Esta semana eu estava realizando uma pesquisa para uma nova série de artigos intitulada “Limites”. Pretendia escrever sobre as façanhas realizadas pelo homem em prol da constante superação dos seus limites nos esportes outdoor, e que, muitas vezes cobram um preço alto demais, mesmo para objetivos tão nobres e ao mesmo tempo tão pouco compreensíveis para quem está de fora. Eis que hoje (sexta-feira, 19 de maio de 2006), recebo logo pela manhã uma notícia arrebatadora: Vitor Negrete, montanhista brasileiro experiente e carismático, não resiste à volta após alcançar o cume do Everest sem oxigênio e vem a falecer no Nepal. Não gosto de despedidas e não pretendo que esse artigo seja encarado como tal. Pelo contrário, gostaria de contar um pouco da história deste personagem do montanhismo brasileiro e, ao invés de dar um adeus, imortalizar suas realizações na busca de ir além dos horizontes de uma existência comum.
Descrever as expedições realizadas por Vitor Negrete deixa qualquer montanhista sonhando acordado por um bom tempo. Imaginem o que vem no currículo desse brasileiro de 38 anos, em que a chegada ao Aconcágua pela Face normal é mencionada no tópico “Outras Escaladas”. Realmente, essa deve ser uma empreitada fácil para quem já escalou o Aconcágua tantas vezes e por tantas vias diferentes, incluindo a Face Sul que é a rota mais difícil tecnicamente e perigosa. Em companhia de Rodrigo Raineri, seu parceiro de montanha, eles formaram a primeira dupla brasileira a alcançar com êxito este feito. Ainda chegou nesse mesmo cume pela Rota Noroeste, só que em escalada solo, e também duas vezes pela Rota Glaciar dos Polacos. Estamos falando de 6.962 metros de altitude ou a montanha mais alta da América do Sul.
Mas a quilometragem vertical de Vitor está apenas começando. As expedições para o Aconcágua serviram como treinamento e adaptação para um desafio maior – chegar ao cume do Everest. Em 2003, guiou uma expedição para o Acampamento-Base do Everest, aproveitando para escalar o Kala Patar (5.600m), o Gokio Ri (5.357m) e conhecer a região. Dito e feito. Em junho de 2005, mesmo com as condições do tempo desfavoráveis, Vitor Negrete chega ao cume da montanha, a 8.848 metros de altitude. Nessa viagem, ele e Rodrigo Raineri planejaram não utilizar os cilindros de oxigênios, mas mudaram a estratégia para alcançar o objetivo.
Ainda nas alturas, Vitor Negrete conquistou outros cumes, principalmente na Bolívia como o Huayna Potosi (6.088m), sendo uma vez guiando a expedição e outra em solo, Condoriri pelas rotas Asa Esquerda (5.532m) e Cabeça do Condor (5.648m) e Illimani (6.490m), dentre alguns exemplos.
E quem acha que é apenas na montanha que Vitor teve atuações expressivas vai ficar surpreso com o que vem por aí. Participou de circuitos de corridas de aventura atingindo seu auge na EMA (Amazônia), a competição mais exigente dessa modalidade em território nacional. Ainda conheceu o Ushuaia (Argentina) em cima de uma bicicleta, em uma expedição que partiu de Porto Alegre. Para concluir, esse atleta ainda foi recordista do Guiness-Brasil em 1994, após realizar uma expedição de bicicleta pela Rodovia Transamazônica.
O grande desafio, porém ainda estava por vir. Apesar de ter sido um dos poucos brasileiros a atingir o cume do Everest, Vitor Negrete queria completar o planejamento inicial e ser o primeiro brasileiro a realizar a expedição sem a utilização dos cilindros de oxigênio extra. Antes de continuar, acho que é necessário fazer uma observação, pois fui muito questionada hoje sobre o por quê da ausência dos cilindros de oxigênio. A chegada ao cume da montanha mais alta do mundo não seria o suficiente? Qual o sentido desse desafio? Essa é uma questão polêmica, mas vou me meter a tentar explicar.
Existe uma pesquisa que diz que a utilização de oxigênio extra reduz, na prática, 2.000 metros da altitude conquistada pelo atleta pela percepção da resistência do organismo humano. Isso significa que conquistar o Everest a 8.848 metros com esse recurso é o equivalente a conquistar um pico de 6.848 metros sem ele. Por esse motivo os atletas de alta montanha vêm buscando realizar essas expedições sem o auxílio dos cilindros, para efetivamente escalarem a altitude máxima. Entretanto, no topo do Everest, a quantidade de oxigênio disponível no ar é 70% menor do que ao nível do mar e o montanhista deve sofrer uma adaptação do seu organismo para conseguir aumentar a sua capacidade de absorção desse oxigênio para 60%, enquanto normalmente utilizamos em média 40%. Esse conjunto de fatores adversos, transforma essa expedição em algo que requer muito desprendimento de energia pelo atleta. Apenas para ilustrar, é sabido que, sem o oxigênio, uma progressão de 100 metros perto do cume do Everest demora em média uma hora de esforço físico, pois todo o empenho do organismo está focado em conseguir manter a respiração e a conseqüente sobrevivência do montanhista.
Imerso neste cenário, Vitor foi sozinho em direção ao seu objetivo. Apesar de acontecimentos que indicavam que ele não deveria persistir, como o saque ao seu acampamento e perda dos mantimentos, a indisposição física de seu parceiro Rodrigo Raineri e a pouca bateria de seu rádio por satélite, ele continuou e declarou: “Vou tomar cuidado”. No dia 15 de maio ele iniciou o ataque ao cume apenas com o equipamento básico e um rádio normal de freqüência, e conseguiu realizar com sucesso o seu sonho. Entretanto, após utilizar tanta energia para chegar ao topo do mundo, não resistiu à descida e enviou uma mensagem pelo rádio relatando seus problemas. O sherpa Dawa encontrou-o ainda com vida a 8.300 metros, mas às duas da manhã (horário de Nepal) do dia 19 de maio de 2006, Vitor Negrete não resistiu e faleceu no Acampamento 3.
Não imagino que esta seja uma história triste. Muito pelo contrário, enxergo aqui uma vida de sonhos e realizações, de persistência e força de vontade, além de muito amor pela vida. Assim como ele, vários outros deixaram este plano para iniciarem uma nova viagem, também com seus desafios. São personalidades apaixonadas pelos caminhos das montanhas, assim como nós.
Vitor Negrete – esse é um personagem que ficará para sempre na memória de todos os montanhistas brasileiros, como uma pessoa que fez do desafio seu ideal de vida. Um mito que sai de cena, no auge de sua carreira, ao alcançar o topo do mundo.
Boa viagem.
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