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Diários de motocicleta

Já foi o tempo em que motocicleta era sinônimo de liberdade. Hoje elas são mais um fator de estresse no ambiente urbano. Corre-se risco até andando na calçada.

13 de janeiro de 2006 · 18 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

A motocicleta é um veículo associado à aventura e à liberdade, assim como a uma certa dose de violência. Não é à toa que Born to be Wild, imortalizada por John Kay Steppenwolff, começa com “Get your motor runnin’/ Head out on the highway/ Lookin’ for adventure/ And whatever comes our way/ Yeah Darlin’ go make it happen/ Take the world in a love embrace/ Fire all of your guns at once/ And explode into space”.

Dizem inclusive que o Heavy Metal, gênero musical da predileção do Rafa, deve o seu nome a uma das estrofes da música: “Heavy metal thunder”. Easy Rider, antológico filme da década de 60, conta a história de dois malucos andando de motocicleta pelas estradas dos Estados Unidos. Isto para não falarmos de “Motorcycle Mama” e “Unknown legend”, de Neil Young, cujos temas estão ligados à motocicleta, sendo que na última o autor se refere a uma misteriosa e fabulosa loura que acabou criando dois filhos, provavelmente no deserto da Califórnia (1). Mas, como diria John Lennon, “The dream is over” e as motocicletas foram se transformando em símbolos da opressão e não da liberdade.

Na produção cinematográfica mais recente, tivemos o Diário de motocicleta, que narra as aventuras de Ernesto Guevara pela América do Sul sentado sobre uma moto. Como o filme mostrou, o melhor seria dizer: “caindo de uma moto pela América do Sul”. Todo o romantismo envolvido na motocicleta e na sua imagem popular cai por terra na dura realidade do Rio de Janeiro de 2006. Aqui, ela perdeu o charme e, como instrumento de irresponsáveis, é uma ameaça para a população que ainda acredita que calçada foi feita para pedestres.

Assim como já perdemos a batalha dos edifícios e das praças públicas, que passaram a ser “cercados” tal qual antiga cidade medieval fortificada, perderemos inexoravelmente a batalha das calçadas. Espero que não venhamos, também, a perder a batalha das casas. Esta só é lutada por aqueles que ainda têm onde morar. O último romance de Luiz Alfredo Garcia-Roza, Berenice Procura, retrata as populações que moram nos esgotos de Copacabana, que crescem com constância.

Fatores de stress

A motocicleta, nos dias atuais, está associada à degradação urbana e à mais completa falência da autoridade pública nesta Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Em primeiro lugar, é responsável por boa parte da poluição sonora e atmosférica, visto que a fiscalização é muito difícil e, até recentemente, elas não saíam de fábrica com mecanismos de controle da poluição.

A principal poluição causada pelas motos, no entanto, não é a sonora ou a atmosférica, pelo menos neste balneário. Aqui a principal poluição é a causada no trânsito e na conseqüente deterioração da qualidade de vida da população, seja pela poluição em si, seja pelo stress que elas causam a todos nós.

A triste realidade é que a ampliação dos serviços de entregas de pizzas, farmácias, restaurantes, SEDEX, entregas de pacotes e tantos outros fizeram com que os “motoqueiros” passassem a barbarizar. Começaram criando pistas de rolamento sobre as faixas que dividem as pistas de rolamento, fazendo com que seja uma verdadeira temeridade saltar de um automóvel em um sinal, por exemplo. Contudo, o mais grave é que as motos passaram a ocupar as calçadas com a maior tranqüilidade. Hoje, a circulação de motocicletas sobre as calçadas do Rio de Janeiro é absolutamente rotineira.

Quem anda pela Avenida Brasil sabe que as motocicletas possuem “retornos especiais”. Elas sobem nas passarelas e, simplesmente, passam de uma pista para a outra pela via mais fácil. Mas o problema é de difícil solução, visto que certamente não se sabe se ele é da esfera federal, da estadual ou da municipal. Assim como no caso das gigogas, que estão invadindo as praias, as autoridades “competentes” trocam acusações entre si e empurram a responsabilidade para um terceiro, ou quarto ou quinto.

Presidente também faz

Não sei por que ainda me revolto com isto. Acredito ser um dinossauro perto da extinção, visto que é muito comum que os novos “pedestres” passem com suas motos sobre calçadas em frente a delegacias, quartéis da PM, postos da guarda municipal e outros órgãos públicos destinados a manter a “Lei e a Ordem” aqui no pedaço. Como ainda não perdi, de todo, a capacidade de indignação, de quando em vez reclamo com um desses modernos “cavaleiros de triste figura”. A última que ouvi foi: “O presidente também faz coisa errada”.

Não sei se o cara estava certo ou não. Mas que achei a resposta fabulosa, lá isto eu achei. A minha avó materna dizia: “Pau que dá em Chico, dá em Francisco”. A frase está um pouco velha, mas ainda tem o seu valor. Vamos atualizá-la. “Pau que dá em Chico, dá em Kiko”. O que a minha avó queria dizer é que a lei tem que valer para todos. Ela tinha razão.

Outro dia me explicaram que, por se tratar de um delito menor, as autoridades, ocupadas que estão em combater a criminalidade, postergam medidas contra os invasores de calçadas. Aí eu fiquei mais calmo, pois se há algo que tem sido muito eficiente no Rio de Janeiro é o combate à criminalidade. Cenas como tiroteios em comunidades carentes, balas perdidas, incêndios de ônibus e pneus em estradas, tiroteios na Linha Amarela e na Linha Vermelha são reminiscências de um longínquo passado que, graças ao bom Deus, não volta mais.

Mas voltemos ao nosso problema ambiental urbano. Como tenho hábito de correr pelas manhãs, tipo 6 horas, vejo entregadores de jornais passeando de edifício em edifício, sobre as calçadas, entregando as edições diárias, inclusive de uma folha na qual um dos principais colunistas desenvolve uma útil, corajosa e bela campanha pela devolução das calçadas para os pedestres de verdade, gente como eu ou você. É uma triste ironia. Certa vez, correndo na ciclovia de Copacabana, quase fui atropelado por uma moto que se utilizava da “motociclovia”. Fui reclamar com um membro de nossa valorosa Guarda Municipal que me disse não ter competência para “trânsito”, pois o problema era da PM; fui ao PM de uma cabine na Avenida Atlântica que me disse que ciclovia é coisa do Município.

Em 30 minutos

A utilização de motos para assaltos no trânsito é, também, muito comum. Uma moto com uma dupla bate o capacete no vidro de um automóvel e assalta a motorista, pois em geral eles preferem mulheres desacompanhadas ou com crianças.

Uma possível solução para o problema seria multar a empresa que se utiliza do motoqueiro. Assim, se é um entregador de pizza, multa-se a pizzaria; se de jornal, a empresa jornalística e por aí vamos.

O chamado “motoboy”, no fundo, é a expressão do desemprego que grassa em nossa sociedade e que se disfarça em “trabalhos” absolutamente desqualificados profissionalmente que, por pagarem em geral pelas corridas, incentivam a irresponsabilidade e o risco para toda uma população. E nós, igualmente, somos responsáveis pois nos utilizamos de tais serviços que prometem entregar pizzas em menos de trinta minutos, sob pena de nada cobrarem se atrasarem, e aí ficamos em casa torcendo para que o maluco da motocicleta cometa barbaridades no trânsito.

Vamos torcer para que os nossos filhos não sejam atropelados pelo entregador da pizza que encomendamos por preguiça de dar um pulinho na esquina.

(1) She used to work in a diner
Never saw a woman look finer
I used to order just to watch her float across the floor
She grew up in a small town
Never put her roots down
Daddy always kept movin’, so she did too
.
Somewhere on a desert highway
She rides a harley-davidson
Her long blonde hair flyin’ in the wind
She’s been runnin’ half her life
The chrome and steel she rides
Collidin’ with the very air she breathes
The air she breathes
.
You know it ain’t easy
You got to hold on
She was an unknown legend in her time
Now she’s dressin’ two kids
Lookin’ for a magic kiss
She gets the far-away look in her eyes
.
Somewhere on a desert highway
She rides a harley-davidson
Her long blonde hair flyin’ in the wind
She’s been runnin’ half her life
The chrome and steel she rides
Collidin’ with the very air she breathes
The air she breathes.

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