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Sistemas agroflorestais e meio ambiente

Antigas como a humanidade, algumas práticas agroflorestais estão sendo deturpadas no Brasil para mascarar com verniz sustentável a prática de corte e queima da floresta.

3 de setembro de 2009 · 15 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

É provável que os leitores já tenham escutado a expressão “agroflorestal” em muitas ocasiões sem ter muita clareza do seu significado. Nesta nota se explica do que se está falando, da sua magnitude e importância social, econômica e ambiental. Discute-se, em especial, a sua situação atual e as vantagens da sua promoção nestes dias de mudança climática e de crise energética. Verdade é que esta pratica é tão antiga como a humanidade, mas, com apoio da ciência e da técnica, tem adquirido uma dimensão especial na luta para melhorar a qualidade da vida humana. O problema é que alguns setores da teoria social, como costumam fazer, estão se aproveitando da oportunidade para justificar novas agressões ao meio ambiente.

Denominam-se “agrosilvicultura” ou “sistema agroflorestal” as opções de uso da terra que combinam a produção e os benefícios das árvores com os que se obtém dos cultivos agrícolas ou da pecuária, em um mesmo lugar ou na mesma unidade rural. Uma finca agroflorestal típica vai mostrar árvores relativamente esparsas e, embaixo delas, cultivos agrícolas arbustivos como café ou cacau e/ou herbáceos, como milho ou feijão. Pode também haver pastagens e criação de animais no mesmo contexto, por exemplo, nos plantios de oliveiras do Mediterrâneo onde, sob as árvores, se cultivam hortaliças ou pasto que alimenta diversos animais domésticos.

Na verdade, as combinações possíveis de plantas arbóreas, arbustivas e herbáceas são múltiplas e as de sistemas aplicáveis são ainda mais numerosas. Como dito, a prática existe há milênios e todo ser humano a tem visto muitas vezes, pois as chácaras que aplicam o sistema são comuns em todos os continentes e em todas as latitudes, praticada igualmente por camponeses pobres e ricos, embora seja mais freqüentemente associada aos primeiros.

A partir dos anos 1960 os cientistas, observando os camponeses, passaram a compreender o valor especial dos sistemas agroflorestais como fontes de serviços ambientais diversos e, essencialmente, como forma sustentável de produção agropecuária. Na América Latina seu primeiro e principal promotor foi o venezuelano Gerardo Budowski, em seus postos diretivos no Centro Agronômico Tropical de Investigação e Ensino (CATIE), na Costa Rica. Estes esforços pioneiros foram continuados por muitos outros, mas, notavelmente por Jean Dubois, no Brasil, e pelo americano Pedro Sánchez na Amazônia peruana.

Todos estes fatos culminaram no ano 1978 com o estabelecimento do Instituto Internacional de Pesquisa Agroflorestal (ICRAF), hoje mais conhecido como World Agroforestry Center (Centro Agroflorestal Mundial), do qual Sánchez foi o terceiro diretor geral. O ICRAF é um dos vários institutos da rede de pesquisa agropecuária mundial, como são os que se dedicam ao trigo, batata, arroz, milho ou aos cultivos tropicais em geral ou as florestas. Hoje esta prática que combina a silvicultura com a agricultura se converteu, na teoria, em um pilar do desenvolvimento sustentável na área rural. Milhares de projetos estão sendo realizados no mundo e muitos milhões de dólares são investidos, somando-se ao esforço de centenas de milhões de famílias que no mundo praticam algum destes sistemas, que ocupam 46% das terras de uso agropecuário, onde as árvores cobrem mais de 10% do solo. Acaba de terminar, em Nairóbi, Quênia, o Segundo Congresso Mundial Agroflorestal, com a participação de mais de 1400 pessoas, algo que era impensável há apenas 20 anos.

A grosso modo, a agrosilvicultura se divide em dois grupos: a que se desenvolve no mesmo espaço e ao mesmo tempo, e a que se desenvolve mais ou menos no mesmo espaço, mas em tempos diferentes. Exemplo típico da primeira é o cultivo estratificado com árvores para sombra que protegem os arbustos de café ou de cacau (o famoso sistema “cabruca” da Bahia) e, eventualmente, de pasto para gado menor. Um exemplo comum do segundo é o uso de rotações que começam com o desmatamento da floresta original e que, quando o solo se esgota, é deixado em descanso prolongado permitindo a reaparição da floresta, no caso de vegetação secundária (“capoeiras”). Estas, por diversos mecanismos naturais, restabelecem a fertilidade do solo e, quando isso acontece, são outra vez cortadas para dar lugar a um segundo período de colheitas agrícolas. Esta forma de agrosilvicultura se conhece como de “roça e queima” (slash and burn, em inglês) e, em geral, ela é uma etapa da agricultura migratória ou itinerante.

Quais são as virtudes da agrosilvicultura? Pois, são muitas. Para começar é um sistema que pode somar as produções de árvores (madeira, frutas, resinas, cortiças, etc.) com as dos cultivos, diversificando a colheita; e outra, pode favorecer alguns cultivos e criações devido à sua sombra protetora ou proporcionando nutrientes reciclados, por exemplo, nitrogênio quando as árvores são leguminosas. Algumas espécies de árvores podem, ainda, ajudar a conservar ou a armazenar água no solo ou a bombear esta sob certas condições; também protegem os solos contra a erosão laminar ocasionada por chuvas e vento, preservando a sua fertilidade.

Os sistemas agroflorestais requerem mais lavoura que os que se fazem a pleno sol, pois não podem ser sempre mecanizados, o que resulta vantajoso em zonas rurais densamente povoadas e pobres. Embora muitos sistemas agroflorestais possam produzir colheitas menores que os que não usam árvores, quando se adicionam as coletas de ambos os grupos de espécies, o resultado pode ser amplamente favorável. As árvores também contribuem para reduzir o gasto com fertilizantes e outros insumos devido à melhor conservação do solo e das águas e o maior número de espécies por unidade de superfície pode contribuir para o controle natural de pragas e pestes. Assim, o benefício neto da agrosilvicultura pode ser bem maior para os seus praticantes que a agricultura convencional. Mais ainda, os agricultores que o praticam têm melhor qualidade de vida com base na diversificação e sustentabilidade da produção.

Na atualidade, outras virtudes estão sendo agregadas às anteriores. Três são capitais: Dada a amplitude do uso dos sistemas agroflorestais com uma densidade de árvores por hectare considerável nos cinco continentes e do seu enorme potencial de expansão, tem-se calculado que são já um aporte substancial para a captura e fixação de carbono e que no futuro podem ser ainda mais importantes. Ou seja, que os sistemas agroflorestais saem do espaço meramente rural para tomar um peso considerável nas alternativas para evitar ou minimizar os efeitos da mudança climática. Assim estão se dando os passos para que seja considerado um elemento das discussões sobre o mecanismo de desenvolvimento limpo, tanto mais, que estes sistemas consomem muito menos energia que os tradicionais a campo aberto.

De outra parte, diversos estudos têm revelado a importância da agrosilvicultura para outra das grandes crises mundiais do futuro próximo, a da água. Os sistemas agroflorestais vistos no nível das bacias hidrográficas, dentro da paisagem, são essenciais para a conservação deste recurso precioso. A terceira virtude da agrofloresteria é a sua capacidade de manter uma diversidade biológica que, sem ser igual a das florestas naturais, é, não obstante, muito significativa e, claro, muito maior que a que se encontra na agricultura tradicional. Devido a tudo isso é que, de certa forma, a agrofloresteria é vista como uma forma de diminuir o desmatamento ou de restaurar ecossistemas degradados em outros bem mais equilibrados, capazes de cumprirem funções ecológicas que antes pertenciam a florestas que não existem mais. Se feitos com cuidado especial podem até se constituir, para muitas espécies, em corredores ecológicos entre unidades de conservação.

Até aqui tudo bem, embora seja possível que o leitor atento já tenha percebido um dos problemas que vão ser discutidos. Com efeito, de acordo com tudo o que foi explicado, a lógica do futuro dos sistemas agroflorestais é o aumento o número de árvores no planeta onde o bosque foi substituído no passado por agricultura ou pecuária, mediante a integração de árvores aos cultivos perenes ou anuais. Sendo assim, tudo o que é agrofloresteria em arreglos espaciais, ou seja, a combinação de árvores com outras plantas no mesmo espaço, é coincidente com a finalidade.

Já os arreglos denominados de seqüência temporal ou rotação agroflorestal, ou seja, o desmatamento de floresta original seguido de agricultura e logo de vegetação florestal secundária que logo é também desmatada, levanta muitas dúvidas. Com efeito, o saldo de árvores é, neste caso, negativo. Começa-se eliminando a floresta nativa e, logo, depois de abandonar os cultivos e quando a “capoeira” começa a ser importante, ela também é eliminada e queimada, liberando carbono na atmosfera. Neste caso, em nenhum momento, há um ganho ambiental embora possa, sim, ter utilidade, mesmo que duvidosa para o agricultor. Na verdade a agricultura de “roça e queima” é praticada por quem não tem alternativa ou por ignorância. Então, como é que se chama isso de sistema agroflorestal? O autor desta nota tem suspeita de como isso pode ter acontecido.

A resposta deve estar no fato de ter-se extrapolado para a atualidade uma prática antiga dos povos tribais tropicais, que era sensata quando eles eram “selvagens” vivendo em pequenos grupos humanos mais ou menos isolados, praticando rotações de territórios de caça e de cultivos que podiam durar dezenas de anos. Eram tão poucos que seu impacto no entorno era insignificante. Em conseqüência, os povos da floresta sempre podiam se beneficiar da mesma, pois nunca desmatavam grandes áreas. Porém as mesmas práticas, agora realizadas sobre centenas de milhares de hectares anualmente por agricultores que chegam ou aqueles que já estão fixados na Amazônia e na sua maioria são invasores ilegais, são apenas uma agricultura migratória perigosa e altamente nociva. Eles são os que mais contribuem às enormes taxas de desmatamento na Amazônia e que permitem junto com os madeireiros que os precedem e os pecuaristas que os seguem, o chamado “arco do fogo”. Tanto é assim que o uso de fogo na prática da “roça e queima” é proibido, ou pelo menos teoricamente, estritamente controlado. Não obstante, para o socioambientalismo mundial esses colonos praticam uma agrofloresteria tradicional.

Esse é o mesmo socioambientalismo que acusa a agricultura intensiva e mecanizada de ser crime (o que é verdade quando não se respeita os limites legais), mas, que não quer ver que os agricultores de “roça e queima” fazem o mesmo dano ou muito pior, pois em geral ocupam terras não apropriadas para a agricultura. Pelo contrário, desperdiçam terra boa com uma produção insignificante e obviamente, não respeitam nenhuma regra. O fato é que as duas formas de agricultura eliminam a floresta, portanto são alheias ao princípio básico da idéia da agrosilvicultura que consiste em aumentar a densidade de árvores em terras dedicadas à agricultura e à pecuária. Mas a visão distorcida da tendência influenciou na definição estapafúrdia que foi adotada pelo ICRAF quando aceitou os arreglos seqüenciais como um “sistema agroflorestal”, apesar de que o balanço de árvores no caso é negativo, além de ser uma escusa “social” adicional para um desmatamento absurdo e descarado.

Isso não é o pior. O cúmulo do absurdo são as recentes modificações ao Código Florestal do Brasil permitindo que se desenvolva agrosilvicultura dentro das reservas legais e nas áreas de preservação permanente. É verdade que a mudança legal demanda prudência e moderação, porém parte do princípio errado de que agrosilvicultura é eliminar árvores ao invés de plantá-las. Ademais, fazer cumprir tais regras no campo, por exemplo, as decididas pelo Estado de São Paulo, é simplesmente impossível.

As reservas legais foram criadas para manter, em cada propriedade rural, um equilíbrio entre o uso agropecuário e a floresta nativa ou reconstituída, no caso de antes ter sido eliminada. As áreas de preservação permanente pelo simples efeito da lei são necessárias para proteger os recursos hídricos e os solos ademais da biodiversidade. O socioambientalismo, desta vez aliado aos produtores agropecuários que apenas querem abusar de todo o espaço para seus cultivos, vendeu a curiosa idéia de que a agrosilvicultura vai aprimorar as funções protetoras das florestas pelo expediente de cortar uma porcentagem de árvores e fazer cultivos abaixo das que restam. Ou seja, fazer exatamente o oposto do que propõe a agrosilvicultura, que é enriquecer terras de uso agropecuário com árvores. Tão curiosa e distorcida interpretação dos fatos não é rara no socioambientalismo radical. Com efeito, um dos seus dogmas mais queridos é a curiosa noção de que o homem não destrói a natureza senão que a enriquece… sempre e quando os tais homens sejam parte das “populações tradicionais”.

O ICRAF e os especialistas no tema agroflorestal devem prestar muita atenção a estes dois fatos e, possivelmente, devam reajustar a definição que dela agora usam para definir melhor seus objetivos e evitar confusões. Do contrário, podem pôr em xeque todas as comprovadas qualidades e benefícios da verdadeira agrofloresteria, ou seja, aquela que utiliza arreglos espaciais que se traduzem essencialmente em mais árvores nas áreas agropecuárias e nunca no fomento do desmatamento de florestas naturais ou na redução da densidade ou da qualidade das florestas legalmente protegidas nas propriedades rurais. 

Se não se deslindar claramente a sua própria definição também se arrisca à ótima idéia de usar a agroflorestaria para combater o efeito estufa e, por esse caminho, recompensar aos produtores agrícolas que o aplicam. O Brasil é o único país do mundo que tem abordado legalmente a agroflorestaria de forma tão desvirtuada. Todos os demais países com legislação agroflorestal específica, e são muitos, têm promovido unicamente a que se refere aos sistemas espaciais e jamais aos de tipo seqüencial. O objetivo de todas elas é aumentar a presença de árvores na paisagem rural.

Como ficou claramente definido no citado Segundo Congresso Agroflorestal, essa opção de desenvolvimento rural é claramente sustentável e é promissora em termos de confrontar os problemas decorrentes do aquecimento global, da crise energética, da crescente escassez de água e, também, da perda de biodiversidade preciosa. Como já foi dito pelo destacado ecólogo Philip Fearnside, a agrosilvicultura não se deve converter em novo pretexto para desmatar ou degradar ainda mais as florestas remanescentes.

Saiba mais:

O Eco entrevista Jean Dubois, Peter May e Yucatan Silva.

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