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Rema, rema, remador: caiaque

Em corredeiras, cachoeiras ou águas calmas e inóspitas, o caiaque é uma embarcação ágil, que exige de seus tripulantes muita disciplina e perseverança.

4 de novembro de 2005 · 18 anos atrás

Para quem gosta de uma dose extra de emoção no seu passeio, cruzando rios, corredeiras ou até mesmo alguns trechos de mar aberto, uma excelente opção é escolher o seu destino e alugar um caiaque. Na coluna passada, comentei sobre divertidos passeios a bordo das canoas canadenses, maiores, estáveis e de grande autonomia, permitindo aos seus tripulantes o deleite de longas travessias através de águas calmas. Só que no caiaque a situação é um pouco mais complexa – seu manuseio requer concentração, técnica e prática, exigindo mais paciência para treinar e mais adrenalina para experimentar.

“Estabilidade, só de cabeça para baixo”, é o título do capítulo em que o economista e aventureiro de diversas modalidades de esportes outdoor, Cláudio de Moura Castro, conta suas aventuras e desventuras durante o aprendizado das técnicas para conduzir um caiaque e suas respectivas viagens. O livro Meio século no limiar do perigo: Memórias de um aventureiro amador, que será lançado no final do ano, traz as memórias do autor das suas inusitadas situações durante uma vida descobrindo o mundo dos esportes de aventura.

Ao explicar um pouco das origens da embarcação e da lógica de sua arquitetura o autor afirma, bem humorado, que o caiaque “é um dos barcos mais satanicamente instáveis jamais construídos”. Por que satânico? A resposta remonta ao cenário em que foi projetado, na região ártica da América do Norte e Groenlândia, onde foi idealizado por esquimós. Lá, como a temperatura da água fica próxima de zero grau, uma vez dentro dela, um ser humano teria apenas uns quinze minutos com força suficiente para sair ainda com vida. Dadas essas circunstâncias, o caiaque foi criado com o objetivo de evitar que seu remador vire e caia nessas águas geladas, certo? Não, é justamente o contrário! E é por isso que sua criação desafia o bom senso.

“Na verdade, a única posição em que um caiaque fica estável é emborcado, de barriga para cima e caiaqueiro para baixo”, desabafa Cláudio. Além disso, é uma embarcação bem desconfortável, sendo “mais para vestir do que para entrar”, pois boa parte das manobras é realizada em conjunto com as cadeiras do remador, acompanhando seu movimento. Ou seja, tem que estar tudo bem apertado, justo e sem tolerância de espaço sobrando para que seja bem operacionalizado. Depois de “vestido”, ainda prende-se por cima uma saia de neoprene, para evitar que entre água no caiaque.

Duro aprendizado

Mas se esse esporte sugere tanto sofrimento, por que o número de adeptos cresce cada vez mais? É fácil encontrar a resposta ao testemunhar caiaqueiros brincando nas corredeiras rio abaixo. O grande desafio inicial dessa modalidade é o domínio da técnica de “rolagem” ou “rolamento esquimó”, em que o tripulante, ao ter seu barco virado, consegue reverter essa situação e recolocá-lo na posição original em poucos segundos. Assim, não precisa interromper o passeio nem sair da embarcação para retornar à margem e recomeçar os preparativos.

Mas para aprender não é fácil. Só depois de treinar muito em uma piscina (sim, nada de corredeiras no início), Cláudio conseguiu reproduzir a técnica em águas calmas. O iniciante que ainda não domina a rolagem tem que tirar a saia de neoprene, deixar a água entrar no barco, sair dele e depois virá-lo manualmente, arrastá-lo até a margem mais próxima, tirar a água e só então reiniciar a viagem. Apesar do tempo e esforço desperdiçados, para ele o pior era a assinatura de iniciante. “Virar, todos viram, até os melhores artistas das piruetas. Sair do barco é que é a humilhação”, conta ao longo do relato de todo seu empenho e obstinação em se aperfeiçoar no esporte, inclusive alugando vídeos de técnicas para assistir em casa, de pernas para o ar no chão de sua sala, segurando remos imaginários e tentando imitar os movimentos da tela.

Conforme for se habituando com as técnicas, o caiaqueiro pode aos poucos evoluir nas marolas e enfim arriscar algumas investidas em águas mais agitadas e brincar na turbulência das chamadas “águas brancas” que, segundo Cláudio, é onde está a verdadeira diversão. Mas para atravessar corredeiras, atenção — tem-se que ficar atento à classe do rio, que define o nível de dificuldade da incursão. Um rio classe II é para iniciantes e um classe III já oferece seus desafios, enquanto um classe IV exige bem mais atenção, por exemplo. “O mais difícil é ler o rio. Para isso é preciso ter muita experiência”, alerta o autor. Ele recomenda que o tripulante aventure-se em um novo local apenas na companhia de alguém com um nível mais alto e que já conheça as peculiaridades do rio a ser navegado. Afinal, apesar de parecer que é a velocidade da água ou a altura das cachoeiras que elevam o risco do esporte, o verdadeiro desafio está nos obstáculos (como pedras e troncos), que podem estar visíveis ou invisíveis sob a água.

Nesse esporte, um dos riscos encontrados é o da “hidráulica”, um efeito similar àquele de quando entramos em uma vala na beira da praia e a rotação das ondas para trás impede que saiamos dela (um dos motivos pelo qual só entro na água quando vejo crianças e sexagenárias se aventurando, como a exímia nadadora que sou…). Nas corredeiras, esse fato faz com que o barco seja sugado para dentro das cachoeiras, podendo causar um acidente mais sério. E cabe lembrar: o corpo humano não bóia na espuma, devido à sua densidade reduzida, apenas na água. Portanto, seja cauteloso.

Viagens tranqüilas

Mas até os amantes das corredeiras merecem um descanso de vez em quando, e nem por isso precisam dar férias aos seus caiaques. A embarcação também permite longas viagens em águas tranqüilas, como o fez Cláudio Castro ao visitar o Alasca com dois amigos, um casal com o filho de 7 anos e suas duas guias multi-desportivas. Uma viagem de cinco dias, cruzando 70 milhas remando pelas baías, embocaduras e meandros dos rios da região de Valdez, já totalmente recuperada do seu acidente ecológico ocorrido há alguns anos, com o derramamento de óleo do petroleiro Exxon-Valdez.

Naquele passeio ele optou por um caiaque mais estável, de dois lugares, para enfrentar a rotina de cinco a sete horas de remo diárias, às vezes sob chuva, frio e mosquitos esfomeados. Mesmo assim, ele admirou a criatividade das guias no preparo de refeições saborosas, dada a restrição de ingredientes devido à pouca capacidade das embarcações. Testemunhou imagens impressionantes ao longo da travessia por entre icebergs e grandes geleiras. Ficou fascinado pela exuberância da fauna local e das peculiaridades da flora, com tantas opções de berries (blueberries, cloudsberries,raspberries e por aí vai). Observou o retorno dos salmões para morrer nas águas onde nasceram, e descobriu que os icebergs não são brancos, mas sim de uma variada gama de cores e tons e formas e texturas. Tudo com o fundo musical do canto das gaivotas.

Nada mal, não? Talvez por isso os esquimós estivessem mais preocupados com o ambiente que podiam desfrutar à sua volta do que com a projeção de um barco que, simplesmente, não virasse.

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