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Rico, pulverizado e sem Cerrado

É rotina ignorar as leis em Lucas do Rio Verde (MT), sobretudo as ambientais. Nem o sumiço do Cerrado ou a pulverização da cidade causaram alguma reflexão.

20 de abril de 2006 · 18 anos atrás
  • Marcio Isensee e Sá

    Marcio Isensee e Sá é fotógrafo e videomaker. Seu trabalho foca principalmente na cobertura de questões ambientais no Brasil.

Lucas do Rio Verde, localizado no coração do Mato Grosso, é uma homenagem a Francisco Lucas de Barros, um desbravador dos sertões, e ao rio Verde, que corta o município. Ele serviu de descanso a esses pioneiros, que ali contemplaram as águas verdes, contornadas por matas de galerias, de influência amazônica, típicas paisagens do nosso Cerrado.

Em 1980, a região foi declarada prioritária para fins de reforma agrária, privilegiando agricultores vindos do Rio Grande do Sul. A partir daí, as portas para os sulistas ocuparem a região nunca mais fecharam. Depois dos gaúchos, subiram paranaenses e paulistas. Todos vorazes, ocupando o mais rápido possível as intermináveis terras do Cerrado. A segunda geração dos que acabaram com a maior parte das florestas do sul do Brasil tinha em suas mãos essa nova oportunidade, uma região intacta para ser destruída.

Os preços das terras eram atrativos, e no sul as coisas começavam a ficar difíceis. O valor da propriedade era cada vez mais alto porque, pelas normas do mercado, à medida que os recursos vão se escasseando os preços aumentam. Além disso, o governo federal oferecia incentivo e financiamento a juros baixíssimos. Ocupar estas terras era irrecusável.

Assim os sulistas, com todo o seu empenho, dedicação e valentia, desbravaram o sertão e retiraram rapidamente tudo à base de motosserra, correntão e fogo. Mas esse esforço foi recompensado. O distrito de Lucas do Rio Verde foi criado em 1985. Tornou-se município em 1988. E não parou mais de crescer. Nem de cortar o Cerrado. Rapidamente outros povoadores chegaram, novas terras foram adquiridas, o município se estruturou e, a cada nova safra, a economia do lugar aumenta e o Cerrado diminui.

Lucas do Rio Verde ostenta o título de ter sido o primeiro município a colher a oleaginosa no Brasil. Se é verdade, não sei, mas posso imaginar a inveja que este título causa aos outros que gostariam de estampar no peito esta primeira conquista. Mas, a soja não anda sozinha. Por lá a produção de milho na safrinha é a segunda “menina dos olhos”, orgulho de qualquer cidadão local. O município tem o terceiro melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Mato Grosso, com boa infra-estrutura, serviços de saúde, água potável, pavimentação asfáltica e escolas. Tudo isso em troca do Cerrado.

É reconhecido como um município jovem, promissor, essencialmente agrícola. Não fossem as imagens de satélite mostrando a vegetação original, o passado tinha sido definitivamente esquecido na história do lugar, o que certamente agradaria a muitos. Basta nas páginas disponíveis na internet, louvando o processo de alteração e transformação dos espaços naturais, em áreas consideradas produtivas, feito sem qualquer responsabilidade, sem nenhum cumprimento das leis. Isso é descrito ou desejado por muitos que descrevem a trajetória do lugar, onde são os grãos que têm valor econômico e ditam a frequência das manchetes.

Imagem de Lucas do Rio Verde (MT) Foto: Ana Luíza Anache

Efeitos colaterais

Mas em março passado Lucas do Rio Verde teve um outro destaque. Com tanta devoção à eficiência agrícola não poderia ser diferente. Juntos, esforçados e incansáveis, seus povoadores produziram um novo espetáculo: a pulverização da área urbana da cidade com desfolhante. Grande parte da população foi atingida, algumas pessoas acabaram hospitalizadas, pequenos produtores perderam suas hortaliças, todas perfuradas pelo produto. Tudo isso às claras, diante de todos.

Os responsáveis nunca respondem pelos seus atos. Até hoje, a maioria dos produtores de grãos não respeita a legislação ambiental e ninguém é punido por isso.

O assunto foi notícia em muitos jornais. Pôde ser acompanhado em todo o país pela Voz do Brasil. Passado um mês do incidente, não há uma conclusão definitiva. A situação parece aquietar-se. Sindicatos, associações, os próprios produtores de grãos tentam justificar ou simplificar o caso. Talvez porque pulverização não seja novidade para o Cerrado, é rotina para quem circula por estas regiões, bem como o não cumprimento das leis.

O produto químico certamente é cancerígeno e se acumula no organismo humano. Não se sabe as consequências para as pessoas atingidas. Mas os efeitos não aparecem imediatamente, podem demorar alguns anos. Quando o câncer for diagnosticado, ninguém mais se lembrará do dia da pulverização urbana e aceitará a doença como destino, ou obra de Deus.

É por isso que descaso sempre prevalece. Os responsáveis nunca respondem pelos seus atos. Até hoje, a maioria dos produtores de grãos não respeita a legislação ambiental e ninguém é punido por isso. Ao contrário, vira destaque pela excelente contribuição à economia do país. E que ninguém ouse falar o contrário. Reflexo de uma queda de braço já conhecida no Brasil entre meio ambiente e agricultura.

O primeiro não consegue se impor em absolutamente nenhum assunto, a conservação do Cerrado perde sempre e isso é a nossa realidade. A agricultura é quem dita a regra do jogo. Ganha todas as disputas. Até o presidente Luís Inácio Lula da Silva aparece em horário nobre defendendo a agricultura, sua importância para a economia do país. Jamais ouvi um depoimento seu pela conservação do Cerrado. Assim são as prioridades nacionais. Graças ao esforço da sua população, do dinheiro público injetado em sua economia e da negligência ambiental do governo, Lucas do Rio Verde é hoje rico, pulverizado e sem Cerrado.

*Esse texto foi editado em 05/04/2024 para repaginação

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