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Plano Nacional de Áreas Protegidas

Novo Plano Nacional de Áreas Protegidas reúne objetivos desejáveis, mas seu caráter utópico o faz inócuo. Além disso, introduz conceitos que geram preocupação.

23 de janeiro de 2006 · 19 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

O Ministério do Meio Ambiente acaba de lançar para breve consulta pública eletrônica um documento de 89 páginas intitulado Plano Nacional de Áreas Protegidas, que foi preparado por um Grupo de Trabalho Ministerial durante o ano 2005. Este Plano tem levantado inquietudes variadas em diversos setores da sociedade, nem tanto porque alguém acredite realmente que possa ser realizado, inclusive no caso de o Governo atual ter continuidade, mas sim porque começa a dar forma a uma tendência que pode ser perigosa para o objetivo social primordial das unidades de conservação, que é conservar amostras representativas dos ecossistemas e da biodiversidade que contêm.

O Plano está organizado em quatro eixos e em uma série de objetivos, estratégias e metas para cada eixo. Embora no seu aspecto formal seja grande demais e bastante confuso, o documento não parece à primeira vista ser o bicho papão que alguns já vêem nele. De fato, se ele fosse cumprido no prazo proposto, em apenas 15 anos o Brasil passaria a ser o país que melhor cuidaria da sua natureza no planeta. Todas as áreas protegidas disporiam de planos de manejo, conselhos consultivos ou de gestão plenamente operativos, pessoal qualificado, equipamento e infra-estrutura, os incêndios estariam quase eliminados, a sua situação fundiária estaria regularizada, os proprietários originais e os litigantes estariam todos indenizados, milhões de visitantes se deleitariam nelas e, as unidades de conservação, ademais de proteger a natureza, aportariam benefícios econômicos importantes às comunidades locais dentro ou fora delas e, claro, estas adorariam as unidades de conservação e as defenderiam contra eventuais agressões. Numa palavra só: Maravilhoso!

De fato, as unidades de conservação de preservação permanente (parques, reservas biológicas e estações ecológicas) que são preocupação de um grande setor da sociedade nacional, estariam, segundo o Plano, muito melhor que agora. É bom que o Plano também traga a novidade de dar maior ênfase à conservação de ecossistemas marinhos e aquáticos, aos que outorga o mesmo peso que aos terrestres. É verdade que o Plano insiste cansativamente em temas como governança, participação, eqüidade e repartição dos benefícios quase exclusivamente em função das populações locais, esquecendo que muitas das unidades de conservação são patrimônio comum de todos os brasileiros e não exclusividade dos vizinhos ou residentes das mesmas. Mas, isso até pode ser considerado um pecado menor, já que responde a uma ideologia que pode mudar e que, de outra parte, na hipótese de que as unidades de conservação estejam bem manejadas e preservadas, não importa muito quem seja “o dono” ou quem seja “o beneficiário”.

Qual é o problema?

Então qual é o problema com o Plano? O principal problema com este Plano, que não é o primeiro, é a inclusão, como áreas protegidas, dos territórios indígenas e quilombolas e, também, das áreas de preservação permanente e das reservas legais. Neste ponto é preciso fazer algumas aclarações para facilitar o entendimento do problema. A primeira é que o único país do mundo que denomina a suas áreas protegidas de “unidades de conservação” é o Brasil. Os demais países possuem um sistema nacional de “áreas protegidas” e não um sistema nacional de “unidades de conservação”. A segunda aclaração é que, para a maioria dos outros países, as “áreas protegidas” são unicamente aquelas que no Brasil se conhecem como “unidades de conservação de proteção integral” (uso indireto), ou seja, principalmente, no caso do Brasil: parques, reservas biológicas e estações ecológicas.

Países como os EUA, Canadá ou o Peru e Chile, por exemplo, não denominam “área protegida” a suas florestas nacionais (dedicadas à exploração de madeira) nem, muito menos, a suas terras indígenas. A Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza do Brasil, contrariamente, inclui sob a denominação de unidades de conservação de uso sustentável as florestas nacionais e uma série de outras categorias, como as reservas extrativistas, cuja função primordial não é a conservação da natureza e sim a exploração “sustentável” dos recursos. Estas categorias também existem em outros países. Apenas não são consideradas como áreas protegidas ou unidades de conservação. Em conclusão, existe neste tema uma confusão que, mais que semântica, é conceitual. Ela gera e explica algumas das reações contra o Plano. Como é possível que terras indígenas e quilombolas, assim como outras áreas de preservação que não dispõem individualmente de dispositivo legal, passem a ser “área protegida”, termo que no Brasil, até agora, era usado somente como sinônimo de unidade de conservação?

O Plano que se discute pretende resolver o problema inventando (ver seu glossário) uma nova definição de “área protegida” que inclui as terras indígenas e quilombolas e também as de proteção permanente e reservas legais. A cada país assiste o direito de inventar termos novos, inclusive a contrapelo do resto dos países, mas é prudente evitá-lo e, melhor ainda, deve-se procurar a homogeneização mundial da terminologia. O que chama muito a atenção no texto do Plano é que, aparte do enunciado anterior, e de facilitar o acesso dos indígenas e quilombolas à gestão e benefícios das unidades de conservação, nada diz com respeito ao manejo sustentável da biodiversidade nas terras indígenas e quilombolas. Esse é um tema de grande interesse já que os indígenas brasileiros possuem nada menos que 12% do território nacional e a cada dia reclamam mais e, por isso, são depositários de grande parte do patrimônio natural nacional.

Poderia se supor que num Plano que inclui essas terras como “áreas protegidas” deveria haver alguma consideração sobre este assunto crucial. Por exemplo, dever-se-ia propor um plano de ação para o manejo sustentável dos recursos das reservas indígenas incluindo financiamento e apoio técnico para agricultura, exploração florestal, mineração e outras atividades econômicas. Mas, nas 89 páginas praticamente nada se fala a respeito do assunto. Muito menos se fala das responsabilidades dos indígenas e dos quilombolas pela proteção do imenso patrimônio que está em suas mãos. O documento só trata de seus direitos com relação às unidades de conservação.

Terra indígena ou área protegida?

Dá para imaginar que os indígenas devem resistir à idéia de ver suas terras convertidas em “áreas protegidas”, quer seja na sua acepção universal ou na nova acepção inventada no relatório. Qual poderia ser a vantagem para eles? Ao pesadelo administrativo representado pela Funai e pelo Ministério da Justiça se somaria, já com direito próprio, o do Ibama e do Ministério do Meio Ambiente, limitando ainda mais sua autonomia, impondo mais e mais condições e obstáculos a seu desenvolvimento em troca, quiçá, da oferta de um apoio técnico e financeiro que nunca se materializará. O documento nada diz das implicações burocráticas da proposta e pode-se supor que nem foram discutidas, mas os indígenas seriam muito ingênuos (e eles não o são) se acreditassem que não teriam de enfrentá-las.

As terras indígenas e, a cada dia mais as dos quilombolas (levando-se em conta a velocidade em que estão sendo reconhecidas, inclusive em unidades de conservação), são de fato e devem ser prévia compensação e sem perda de seus direitos, parte essencial da estratégia de conservação da biodiversidade. Até certo ponto isso é verdade também para as áreas de preservação permanente e as reservas legais quando elas têm proporções individuais importantes. O Plano é claro nesse sentido, em especial com referência aos corredores ecológicos ou biológicos. Mas, para isso não era preciso denominá-las “áreas protegidas”. Suficiente é chamá-las, no Plano, de áreas naturais. De outra parte, o Plano poderia ter proposto, como agora existe no Peru e na Bolívia dentre outros países, o reconhecimento de áreas naturais protegidas, verdadeiras unidades de conservação indígenas (reservas comunais ou equivalentes), a serem criadas por proposta dos indígenas dentro dos próprios territórios indígenas para, como os parques nacionais e estaduais, fomentar o turismo e a recreação para beneficio direto e exclusivo deles mesmos.

A idéia de tratar as terras indígenas e quilombolas como áreas protegidas tampouco é atrativa, nem conveniente, para as unidades de conservação. Significa, pelo menos, que os já muito limitados recursos para o seu manejo vão ser diluídos numa superfície duas vezes maior, onde a garantia de proteção da biodiversidade é menor, considerando que a função primordial das terras indígenas não é a conservação da natureza. Pode significar que o novo “sistema nacional de áreas protegidas”, se a idéia prosperar, terá um mecanismo de gestão próprio onde a balança do poder pode facilmente ficar com os índios, politicamente muito ativos, e não no setor ambiental, sendo admissível supor que o orçamento seja derivado para as terras indígenas e não para as unidades de conservação. Verdade que o oposto também pode vir a acontecer. Como para as terras indígenas, essa possibilidade implicará mais burocracia e mais problemas para a gestão efetiva das unidades de conservação.

Bons desejos

Olhando o Plano desde uma perspectiva mais ampla, chama a atenção seu caráter pouco realista. Os objetivos e metas propostos, conhecendo a realidade do setor ambiental que não tem por que mudar drasticamente nas próximas décadas, são extraordinariamente ambiciosos, quase utópicos. As estratégias mencionadas não podem ser qualificadas como tais como demonstrado pelo fato de não existir nenhuma quantificação das necessidades, valoração do custo das medidas propostas, nem descrição de mecanismos financeiros, sejam novos ou tradicionais. A realidade é que o orçamento do setor ambiental tem alcançando, nos últimos quatro anos, um recorde absoluto de miséria e que, se não houver mudança de governo, nada sugere que tempos melhores venham a acontecer. De qualquer modo, para sua eventual aplicação, o Plano necessitará de uma versão muito mais detalhada. No momento é apenas uma declaração de intenções.

Em síntese, o tal Plano Nacional de Áreas Protegidas é essencialmente inócuo. Não é tão ruim como parece, sendo uma grande salada de bons propósitos, nenhum deles realmente sendo novidade. Seu melhor atributo é dar a importância merecida aos temas marinhos. Com certeza que não será realidade no prazo previsto nem no duplo ou triplo deste, salvo que algo muito improvável aconteça. De outra parte, sem necessidade, cria uma confusão que é fonte de conflitos pela invenção de uma nova definição de “área protegida”, o que poderia se resolver facilmente mudando-a por “área natural”. E, o mais estranho, é que após ter criado essa confusão nos seus princípios gerais, o Plano praticamente nada diz nos seus objetivos, metas e estratégias com respeito ao manejo e conservação nas terras indígenas e quilombolas. Em síntese, muito papel e muito barulho para muito pouco.

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