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As origens da ansiedade amazônica I

Até metade do século XVIII, a visão da Amazônia limitava-se a elementos pontuais da natureza. O gigantismo da floresta era tão ignorado quanto sua destruição

6 de abril de 2006 · 18 anos atrás
Imagem área de corte raso na Amazônia. Crédito: Simon Rawles / WWF-UK

Assim como eu, muitas pessoas ficaram com o coração na mão ao ler recentemente na grande imprensa – tanto nacional quanto estrangeira – a notícia de que a Floresta Amazônica brasileira pode chegar ao ano 2050 com apenas metade da sua cobertura original.

A projeção do cartógrafo Britaldo Soares Filho, da Universidade Federal de Minas Gerais, publicada na revista Nature, não chega a ser uma grande novidade para os estudiosos do assunto. Infelizmente, uma perda total da ordem dos 50% nas próximas décadas – ou 20% no melhor cenário – não é implausível. Ela é consistente com outras projeções que vêm sendo feitas nos últimos anos. A verdade é que alguns dos maiores conhecedores daquela enorme floresta já estão quase entregando os pontos, considerando ser irreversível o processo de desmatamento fora das unidades de conservação.

A luta pela salvação deste tesouro de vida, portanto, já se tornou dramática. É fundamental avançar na criação de novas reservas e, ao mesmo tempo, continuar lutando pela estabilização da fronteira do desflorestamento. Como se dizia no passado, é preciso que isso aconteça “na lei ou na marra”. É essencial juntar esforços governamentais e não governamentais na implementação articulada das várias estratégias possíveis: incentivo, regulação, fiscalização e repressão. Estou convencido de que, na esteira deste processo, a consciência da Floresta Amazônica como um patrimônio ambiental uno e único, cuja perda seria catastrófica para o Brasil e o planeta, tende a crescer no futuro próximo, para além dos seus tradicionais movimentos cíclicos na opinião pública mundial.

Percepções históricas

Diante deste quadro, surge a seguinte pergunta na mente do historiador ambiental: a partir de que momento a Floresta Amazônica começou a ser vista como uma preciosidade natural ameaçada, passível de ser destruída pela ação humana? Assim como em outros casos, é surpreendente constatar aqui as metamorfoses da visão humana diante do mundo natural. Não tentarei discutir, no espaço limitado de uma coluna, as representações culturais da Floresta Amazônica antes da chegada dos europeus. A partir do século XVI, no entanto, ela foi percebida, ou não percebida, de diferentes maneiras.

“Diante deste quadro, surge a seguinte pergunta na mente do historiador ambiental: a partir de que momento a Floresta Amazônica começou a ser vista como uma preciosidade natural ameaçada, passível de ser destruída pela ação humana?”

Desde o início, de toda forma, mesmo antes de ser minimamente conhecida, a região foi vista pelos europeus como uma fonte de grandes recursos naturais e econômicos. Em 1501, por exemplo, a coroa espanhola apresentou a seguinte lista ao navegador Vicente Yáñez Pinzón, indicando os elementos potencialmente desejáveis que ele deveria buscar na região do grande rio que percorreu, cerca de 20 léguas, no início de 1500: “Tanto ouro como prata, cobre ou qualquer outro metal, pérolas e pedras preciosas, drogas, especiarias e quaisquer outras coisas de animais, pescados, aves, árvores e ervas e outras coisas de qualquer natureza ou qualidade”.

A região era ainda uma grande desconhecida, estando o próprio nome do rio em disputa. Para alguns ele era o “Santa Maria de la Mar Dulce”, para outros o “Marañon”. Após o famoso relato da expedição comandada ao longo de todo o curso pelo capitão Francisco Orellana em 1541-42, escrito por frei Gaspar de Carvajal, o nome de “Amazonas” começou a ser associado ao gigantesco caminho d’água, tendo em vista a notícia das poderosas guerreiras que nele existiriam, mantendo várias tribos em estado de vassalagem.

Existe um aspecto que merece ser especialmente ressaltado. O interesse por elementos pontuais, que pudessem gerar riqueza comercial, obscureceu em grande parte a visão da paisagem como um todo. Ao contrário do que se imagina, os primeiros relatos do encontro dos europeus com a região amazônica, fazendo um evidente contraste com a imagem hoje dominante, não expressaram grande espanto diante da gigantesca floresta, daquele oceano de árvores tropicais.

Valorização tardia

Para entender esse fenômeno é preciso, em primeiro lugar, examinar os seus aspectos culturais e subjetivos. A valorização das florestas como um todo, no contexto do pensamento ocidental, é um fenômeno tardio. Foi a emergência da ciência natural moderna, particularmente a partir do século XVIII, que disseminou a ideia da importância sistêmica das florestas para a qualidade do clima, a fertilidade dos solos e a oferta regular de água. A cultura romântica dos séculos XVIII e XIX, por outro lado, valorizou as grandes paisagens florestais no contexto de uma estética do sublime.

O navegador Vicente Yáñez Pinzón. Imagem: Wikipédia.

Ao contrário, a tendência que pode ser observada nos primeiros séculos da colonização, tanto na região da Mata Atlântica quanto da Floresta Amazônica, foi a de destacar muito mais os elementos marcantes da fauna e da flora locais do que o fundo florestal que lhes servia de habitat. Papagaios, macacos, cajus e maracujás – ou, no caso da Amazônia, tartarugas, peixes-boi, salsaparrilhas e copaíbas – receberam bem mais atenção do que a floresta como um todo.

Ao mencionar a relativamente pequena importância atribuída à paisagem florestal pelos primeiros cronistas europeus na Amazônia, no entanto, é preciso também considerar um fator objetivo que cada vez vem sendo mais confirmado pela pesquisa arqueológica e historiográfica. A escala e intensidade da presença indígena nas margens dos rios da bacia amazônica, ao que parece, foi bem maior do que se imaginava.

A ocupação da Várzea por grupos humanos começou há pelo menos 11 mil anos, com o posterior estabelecimento de sociedades bastante pesadas e hierarquizadas, cuja agricultura intensiva provocou considerável desflorestamento. No momento do encontro, os primeiros cronistas ainda puderam noticiar a existência de vilas fortificadas, estradas, exploração agrícola produtora de apreciável excedente, intensa movimentação de canoas etc. Um mundo nativo que depois se desagregou e se despovoou profundamente, inclusive por força do choque epidemiológico trazido pelo contato com os europeus. De tal maneira que, ironicamente, as densas matas observadas pelos naturalistas viajantes do século XIX seriam complexos de vegetação florestal secundária, resultantes da sucessão ecológica que em alguns séculos reverteu áreas de cultivo abandonadas em forte vegetação arbórea.

De toda forma, mesmo aceitando a validade das pesquisas que revelam ter sido a paisagem florestal encontrada pelos primeiros cronistas, ao menos no espaço da várzea, bem mais aberta do que se supunha, ainda assim existiria na região uma massa verde de grandes proporções. De tal maneira que a relativa ausência de atenção para com o conjunto da floresta não pode ser entendida sem considerar os fatores culturais e subjetivos que moldaram o olhar dos viajantes.

Olhar missionário

“O elogio dessa paisagem, aliás, não aparece em termos do seu valor intrínseco, mas sim da sua possibilidade de conversão em algo mais civilizado e palatável”

A imagem da natureza amazônica na cultura ocidental foi marcada, ao menos até o final do século XVIII, por escritores eclesiásticos, especialmente missionários que acompanharam as primeiras expedições e, mais tarde, participaram da montagem das missões permanentes e aldeamentos indígenas sob controle das ordens religiosas. O olhar desses intelectuais da Igreja estava definido por uma construção seletiva da paisagem, segundo seus próprios referenciais. Seu interesse pela sobrevivência dos indígenas, por exemplo, enquanto populações potencialmente convertíveis ao cristianismo, era superior ao dos outros membros da elite econômica e política.

Era fundamental para a Igreja, no contexto da contrarreforma na Europa, aumentar a base demográfica do catolicismo. A busca por esse “monopólio das almas” era tão importante quanto a busca pelo monopólio de riquezas naturais, que as ordens religiosas compartilhavam com os agentes leigos da colonização econômica. Mas o foco nos recursos naturais era um denominador comum desse processo, onde a conquista política e a catequese espiritual constituíam dois lados da mesma moeda (apesar da existência de um complexo jogo de convergências e divergências entre representantes da Igreja e autoridades coloniais).

No texto de Carvajal, já mencionado acima, o que aparece com maior destaque e recorrência no que se refere aos usos da natureza são as possibilidades alimentares apresentadas sob a forma de tartarugas, papagaios, peixes-boi, macacos, perdizes, gatos, diferentes tipos de pescado e “biscoitos muito bons que os índios fazem de milho e mandioca e muitas frutas de todos os gêneros”. Também aparece, por certo, o desejo pelos metais e pedras preciosas, cujos sinais apareciam ocasionalmente em joias usadas pelos índios e nos relatos sobre a abundância de ouro e prata “terra adentro” (pelo menos assim entendiam os ouvidos ávidos dos europeus).

O relato menciona ademais, entre outros elementos daquele universo natural, a existência de algodão para fiar, de “abundancia de mosquitos” e de árvores frutíferas. As árvores, aliás, aparecem basicamente em comentários indiretos, como no caso do corte de madeiras para fazer ou restaurar barcos, de vilas fortificadas com “uma muralha de madeiros grossos” e da busca de refúgio noturno em “robledales”. É significativo o fato de o autor utilizar a ideia de uma floresta de robles (Quercus pirenaica), uma árvore típica da península Ibérica, para identificar a mata amazônica. Um claro indicativo de como foi difícil traduzir culturalmente, aos olhos dos europeus, uma biodiversidade e uma paisagem tão diferentes da que estavam acostumados.

Novo Descobrimento do Grande Rio das Amazonas” do padre Cristóbal de Acuña.

O elogio dessa paisagem, aliás, não aparece em termos do seu valor intrínseco, mas sim da sua possibilidade de conversão em algo mais civilizado e palatável: “É terra temperada, de onde se colherá muito trigo e se cultivaram todas as frutas. Ademais é aparelhada para criar todo gado, porque nela existem muitas ervas como na nossa Espanha”.

Não é muito diversa, no essencial, a visão que aparece em outros relatos produzidos por escritores eclesiásticos no século seguinte. No famoso “Novo Descobrimento do Grande Rio das Amazonas” do padre Cristóbal de Acuña, publicado em 1641, com base na viagem comandada por Pedro Teixeira em 1637-39, reaparece o mesmo padrão básico de incorporação da natureza amazônica na cultura europeia, apesar de apresentado com maior riqueza de detalhes e capacidade expositiva. O texto sintetiza a visão da época sobre a geografia do rio Amazonas, incluindo sua origem, as peculiaridades do seu desenho e suas principais entradas fluviais.

Fornece também uma visão mais explicita, mesmo que breve, da paisagem florestal, ao falar na “frescura de todas as suas margens, que coroadas de várias e belas árvores, parece que com insistência estão sempre desenhando novos países, onde a natureza se esmera e a arte se manifesta”. O núcleo da narrativa, no entanto, continua sendo a descrição individual dos elementos naturais, apesar de agrupados em seções delineadas ao estilo do saber enciclopédico: bebidas, frutas, pescados, tartarugas, caças, madeiras, metais, etc. O eixo econômico da colonização, segundo Acuña, deveria estar centrado no cultivo de quatro produtos especialmente promissores: as madeiras, o cacau, o tabaco e a cana-de-açúcar, este último derivado da impressão do autor de que os terrenos da várzea eram do tipo massapé, que no Nordeste alimentava os melhores canaviais.

Destruição omitida

“A imagem vigente na conquista da Amazônia era ainda a de uma enorme abundância de elementos naturais, que não poderia ser ameaçada pela ação humana, mesmo quando as práticas produtivas dos índios e dos primeiros colonos parecessem rudimentares e agressivas.”

É importante ter em mente que em nenhum desses relatos quinhentistas e seiscentistas aparecem preocupações com a exploração destrutiva dos recursos da natureza e, menos ainda, com a possibilidade de a floresta ser devastada. Acuña menciona, por exemplo, a utilização do timbó – veneno vegetal usado pelos índios para intoxicar os peixes e facilitar a sua retirada na superfície da água – sem fazer qualquer juízo crítico sobre essa prática. A imagem vigente na conquista da Amazônia era ainda a de uma enorme abundância de elementos naturais, que não poderia ser ameaçada pela ação humana, mesmo quando as práticas produtivas dos índios e dos primeiros colonos parecessem rudimentares e agressivas.

Apenas no final do século seguinte, na segunda metade do XVIII, começa a aparecer uma nova percepção, ainda que restrita do ponto de vista analítico e geográfico. É neste momento que poderemos encontrar os primórdios da ansiedade e do temor que cada vez mais, ao meu juízo, se fará presente na opinião pública mundial: a constatação de que os valiosos recursos da natureza amazônica podem ser devastados, ou mesmo aniquilados, por uma exploração brutal e ignorante. É o que veremos na próxima coluna…

*Editado às 21h50, do dia 01/04/2019, para melhoria da diagramação e recorte de fotografias. O texto não foi alterado.

 

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