Embora seja difícil de acreditar o Peru tem seu próprio Pantanal, até com cervo pantaneiro e lobo guará e com grande parte da diversidade biológica própria do Pantanal brasileiro. Trata-se de uma porção pequena e isolada do miolo que, como se sabe, ocupa o centro oeste do Brasil, mas que avança sobre a Bolívia, que possui uma extensão importante de campos periodicamente alagados. A área de pantanal que corresponde ao Peru é pequena e ocupa não mais de 10.000 hectares próxima ao rio Heath, que faz a sua divisa com a Bolívia.
A existência de áreas dominadas por gramíneas e arbustos que são periodicamente alagadas era bem conhecida no Peru e na Bolívia desde há muito tempo e já tinha sido descrita pelos fitogeógrafos. Tanto é assim que para descrevê-la foi cunhada a expressão “Pampas del Heath” cobiçada pelos pecuaristas que acreditavam ser esse o local ideal para soltar gado e ficar rico sem esforço. Não conseguiram fazê-lo devido ao isolamento do lugar, bem perto da fronteira amazônica do Peru com a Bolívia.
Nenhum cientista tinha chegado ao local e feito estudos lá até que, entre 1970 e 1972, Rudolf Hofmann, Carlos Ponce e Kai Otte, do Instituto de Pesquisas Florestais, entidade associada à Universidade Nacional Agrária de La Molina (Peru) realizaram visitas e observações sistemáticas sobre a fauna e a flora. E, um dos seus principais resultados foi o primeiro registro de dois mamíferos novos para a fauna do Peru: o lobo guará e o cervo do pantanal, os que embora sejam tão bem conhecidos no Brasil, ninguém imaginava poderiam estar também no Peru, numa localidade rodeada de floresta amazônica. Já nos anos 1990 foram realizadas expedições bem mais detalhadas do tipo “rapid biological assessment” (avaliação biológica rápida ou RAP) a cargo da organização não governamental Conservação Internacional.
O Pantanal de Mato Grosso (e de Mato Grosso do Sul), como bem se sabe, ocupa uma sorte de gigantesca depressão pouco profunda e com pouca inclinação, cuja parte central é mais baixa e, assim, fica permanentemente alagada, enquanto que o resto é alagado periodicamente, com o aporte das chuvas e dos rios que formam sua extensa bacia. Embora o Pantanal tenha influência amazônica, se trata realmente de um cerrado alagado. A flora e a vegetação típicas do cerrado se manifestam incontestavelmente em todo lugar pouco mais elevado e também nas áreas que são menos influenciadas pela água. No caso do micro-pantanal peruano, também, existem porções com lagoas permanentes ou quase permanentes, mas, a grande diferença é que embora existam muitas similitudes, especialmente à primeira vista, não é realmente um cerrado e não está conectado com este. O pantanal peruano é, na verdade, a continuação terminal do que existe no Beni boliviano onde essa formação ocupa uma extensão muito grande, que os fitogéografos denominam savana úmida. Nelas as florestas ocupam apenas as matas ciliares, estando o resto dominado por gramíneas, ciperáceas e outras plantas, inclusive árvores de pouca altura ou arbustos esparsos.
Na América do Sul existem outros pantanais, muito parecidos ao grande Pantanal brasileiro e que, uma pequena amostra deles também existe no Peru
Tal como acontece no caso do cerrado brasileiro, existem muitas discussões entre os cientistas para explicar a origem dessas savanas na Bolívia e no Peru. Existe um indiscutível condicionamento edáfico (os solos são alúvios antigos, muito ácidos e mal drenados) embora isto não explique completamente o processo de savanizacão. A maior parte acredita que a causa principal seja resultante da atividade humana. Com efeito, as vizinhas Pampas de Mojos, na Bolivia, foram intensamente cultivadas na época pré-hispânica, mediante complexos sistemas de drenagem e fertilização. Essa cultura despareceu bem antes da chegada dos europeus, porém o lugar foi ocupado por índios migrantes, caçadores e coletores, como os Guarayos. Estes, como se constatou no Heath, até há pouco visitavam o lugar durante os estios e, em cada oportunidade, incendiavam as pampas, prejudicando a floresta original. A agricultura e em especial as queimadas reiteradas parecem mesmo a melhor explicação.
As pampas do Heath, ademais de cervos do pantanal, lobos guará e grandes cupinzeiros, exibem muitas das espécies conspícuas da fauna que é avistada no Pantanal brasileiro e que também ocorrem na Amazônia, como onças, suçuaranas, antas, tatus canastras, tamanduás bandeiras, porcos selvagens, veados, nutrias, ariranhas e capivaras, dentre muitas outras. Das aves e répteis está presente também a maioria das que se conhecem no Pantanal, embora faltem algumas aves emblemáticas como a arara azul. Os mencionados estudos da Conservação Internacional revelaram 303 espécies de aves muitas das quais são registros novos para a região. Ainda assim, esse trabalho não é considerado exaustivo. Por exemplo, recentemente foi identificada no Heath uma população isolada do piprídeo Xenopipo atronitens e, também, uma espécie de tiranídeo nova para o Peru, o Xenopsaris albinucha. O número de novos registros e de espécies endêmicas detectadas nas pampas foi considerável entre os batráquios e os répteis. É óbvio que muito mais pode vir a ser descoberto.
Os pioneiros das pesquisas no Heath, dos quais Hofmann e Ponce faleceram cedo demais em trágicos acidentes, propuseram a criação de uma unidade de conservação. Esta proposta foi implementada em 1983, com o estabelecimento do Santuário Nacional de Pampas del Heath que, em 1996 foi incorporado ao grande Parque Nacional Bahuaja-Sonene. Isso afastou definitivamente as pretensões dos pecuaristas de usar a pampa para criar gado. De outra parte, essa área protegida é contígua ao Parque Nacional Madidi, da Bolívia, garantindo em teoria a conservação do lugar tão especial.
Mas, o objetivo deste artigo foi, apenas, dar a conhecer o fato de que na América do Sul existem outros pantanais, muito parecidos ao grande Pantanal brasileiro e que, uma pequena amostra deles também existe no Peru onde, pelas suas paisagens e pela facilidade de se observar a fauna, já é um importante produto eco-turístico.
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