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Estado de Medo

“Estado de Medo”, novo livro de suspense de Michael Crichton, aborda o aquecimento global e inverte os papéis politicamente corretos. Ambientalistas são vilões.

24 de novembro de 2005 · 19 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Estado de Medo (Editora Rocco) – é este o nome de um recente livro de Michael Crichton, conhecido autor de romances policiais. É mais um thriller com todos os ingredientes que fazem o enorme sucesso comercial dos livros do autor. Assassinatos, conspirações, belas mulheres, dinheiro, grandes corporações, etc.

O tema do romance é que é pouco usual: o aquecimento global. Mas, atenção. Ele não trata de intrigas e ameaças feitas àqueles que, por “lutarem” contra o aquecimento global, são vítimas de gananciosos industriais que lucram com a destruição da vida e das gerações futuras, como seria de se esperar em um texto “ecologicamente correto”. O que acontece é exatamente o contrário.

A turma do mal é constituída pelos “ecologistas”. O ponto central do romance é a disputa por recursos fabulosos que haviam sido doados para uma ONG dedicada a combater o aquecimento global e que se dispôs a mover um processo judicial em face da Environmental Protection Agency – EPA (o Ibama dos Estados Unidos), com vistas a responsabilizá-la pelo possível desaparecimento de uma pequena nação insular (Vanutu) em função da elevação do nível dos mares. A construção da prova do processo começa a se mostrar difícil, senão impossível, tendo em vista a grande incerteza científica sobre o tema.

O interessante é que o autor trabalha com a incerteza de uma forma diferente daquela que normalmente se entende deve ser adotada. Rotineiramente, apela-se para uma concepção equivocada do princípio da precaução e, na incerteza, “param-se as máquinas”. O autor mostra – ou pelo menos insinua – que “parar as máquinas” pode não ter influencia nenhuma na solução do problema e, provavelmente, acarretará outros problemas.

Uma questão que me parece relevante é que a tradução deveria ter passado por uma revisão técnica, visto que o assunto envolve muita matéria técnica especializada. Existem algumas falhas indesculpáveis, tais como traduzir carabiner (mosquetão – aparelho utilizado para a prática do alpinismo) por carabina (p. 219) e precautionary principle (princípio da precaução) por princípio precautório (p. 589), isto para não falar na tradução de injunction como mandado de segurança. Em uma segunda edição, a editora poderia corrigir o problema.

Para nós, o que importa no livro é que ele traz à baila algumas questões que temos debatido neste O Eco. Em primeiro lugar, parece-me que o problema mais importante suscitado pelo livro é a grande dificuldade de judicializar temas ambientais excessivamente. Tal dificuldade decorre do fato de que o sistema judicial precisa de certezas, definições, respostas objetivas. Não podemos nos esquecer que todo processo judicial tem por objetivo supremo uma sentença de mérito que se transformará em coisa julgada (Res Iudicata). A coisa julgada é uma ficção constitucional que determina a certeza de uma questão definitivamente julgada, ainda que ela não corresponda a uma realidade de fato. Todos sabemos que os exames de DNA têm levado à necessidade de construções pretorianas capazes de assimilar a realidade demonstrada pelo exame de DNA com a segurança jurídica. Este é um fenômeno dramático nos campos do direito de família e no direito penal. Daí que, atualmente, um dos temas mais complexos postos ao exame dos juristas é o da chamada “relativização da coisa julgada”.

Apenas uma hipótese

O que o livro mostra, embora não tenha qualquer obrigação de ser cientificamente correto, posto que ficção, é que a única certeza em matéria de aquecimento global é a incerteza. É verdade que boa parte das fontes citadas por Crichton é constituída por autores fora do mainstream ambientalista, tais como Lomborg, o conhecido “ambientalista cético” (Editora Campus). Do ponto de vista pedagógico isto é excelente, visto que a massa de informação que circula pela mídia é de caráter alarmista e catastrofista.

Na verdade, escuta-se muito mais os falsos profetas do apocalipse do que qualquer coisa. É um pouco a velha história que afirma que a notícia se faz pelo homem que mordeu o cachorro e nunca pelo cachorro que mordeu o homem. É verdade que aqueles que, como os leitores deste O Eco, buscam informação mais qualificada sabem que não se pode falar com segurança no tema. O que há é uma hipótese que, por um determinado consenso entre as nações (expresso no Protocolo de Kioto), passou a ser estudada com seriedade e medidas políticas, administrativas e econômicas passaram a ser adotadas.

Crichton sustenta que o Aquecimento Global é uma hipótese sem grande confirmação, dado que a margem de erro aceita nos modelos matemáticos chega a ser igual a 300%, valor bastante elevado, mais do que seria razoável admitir. Um outro ponto relevante tratado pelo livro é o que se refere à isenção das pesquisas cientificas, chegando a sugerir que as pesquisas fossem financiadas por fundos cegos, de forma que os cientistas não soubessem quem são os seus financiadores. Não é uma má idéia.

Um outro ponto digno de nota é a abordagem que o autor faz do maniqueísmo ambiental, como se existisse um lado “bom” e outro “mau”. Como sabemos todos, existem cores entre o branco e o preto. Daí a inteligente construção das personagens de determinados ambientalistas como o lado “mau”. O que ele busca ressaltar é que, mesmo do lado do “bem”, existem pessoas com interesses econômicos bastante claros e identificáveis. Organizações multinacionais que movimentam milhões de dólares têm interesses próprios, independentemente dos rótulos que ostentem. Assim, tanto uma grande empresa quanto uma mega ONG devem ser vistas com os olhos da realidade e não com idealismos preconcebidos. Seguramente é politicamente incorreto, porém bastante realista.

Mesmo sem ser um “especialista” em questões ambientais, Crichton chama a atenção para o fato de que o nosso conhecimento sobre meio ambiente é muito pequeno e que, não poucas vezes, medidas adotadas com a melhor boa vontade para proteger o meio ambiente acarretam danos importantes ao meio ambiente.

Ele cita, por exemplo, o caso do Parque de Yellowstone. Eu, pessoalmente, não precisaria ir tão longe, visto que, na tentativa de proteger as praias da Barra da Tijuca, incorporei-me nos fins da década de 80 do século passado ao movimento contra o emissário do bairro. Ajuizei uma ação, obtive uma medida liminar e o resultado prático foram quase 20 anos de aumento da poluição nas lagoas e na praia. O caso mais polêmico apresentado pelo autor do romance, no entanto, é o do DDT. O livro discute se o “ostracismo” do DDT foi ou não foi uma boa coisa. Para tal, apresenta estatísticas sobre malária antes e depois do lançamento de Silent Spring, livro de Rachel Carson que, certamente, foi o knock out no DDT. Aqui eu já tratei do caso da Cidade dos Meninos que, embora não seja um problema de DDT, se relaciona com organo-clorados.

Ecologicamente incorreto

Estado de Medo é, sem dúvida, um livro que não poderia ser classificado como ecologicamente correto. O que é ótimo, visto que o “ecologicamente correto”, na maioria das vezes é um conjunto caótico de idéias, sem qualquer coerência interna e que nós somos obrigados a aturar para não dar uma nota “dissonante” em um concerto monótono e repetitivo.

De fato, existe muito “resíduo sólido” na literatura ambiental e o livro que está sendo examinado tem o mérito de olhar as questões ambientais por outra ótica. Ele busca examinar o fato de que existem pessoas que se aproveitam da disseminação do temor e das catástrofes como elementos para fazer dinheiro, assim como em qualquer indústria. Infelizmente, não existe tradução para o Português do clássico A Civil Action, excelente livro de Jonathan Harr que narra o drama de um julgamento envolvendo poluição. A Civil Action tem sido usado em muitas faculdades de direito norte-americanas como um facilitador para debates e discussões dos alunos sobre um tema bastante árido que é a poluição por produtos químicos.

Estado de Medo, certamente e desde que bem trabalhado, pode ser um excepcional instrumento para os professores de Direito Ambiental que desejarem estimular os estudantes a compreenderem as complexidades e dificuldades dos processos judiciais envolvendo matéria ambiental. O livro demonstra a dificuldade na construção da prova, a incerteza reinante em temas ambientais e, por conseqüência, os riscos que se corre com o ajuizamento de medidas judiciais precipitadas e sem a adequada consistência probatória.

Um dos méritos do livro, como já afirmei, é “bater de frente” com o maniqueísmo reinante nos temas ambientais e que, sem qualquer cerimônia, invade o chamado direito ambiental, cujo magistério é ainda muito recente em nossas faculdades e precisa ser olhado com carinho pelas autoridades educacionais. Como regra, o Direito Ambiental é uma disciplina eletiva que não ultrapassa o exíguo período de um semestre. Isto impede que o ensino da disciplina saia do limitado campo das generalidades e dos lugares comuns. Debates como o suscitado por Estado de Medo podem fazer com que o foco do ensino jurídico específico do Direito Ambiental ganhe um pouco mais em ceticismo, o que implicará em maior rigor científico e melhoria do quadro geral da formação dos advogados. Isso poderá significar processos judiciais mais bem articulados e, portanto, proteção ambiental mais efetiva e concreta.

Para finalizar, aqueles que tiveram a paciência de ler a presente coluna, seguramente terão melhor proveito se lerem o livro, o que recomendo fortemente.

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