterior. Suas propostas eram, em geral, poeticamente retóricas ou, quanto menos, tão acadêmicas que não surtiam efeito. Dessa geração na atualidade sobrevivem poucas na América Latina, sendo uma delas a Fundação Brasileira para a Proteção da Natureza (FBCN) que, devido a sua antiguidade, ainda é a única que tem assento permanente no Conselho Nacional do Meio Ambiente.
Ante essa situação, as grandes organizações internacionais optaram pela promoção de novos interlocutores nos países, apoiando ou fomentando a criação de projetos locais, de cunho conservacionista no lugar de protecionista, com capacidade de executar projetos e, ao mesmo tempo, de influenciar os governos e a opinião pública para outorgar maior prioridade aos temas ambientais. Assim surgiu no começo dos anos 1980, por toda a América Latina, uma nova onda de ongs nacionais, na sua maior parte liderada por jovens ex-funcionários públicos. A essa onda pertencem Apeco e ProNaturaleza, do Peru; Vida, de Honduras; Natura, do Equador e Funatura, do Brasil; e dezenas a mais nos outros países.
O apoio do WWF e da TNC foi inicialmente massivo e essas instituições desenvolveram rapidamente, alcançando um nível de ações importante e, também, uma influência considerável nos governos e na sociedade. Gradativamente, às vezes com apoio de seus patrocinadores e outras vezes por si mesmas, essas ongs nacionais passaram a conseguir cada vez mais recursos independentes, em geral de agências de cooperação bilateral. Em meados dos anos 1990, elas dispunham de orçamentos crescente e importante, algumas delas alcançando o patamar de três a quatro milhões de dólares por ano. Mas, não tudo estava bem.
De uma parte, essas organizações não tinham conseguido independência econômica e dependiam excessivamente de seus patrocinadores (TNC e WWF), especialmente para seus gastos correntes. Diversos fatores contribuíram para esta situação, dentre eles: (1) a enorme dificuldade de se fazer fund raising -arrecadação de fundos- local, (2) a debilidade de suas negociações com as agências financeiras para obter uma porcentagem razoável dos gastos administrativos dos projetos e, (3) falta de local próprio que reduza seus custos recorrentes. Das ongs internacionais, a que mais lutou para criar um alicerce adequado para as filiais nacionais foi a TNC embora também terminou constatando que o fund raising local, nas fracas e tormentosas economias da América Latina, é muito difícil.
De fato, após anos de apoio sem resultados tangíveis, até a TNC abandonou suas tentativas de fortalecimento institucional, mas continuou procurando fundos para suas protegidas. De outra parte, a contínua dependência econômica das ongs nacionais anulou em grande medida suas capacidades de escolha de atividades e de levar adiante suas próprias iniciativas. Ante o risco, ao término de cada projeto, de ter que despedir pessoal e de reduzir muito suas atividades, essas instituições começaram a aceitar projetos novos sem muita discussão, inclusive em áreas que não eram das suas competências técnicas, como se fossem salva-vidas.
Suas ações no campo da política ambiental, para as quais raramente existe financiamento externo, começaram a diminuir e, em muitos casos, desapareceu já que acessar recursos bilaterais e multilaterais usualmente requer da anuência dos governos. É obvio que a responsabilidade da situação era, em grande medida, das próprias organizações que, frente a abundância de recursos externos, preferiram pedir ao invés de fazer e aceitar o que vem, sem propor algo distinto.
A situação ficou ainda pior quando o WWF e logo a CI e depois a TNC passaram a criar filiais incorporadas nos países da América Latina. A origem dessa mudança de estratégia não é muito clara embora, em grande medida é um reflexo da burocratização dessas ongs, em conseqüência de seu próprio sucesso e crescimento. Também influiu nessa decisão a necessidade política de mostrar um rosto local, para evitar as críticas dos ultranacionalistas. Seja qual for o motivo, elas montaram escritórios bem implementados, criaram conselhos diretivos locais e convocaram os melhores profissionais nacionais com salários muito acima de qualquer possibilidade para as sedes locais e, em muitos casos, começaram a executar diretamente os projetos que antes realizavam com seus parceiros.
Pior ainda, o WWF, por exemplo, começou a aplicar localmente suas técnicas depuradas de fund raising em aberta competição com as ongs nacionais. As grandes empresas transnacionais, que conhecem o WWF, evidentemente preferiram fazer doações a essa instituição que as relativamente modestas organizações locais. Até lá, as coisas não estavam bem ainda que fossem toleráveis num cenário de livre competição.
O pior aconteceu quando as ongs internacionais se colocaram já não como doadores de recursos pacientemente coletados entre os ricos do mundo, mas, como intermediários entre as instituições locais e os aportes para meio ambiente dos governos dos países desenvolvidos, das agências multilaterais de cooperação, inclusive financeira, como o Banco Mundial e o Fundo Mundial para o Ambiente (GEF) e, claro, os bilhões das grandes fundações americanas como a MacArthur ou a Moore. Onde até há pouco as ongs nacionais podiam obter recursos diretamente dos doadores, agora surgiram intermediários poderosos que captam centenas de milhões de dólares e os usam diretamente ou repassando migalhas às ongs locais.
Os argumentos esgrimidos, comprados pelos doadores, é que elas sabem usar eficazmente o recurso, que oferecem melhores garantias na base da sua experiência e prestígio e, claro, que nelas se fala um inglês decente. A razão subjacente deste novo comportamento das instituições internacionais parece ter sido procurar recursos adicionais para continuar crescendo e manter suas burocracias e, também, compensar a crescente dificuldade de obter recursos através do fund raising tradicional, ou seja doações de ricos e famosos e de empresas.
Essas entidades obtêm porcentagens administrativos – overheads – de 20 até 30% e por meio de diversos artifícios possivelmente até mais que isso. Porém, na hora de encarregar o trabalho duro as instituições locais raramente repassam mais de 7%, às vezes menos, quando o necessário é da ordem de 14%. No final, em muitos projetos, é a organização nacional que acaba financiando a sua rica associada internacional, com seus mínimos recursos e inclusive com a sua própria quebra financeira e com o suor de seus funcionários, que recebem salários de terceiro mundo. De qualquer modo, grande parte do dinheiro original não chega a ser transformado em ações no campo, ficando nas engrenagens do sistema e, em grande medida, sem sequer sai do território dos Estados Unidos, onde são sediadas.
As ongs nacionais criadas nos anos 1980 chegaram ao seu apogeu financeiro no final dos anos 1990 e, desde então, todas elas estão sofrendo uma queda drástica, sendo seus orçamentos atuais apenas uma terceira parte dos de tempos idos. As mais fracas simplesmente deixaram de operar e, na sua maior parte, essas ongs não cumprem mais a missão de alertar e informar, o que nunca deveriam ter deixado de lado. Repete-se que não se trata de sugerir que os únicos responsáveis da situação descrita sejam as ongs internacionais.
Como dito, grande parte da responsabilidade é das próprias organizações nacionais que abandonaram cedo suas responsabilidades principais, dentre elas seguir seu próprio caminho econômico e de aplicar sua própria idéia do que deve ser feito em seus países. Algumas poucas ongs parecem ter conseguido isso, como SOS Mata Atlântica no Brasil e a Fundação O Boticário de Proteção à Natureza que têm seus próprios recursos, também no Brasil. Mas, em termos gerais, da miríade de organizações ambientais da América Latina, as poucas que eram importantes e as muitas que nunca o foram, estão todas enfrentando uma grave crise.
Uma conseqüência muito perniciosa da situação atual é a evidente falta de posicionamento crítico, por parte da sociedade civil organizada, em especial com relação aos chamados temas “verdes”. As ONGs nacionais, reduzidas a pequenas agências executoras, não têm coragem, capacidade ou autonomia para expressar opiniões, em especial as que são contrárias ao governo de turno. A aparição no Brasil das chamadas ongs de interesse social, com forte participação financeira do governo, tampouco contribui à autonomia. Graves eventos recentes nos países da região, como no caso do Brasil (desmatamento da Amazônia, quase eliminação do conceito de áreas de preservação permanente, revisão inadequada da legislação florestal) revelam que as opiniões críticas são na sua maioria de indivíduos ou de jornalistas, mas quase nunca de instituições.
Curiosamente, as entidades mais falantes e escutadas sobre esse tema são o Green Peace ou Friends of the Earth, outras instituições internacionais incorporadas no Brasil. Elas fazem um excelente e muito necessário trabalho. Tudo bem, mas onde estão as opiniões das ongs verdadeiramente nacionais? Algumas delas levam já quase uma década sem se atrever a fazer um só pronunciamento público, exceto se é a favor do governo ou se é perfeitamente neutro. Outras escolheram o fácil caminho de decidir que não são do tipo confrontante. Felizmente ainda existem umas poucas exceções como a SOS Mata Atlântica (Brasil), para lembrar que existe um terceiro setor nacional que combate ativamente, em todas as frentes, colaborando ou confrontando, pelo patrimônio natural.
O que fazer? O mais importante é que cada uma das ongs nacionais faça uma autocrítica profunda: Qual é a sua missão para beneficio da nação? Qual é a melhor forma de cumpri-la? Até que ponto pode comprometer a sua autonomia aceitando financiamento externo ou nacional? Se optar por ser apenas uma agência executora das políticas, planos e objetivos de outros, sejam agências do exterior ou do governo nacional, não deveria mais ser considerada uma ong nem tampouco deveria continuar pretendendo ser do terceiro setor. Nesse caso passa a ser simplesmente setor privado, pois, com a exceção relativa da diretiva que, em princípio, é ad-honorem, todos os demais são assalariados. Nesse caso, a única diferença de uma empresa particular com uma ong é que não existe lucro, embora em troca existam salários lucrativos ou, pelo menos emprego decente, que já é mais do que tem a maioria.
De outra parte, a independência institucional só pode ser mantida, inclusive recebendo financiamento externo importante, se exisir um colchão adequado de recursos próprios. E, a experiência de algumas ongs demonstra que, ainda que seja difícil, isso é possível de fazer. Mas essa tarefa primordial, por ser ingrata, é geralmente esquecida ou relegada. Por exemplo, esquece-se, com excessiva freqüência que o fund raising responde muito bem a instituições que são respeitadas pelo que pensam e dizem e não pelo que fazem. O famoso World Resources Institute, dos EUA têm recebido centenas de milhões de dólares apenas para estudar, pensar e escrever suas propostas e conclusões. A crítica oportuna, justificada e ponderada sempre é, finalmente, respeitada.
As grandes ongs internacionais e as agências bilaterais e multilaterais devem, assim mesmo, repensar sua atitude. As primeiras não podem continuar competindo com as nacionais e, muito menos, considerá-las como mão de obra local barata. Menos ainda devem usar sua influência para atuar como intermediários muito caros de recursos externos que poderiam, perfeitamente, chegar diretamente às ONGs nacionais ou aos governos. As agências bilaterais e multilaterais devem reconsiderar essa moda de se associar com ongs internacionais abandonado as nacionais, que são as que no longo prazo melhor serviriam a seus tão promovidos objetivos de criar capacidade nacional para viabilizar o desenvolvimento sustentável.
O autor lembra, com respeito, da época em que o WWF apoiava efetivamente as ongs nacionais. Até organizava eventos periódicos, essencialmente para escutar conselhos e críticas para ser mais eficaz para somar suas ações com os esforços nacionais. Sua intenção de ser um irmão maior era genuína, clara e gerava uma relação sinérgica muito positiva com suas contrapartes nos países em desenvolvimento. Verdade é que esses eram outros tempos quando a polaridade política mundial facilitava comportamentos bem mais democráticos. Mas, se o objetivo ainda é contribuir à conservação do patrimônio natural do planeta, mais vale retornar às origens sem perder mais tempo.
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