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Bom até debaixo d’água

Fotógrafo Ricardo Azoury diz que proibição a mergulhos em áreas protegidas é ruim para conservação. Para ele, Brasil tem pontos excepcionais para a prática, mas são poucos.

21 de dezembro de 2006 · 17 anos atrás

Ricardo Azoury é um fotógrafo diferente. Nunca aceitou trabalhar em redação de jornal ou revista onde a rotina é ditada pelas pautas do dia-a-dia e pelo bel prazer dos editores. Sempre preferiu a liberdade que só a fotografia autônoma pode proporcionar. Desde que se formou em Belas Artes pela UFRJ, em 1979, tem vivido das imagens que captura com sua câmera. Trabalhos “free-lancer” aqui, venda de fotos para agências acolá, muita criatividade, luta e, sobretudo, uma competência impressionante que resulta em fotos belíssimas e originais têm garantido o seu ganha-pão nos últimos 27 anos.

Ao longo de sua vida profissional, é verdade, Azoury sofreu. Brigou com donos de publicações em que colaborava, recusou-se a vender seu trabalho por preços aviltantes e, para garantir sua independência, foi um dos pioneiros sócios-fundadores da agência Tiba, por meio da qual passou a comercializar diretamente suas fotos.

Em sua carreira já fotografou Fórmula 1, futebol, turismo e até pedras preciosas. Não é de surpreender, contudo, que a paixão por liberdade acabasse por levá-lo na direção da fotografia de natureza. Durante um ano e meio acompanhou o botânico Gustavo Martinelli Brasil afora, fotografando seu trabalho de pesquisa de bromélias. Nesse périplo, palmilhou a Mata Atlântica de fora a fora desde o Ceará até o Rio Grande do Sul. O resultado científico da labuta de Martinelli, com as análises de todos os espécimes coletados, fica pronto em meados de 2007. Trará em seu bojo a listagem de cinco novas espécies previamente desconhecidas. Uma delas foi batizada em homenagem ao trabalho de Azoury. Chama-se Pitcairnia azouryi.

Honraria mais que justa. Afinal, o fotógrafo cujas lentes imortalizaram o Pantanal, a Amazônia, a Caatinga e as trilhas do Rio sob todos os ângulos imagináveis merece também ter seu nome eternizado e não há melhor maneira de fazê-lo do que por meio de um exemplar endêmico da mata de maior biodiversidade do Brasil.

Em 1997, depois de caminhar o Parque Nacional da Floresta da Tijuca de um extremo ao outro para publicar o livro Transcarioca, Azoury foi enviado à África do Sul pela Ícaro, revista de bordo da VARIG, para fotografar os cinco dias de “trekking” da trilha Tsitsikama. Na ocasião foi convidado para mergulhar entre tubarões brancos na Cidade do Cabo, mas pressionado pelo tempo, preferiu registrar o acasalamento dos leões no Parque Nacional Kruger.

Voltou à África no ano seguinte, agora patrocinado pela South African Airways para registrar a visita de uma equipe técnica do Ibama ao Parque Nacional da Montanha da Mesa. Dessa vez, não titubeou. Vestiu a roupa de neoprene, entrou na jaula e submergiu nas águas geladas do Atlântico.

Foi o primeiro mergulho de Azoury, que quando saiu d’ água estava mudado. O encontro com o mais poderoso de todos os predadores encantou-o para sempre. A leveza do animal, as cores do mundo subaquático e a sensação de se estar em outro mundo o levaram a querer repetir a experiência.

Ao voltar ao Brasil, fez vários cursos de mergulho e de fotografia subaquática e não parou mais. Depois daquele dia, Azoury já submergiu outras 450 vezes, sempre com sua máquina em punho.

Tanto tempo debaixo d’ água resultou em uma vasta e belíssima coleção de fotos, cuja nata foi selecionada pela Editora Andrea Jakobsson e publicada no livro Submerso – Brasil Oceânico. O livro, lançado no dia 14 de dezembro, vem enriquecido pelo texto correto e fluído do jornalista Vinícius Dônola e por legendas das espécies feitas pelo biólogo Marcelo Szpilman.

Em Submerso – Brasil Oceânico, Azoury retrata alguns dos pontos mais bonitos do universo subaquático do Brasil – Fernando de Noronha, Recife, Abrolhos, Guarapari, Arraial do Cabo, Rio de Janeiro, Ilha Grande, Santos e a Reserva do Arvoredo, em Santa Catarina.

Em seu trabalho, Ricardo Azoury usa somente a luz natural, evitando os flashes. “Uma das características deste trabalho é que, a cada foto, você tem um ambiente diferente, uma luz diferente, que é a luz que estava lá na hora”.

Muitas das espécies assim fotografadas encontram-se em risco de extinção. Nesse sentido Submerso – Brasil Oceânico, infelizmente, talvez seja para elas o que a Pitcairnia azoury será para o fotógrafo: a garantia de um registro para a posteridade.

Para saber um pouco mais sobre esse universo subaquático ameaçado, conversei com Ricardo Azoury:

Pedro: Desde tempos imemoriais, a Baía de Guanabara tem sido saudada como um dos maiores aquários do mundo. O naturalista inglês Joseph Banks, que nos visitou em 1769, comentou que “jamais havia visto uma enseada tão rica em peixes quanto a do Rio de Janeiro: não há um dia em que não é içado a bordo um peixe que não seja totalmente novo”. Oswald Brierly, que aqui esteve em 1842 e 1867, se debulhou em elogios aos abundantes cardumes de golfinhos e toninhas. Mais recentemente, no século XX, mergulhadores e pescadores cujos nomes passaram à história, como Jorge Otero, Arduíno Colasanti e Castro Maya falam de uma Baía de Guanabara e uma Baía de Angra inigualáveis em quantidades e espécies de peixes. Como é a situação hoje?

Azoury: Nunca mergulhei dentro da Baía de Guanabara e sempre sou desaconselhado por todos. Alguns amigos que mergulham para pescar profissionalmente contam que a sujeira é de dar medo, com visibilidade praticamente nula. Para vender o que pescam, mentem que foram pescados fora da baía. Ouço também que se pescava muito robalo e garoupa, hoje uma raridade. Na baía de Angra mergulhei algumas vezes. Está um deserto! Poucos peixes pequenos e água turva. Mais uma vez, antigos mergulhadores relatam que há não muito tempo (15 ou 20 anos) a água era transparente e cheia de vida. Alguns comparavam ao Caribe. Vendo o que é hoje, parece conversa de pescador…

Pedro: Nas grandes publicações internacionais, o Brasil não figura no cenário mundial de mergulho como um país cujo litoral abriga belezas imperdíveis. Obviamente, entretanto, quem folheia Submerso – Brasil Oceânico fica encantado e só pode concluir que nosso país também é bom de mergulhar. O que o Brasil tem de especial que não pode ser visto no Caribe ou no Pacífico?

Azoury: De um modo geral, o Brasil tem poucos pontos excepcionais para se mergulhar. Mesmo assim, poderia estar no atlas mundial de mergulho. Fernando de Noronha (PE) tem tudo que os mergulhadores procuram: água transparente e quente, muita vida marinha, mergulhos o ano inteiro, abrigados pela geografia do arquipélago (mar de dentro e mar de fora) e um espetacular cenário em terra. Muitos outros pontos no Nordeste têm as mesmas características. Arraial do Cabo (RJ) também abriga todas essas condições, menos a temperatura da água, que é fria. Guarapari (ES), por ser o lugar onde as correntes do sul e as do norte se encontram, tem a maior diversidade de fauna no Brasil. Por fim, ainda há Abrolhos (BA), cujas formações de coral são únicas no Atlântico.

Pedro: É preciso louvar o Ministério do Meio Ambiente e o Ibama, que recentemente declararam diversas novas áreas de proteção ambiental, sobretudo em terra, nos ecossistemas da Amazônia, Mata Atlântica e Cerrado. Os oceanos brasileiros estão bem protegidos?

Azoury: Não, e onde tem alguma proteção o que há é proibição de mergulhos, o que não faz sentido algum porque mergulho é uma atividade de contemplação e o mergulhador é um aliado na proteção.

Pedro: Pesquisas de biólogos marinhos apontam para uma sensível redução das populações de peixes, que seria causada por uma atividade pesqueira desregulada e predatória. Quem mergulha está vendo isso? É evidente a diminuição do tamanho dos espécimes e a redução dos estoques de peixes?

Azoury: Todos os mergulhadores antigos confirmam isso. Todos os pescadores também. Quem parece não ver, é o governo federal, que estimula a atividade da pesca financiando fábricas de gelo. É necessário haver um equilíbrio da questão social com o tamanho do estoque de peixes. No litoral, o pescador artesanal (que hoje está em extinção), precisa ir cada vez mais longe porque não tem mais nada por perto.

Pedro: O aumento exponencial do ataque de tubarões a surfistas e banhistas no Recife, em Pernambuco, é resultado da sobrepesca?

Azoury: Em setembro, mergulhei nos naufrágios do Recife, que ficam muito perto da costa. Avista-se muito lambaru, às vezes o bico fino e quase nunca o cabeça chata, que é o principal responsável pelos ataques nas praias. Nenhum deles ameaça os mergulhadores (o que é o normal). Ao contrário, mergulhador adora quando um aparece. As causas dos ataques têm que ser estudadas com muita seriedade. É impressionante a proibição total da entrada de banhistas na água em todas as praias da cidade. A situação configura um desastre cujas consequências ainda não foram muito bem avaliadas. É preciso executar algumas ações urgentes, como um aparelhamento maior nos hospitais. O triste é que, se as causas dos ataques, como alguns estudiosos apontam, forem mesmo a construção do quebra-mar do porto de Suape e o desmatamento dos manguezais para a futura refinaria da Petrobras, mais uma vez um projeto econômico foi executado de forma ambientalmente irresponsável, prejudicando a qualidade de vida de milhões de pessoas!

Pedro: Você mergulhou na Cidade do Cabo, com tubarões brancos. Há, no Brasil, alguma experiência desse quilate?

Azoury: Nas páginas de Submerso – Brasil Oceânico podemos ver fotos de experiências visuais da mesma ordem de grandeza. Na laje de Santos (SP), nos meses de inverno, é muito comum visualizar cardumes de arraias mantas. Em Abrolhos se mergulha com badejos quadrado enormes. No litoral próximo a Paranaguá, no Paraná, uma universidade local desenvolve um projeto com recifes artificiais, que criou condições para um ajuntamento inesperado de meros. Em Noronha, tem a Baía dos Golfinhos, só que hoje é proibido o mergulho por lá, em seus arredores e onde o cardume estiver passando! A pergunta é: por quê? Na resposta, um monte de achismos. Acho isso e acho assado. Os prejudicados: todos que poderiam ter uma experiência inesquecível com todas as boas conseqüências decorrentes, que só a experiência pessoal é capaz de desenvolver.

Pedro: Quem vai à praia em Ipanema, no Rio de Janeiro, presencia traineiras pescando diariamente próximas ao continente. Ali perto, o arquipélago das Cagarras foi recentemente protegido (graças, entre outros, a esforços de vários mergulhadores), na categoria de Área de Relevante Interesse Ecológico. Há sinais de que a proteção está dando resultado ou existe apenas no papel? Cagarras deveria ser elevado a Parque Nacional Marinho ou incorporado ao Parque Nacional da Floresta Tijuca?

Azoury: Na prática, as Cagarras e arredores não estão protegidos em nenhuma forma. Mergulhando, é comum ver peixes mortos no fundo do mar, o que é uma evidência do uso de dinamite para a pesca. A pesca de arrasto segue sendo realizada “normalmente”. Não defendo a criação de um parque marinho, pois a experiência com ações do Ibama em Abrolhos, Arraial do Cabo e no Arvoredo são totalmente incompreensíveis de um ponto de vista científico e muito ofensivas aos mergulhadores. Todas as vezes que fui a Abrolhos pude observar que se pesca muito perto dos limites do parque, mas o controle do Ibama é sobre os mergulhadores. Decretaram ser proibido mais de três mergulhos por dia! Motivo? O mais importante: não estressar muito os peixes. Isto é: no quarto mergulho começa o estresse. Matar o peixe a um metro do parque, pode! Conseqüência? Menos mergulhadores interessados em ir até lá e com isso menos arrecadação de impostos e menos pressão da sociedade para que Abrolhos continue como um santuário onde a pesca é proibida. Este mesmo círculo vicioso também está acontecendo hoje Bombinhas, Santa Catarina, com prejuízo para toda a comunidade.

Pedro: Recentemente tem se discutido reduzir a área de proteção em torno de Abrolhos, como você vê isso?

Azoury: Essa redução está sendo proposta pelas empresas de petróleo, o que é no mínimo suspeito.

Pedro: O que você recomenda a quem está começando a mergulhar no Brasil?

Azoury: Que escolha uma boa escola de mergulho, respeite os limites ensinados e saiba que o mergulho no Rio de Janeiro, em particular, e no Brasil, em geral, pode até não ser o melhor do mundo, mas ainda assim é um ótimo mergulho.

Para quem nunca submergiu em águas nacionais e tem alguma dúvida sobre as belezas que Azoury afirma existirem, basta dar uma espiada nas páginas de Submerso – Brasil Oceânico.

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