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Liberdade transgênica

Ao mirar na legalização da soja transgênica, Governo e Congresso acertaram na defesa da sociedade em uma área na qual a ignorância sobre os riscos é enorme.

4 de março de 2005 · 20 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

Na noite do dia 3 de março, a Câmara dos Deputados desregulou o uso de organismos geneticamente modificados, do ponto de vista de seu impacto ambiental. Mirou na legalização da soja transgênica ilegalmente produzida no país e acertou nas salvaguardas necessárias, em relação a uma área de pesquisa de ponta, na qual a ignorância quanto aos riscos é grande demais, para ser deixada ao livre sabor dos mercados. Ao dar todo o poder regulamentar à CTNBio, subordinando, inclusive, os órgãos ambientais à suas decisões, o que a maioria dos deputados fez foi blindar o uso de OGM do escrutínio ambiental.

Há uma grande diferença entre a liberação regulada, cercada de cautelas ambientais e liberar geral. O que a lei aprovada pelo Congresso fez foi liberar geral. O que a CTNBio disser é definitivo e só cabe recurso a um conselho puramente político e certamente ineficaz, de ministros. A formulação parece controversa: pode dar pendenga judicial porque, na prática, elimina a exigência de análise de impacto ambiental por órgão competente. Cheira a inconstitucionalidade. Mas isto é discussão para a turma do direito ambiental. Do ponto de vista regulatório, é uma aberração. Não há mais pesos e contrapesos, um imperativo da governança regulatória democrática. Só vale a palavra da Comissão, de cuja regra de composição diga-se logo, não se pode esperar nada de muito bom.

O erro começa por dar hegemonia regulatória à CTNBio. Nem é preciso fazer hipóteses conspiratórias sobre a comissão. Basta ver o que ela é e onde ela está. Embora criada como “instância colegiada multidisciplinar, com a finalidade de prestar apoio técnico consultivo e de assessoramento ao Governo Federal na formulação, atualização e implementação da Política Nacional de Biossegurança relativa a OGM”, ao localizá-la no âmbito do Ministério da Ciência e Tecnologia, põe seu foco na pesquisa e desenvolvimento de organismos geneticamente modificados (Lei nº. 8.974, de 05 de janeiro de 1995). A regulação de sua introdução, em larga escala, no meio ambiente ficará a descoberto. São duas coisas muito diferentes: a segurança da pesquisa e do desenvolvimento de organismos de alto risco potencial e a segurança de sua produção, transporte e comercialização em larga escala. Deveriam ter regras de precaução e agentes reguladores diferentes. Biossegurança, na sua acepção mais abrangente, não é, obviamente, função precípua do Ministério da Ciência e Tecnologia, cuja vocação evidente é o fomento. Caberia mais no Ministério do Meio Ambiente ou no Gabinete de Segurança Institucional, pois, obviamente, biossegurança pode se transformar em uma questão de segurança nacional.

Já era o espírito da lei de 95, dar à CTNBio a precedência na regulação dos OGM, inclusive vinculando a seu parecer a ação das demais agências do governo: “o parecer técnico prévio conclusivo da CTNBio vincula os demais órgãos da administração, quanto aos aspectos de biossegurança do OGM por ela analisados”. Era, porém, vinculação circunscrita aos “aspectos da biossegurança”, ficando “preservadas as competências dos órgãos de fiscalização de estabelecer exigências e procedimentos adicionais específicos às suas respectivas áreas de competência legal”.

O novo texto vai muito mais fundo, na concessão de poderes à CTNBio, determinando que cabe a ela, não mais apenas regular os aspectos relativos à biossegurança, mas o “estabelecimento de normas técnicas de segurança e pareceres técnicos conclusivos referentes à proteção da saúde humana, dos organismos vivos e do meio ambiente, para atividades que envolvam a construção, experimentação, cultivo, manipulação, transporte, comercialização, consumo, armazenamento, liberação e descarte de OGM e derivados”.

Ele também parece preservar a autonomia das demais agências reguladoras, vinculando suas decisões às da CTNBio, nos aspectos de biossegurança. Os parágrafos 1º e 2º do artigo 14, que trata das competências da Comissão Técnica, dizem, respectivamente, que: “quanto aos aspectos de biossegurança do OGM e seus derivados, a decisão técnica da CTNBio vincula os demais órgãos e entidades da administração; nos casos de uso comercial, dentre outros aspectos técnicos de sua análise, os órgãos de registro e fiscalização, no exercício de suas atribuições em caso de solicitação pela CTNBio, observarão, quanto aos aspectos de biossegurança do OGM e seus derivados, a decisão técnica da CTNBio”.

Mas, no artigo 16, ponto focal de divergência na votação do projeto de lei, que se transformou em destaque para votação em separado e foi resolvida pela esmagadora maioria em favor da hegemonia da Comissão Técnica, por 302 votos a 77 (veja o quadro), essa autonomia relativa desaparece. O artigo especifica as funções que os órgãos e entidades de registro e fiscalização dos ministérios da Saúde, da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, do Meio Ambiente e da Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República deverão executar, observando “a decisão técnica da CTNBio, as deliberações do CNBS e os mecanismos estabelecidos nesta Lei e na sua regulamentação”. Estão subordinados, dessa maneira, à orientação prévia da CTNBio, a fiscalização das atividades de pesquisa em OGM, o registro, a liberação comercial e a importação para uso comercial de OGM e seus derivados. Após a manifestação conclusiva da CTNBio, da qual só há recurso ao “conselhão de ministros”, cabe aos ministérios, da Agricultura, Saúde, Meio Ambiente e à Secretaria de Aqüicultura e Pesca, emitir as autorizações e registros de produtos e derivados que se destinem ao uso que compete a cada um deles regular.

Mais ainda, as prerrogativas do CONAMA, de definir de normas e critérios para o licenciamento de produtos com risco ambiental e de determinar, quando julgar necessário, a realização de estudos das alternativas e das possíveis conseqüências ambientais de projetos públicos e privados de risco, criadas pela lei que definiu a política nacional de meio ambiente, não valem se a CNTBio decidir que o OGM não representa risco. Mais ainda, não vale a exigência legal de licenciamento prévio pelo IBAMA e pelo órgão ambiental dos estados para instalação de unidades de pesquisa, produção e comercialização, se a CTNBio disser que não há risco.

Morram todas as precauções. Viva a liberdade transgênica, determinada, pura e exclusivamente, por uma comissão, cuja constituição em si, já é um elemento de risco. São 27 iluminados, dos quais, 12 especialistas de notório saber científico e técnico, em efetivo exercício profissional sendo três “da área de saúde humana”, “três da área animal” (sic), “três da área vegetal” (sic) e “três da área de meio ambiente”. Se usarem em seu julgamento a mesma precisão da lei na definição dessas categorias, a única proteção que nos resta é a oração. Nove conselheiros representarão os ministérios: da Ciência e Tecnologia, Agricultura, Saúde, Meio Ambiente, Desenvolvimento, Defesa, Secretaria da Pesca e Relações Exteriores. Cinco a quatro para os órgãos mais interessados em fomento que segurança. Os demais são “especialistas”: em defesa do consumidor, indicado pelo Ministério da Justiça; em meio ambiente, pelo ministério do meio ambiente; em agricultura familiar (sic) pelo ministério do Desenvolvimento Agrário; em saúde do trabalhador (sic), pelo ministério do Trabalho. Resposta de um milhão de grãos de soja transgênica: quem indica o “especialista” em biotecnologia? Ganhou quem respondeu Ministério da Ciência e Tecnologia. Como castigo. Porque a resposta certa é Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Pode não ter a ver com a lógica da própria enumeração anterior de representantes, pela qual cada um guarda alguma relação com as atribuições do ministério indicador, mas faz todo o sentido.

O melhor, mesmo, é que esses “especialistas” serão escolhidos “a partir de lista tríplice, elaborada com a participação das sociedades científicas”. O Gabinete Civil da Presidência da República encarece ao povo brasileiro que lhe envie, com urgência, o endereço das sociedades científicas às quais pertencem as seguintes “especialidades científicas”: defesa do consumidor, meio ambiente, agricultura familiar, saúde do trabalhador e biotecnologia, para que possa solicitar as respectivas listas tríplices. Insisto, se a regulação de OGM seguir a mesma lógica e tiver a mesma precisão que este projeto prestes a virar lei por uma penada do presidente Luiz Inácio, que Deus nos acuda.

A todo-poderosa CTNBio, com essa primorosa composição, não está sequer submetida a audiências públicas, logo ao controle social, de que o PT tanto gostava naquela época em que Lula era candidato à Presidência, “contra tudo isto que está aí”. Pode fazer, mas não está obrigada. Está certo. Audiência pública no Brasil nunca foi séria. Mas um dia pode ser. Nesse dia, a única agência regulatória totalmente isenta de ouvir o distinto público será a CTNBio. Ela “delibera, em última e definitiva instância, sobre os casos em que a atividade é potencial ou efetivamente causadora de degradação ambiental, bem como sobre a necessidade do licenciamento ambiental”. Pela manutenção desse artigo votaram 302 deputados. Só 77 votaram por sua supressão.

O projeto veio, como todos sabem, do Senado. Esse substitutivo, aprovado no dia 3, com 340 votos a favor e 56 contrários, foi negociado pelas lideranças do governo. A maioria foi, portanto, construída por uma ampla aliança entre líderes do PT, respondendo à orientação do Planalto, ruralistas e outros setores interessados nos transgênicos e grupos interessados em pesquisas com células-tronco. O álibi, desde o início, foi a defesa da ciência, da pesquisa e da vida, que meteu no mesmo saco a pesquisa com células-tronco e os organismos geneticamente modificados, cujo ícone, no Brasil, é a soja “roundup ready”.

O PT se dividiu na votação do substitutivo a maioria do partido votou a favor do substitutivo do Senado: 72%. Mas foi, também, o partido que deu o maior número de votos contrários – 21 dos 56 não. Veja o quadro. O texto era melhor do que o que saiu da Câmara, mas isso não o fazia bom. Em relação ao artigo que deu hegemonia à CTNBio, 57% votaram contra. Era um jogo de cartas marcadas, feito para dar vitória aos ruralistas e ao ministro Roberto Rodrigues e uma rasteira na ministra Marina Silva, que mantinha uma posição muito razoável, pedindo regras de convivência respeitosa entre OGM e Não-OGM. O que está errado não é autorizar os transgênicos. É legislar sobre organismos geneticamente modificados, no geral, para agora e para o futuro – a lei proíbe a CTNBio de rever o risco de produtos já autorizados – apenas sob a ótica dos interesses imediatos dos produtores de soja do Rio Grande do Sul e de outros estados, em busca de redução de custos.

O objetivo da maioria dos que se opunham à lei não era a proibição. Era evitar essa liberação geral, criando medidas cautelares, desenhando uma estrutura regulatória eficaz e segura e construindo regras que permitissem a convivência entre os OGM, os produtos naturais e os orgânicos, sem risco de contaminação desses dois últimos pelos transgênicos. O silêncio da lei sobre rotulagem, rastreabilidade – que o Ministério da Agricultura não consegue implantar para o boi, embora seja de interesse dos grandes exportadores – protocolos de segregação e preservação de identidade mostra que era para desregular, liberar geral. Pesquisa, produção, comercialização, transporte e descarte ficam praticamente liberados, sujeitos apenas aos “especialistas” da “Comissão Técnica”. Não é coisa séria.

É justo presumir que a aplicação da lei será tão precisa quanto a lei. Se isto ocorrer, estará instalada a bagunça, numa área de alto risco, para regularizar uma atividade que se desenvolveu, debaixo das fuças das autoridades – tucanas e petistas – na mais absoluta ilegalidade. E para salvar os ilegais, nada melhor que uma péssima lei.

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